DOUTOR JOÃO E A PACIENTE METAFÍSICA
E aconteceu...
O exercício contínuo da medicina de anos daquele amigo doutor João me parece algo como um laboratório de ensaios humanísticos.
Faz tempo que eu o observo na sua lida diária e cada vez mais chego à conclusão de que lidar com pessoas requer tato, muito jogo de cintura, e sem dúvida, aptidão.
Ainda que haja alguma experiência ampla consolidada pelo tempo, sempre aparece um caso dum ser diferente, seres e seus inéditos causos, sempre bem desafiadores da paciência e do escasso tempo de todos os doutores Joões.
E foi assim que ela chegou para a sua consulta do dia,decerto mais uma das inúmeras dela, mas a primeira com o doutor Jõao.
Na sua expressão corporal já se percebia ser alguém avesso às regras da medicina convencional, altiva, sempre prestes a ensinar algo novo para o seu médico e vi quando o doutor respirou fundo e imediatamente se preparou para uma abordagem mais naturalista , descolada, quase homeopática, tipo " odeio a alopatia" quem sabe , antroposófica talvez, ou até se interessaria por uma recente ciência médica recém editada pelo" google", uma daquelas que a paciente o ensinaria a exercer em poucos segundos de aulas pelo IPHONE.
Nada! Não era nadinha disso.
Logo na anamnese ela fez questão de deixar bem claro da sua ciência de ofício e se identifcou como profissional da metafísica.
E seguiu-se a consulta:
-Ah sim, muito prazer, então a senhora é metafísica? Bacana...
-Sim, sou, sem sombras de dúvidas.Sou há anos...escolha pessoal e irreversível. Trata-se de dom inato que enveredou minhas entranhas existenciais desde criança.
-Sim..entendo, e...?
Senti que o doutor já se perdeu logo no início da entrevista da consulta.
-Sou algo totalmente paralelo ao corpo, algo meta pertencente ao meu físico transcendental.
-E o que a senhora sente, pode me explicar?
-Não sinto nada ainda...mas sinto que vou sentir logo logo.
-Como assim, poderia me explicar melhor? Daqui quanto tempo acha que vai sentir?
O doutor, pacientemente, tentava entrar no mundo metafísico daquela sua inédita paciente desafiadora...como aprendeu na escola de medicina.
-Já sei, eu senti que o senhor não entende nada de intuição!Sou dotada dum terceiro olhar, enxergo todos por dentro e me enxergo ao lado de mim com sintomas claros do que ainda vou sentir algo grave.
-Sei...disse-lhe pensativo o doutor Jõao. Num lance de sorte conseguiu perguntar-lhe algo que julgou ser importante.
-Ok, a senhora toma remédios?-perguntou já antevendo a resposta, algo já metafisicamente aprendido ali mesmo.
-Remédios? A metafísica odeia remédios! O senhor não deveria me ter feito essa pergunta. Como tomaria remédios se ainda nem sinto claramente o que vou sentir?
-Ah sim, claro, a senhora me desculpe. Então, vejamos, a senhora fez alguns exames recentes com algum outro colega para que eu possa entender melhor o seu futuro caso?
-Não preciso de exames, a metafísica me dá todas as possibilidades diagnósticas.Eu conheço muito bem o meu corpo...
Nesse instante percebi o doutor João vermelho de ansiedade...diagnóstica. Estava combalido pela metafísica imbatível daquela sua paciente.
Mesmo assim criou coragem e prosseguiu:
-A senhora aceitaria encaminhamentos para uma outra especialidade metafísicamente ligada à meta mais emocional,digamos, algo que realmente não domino?
-Mas doutor, eu venho aqui pela primeira vez e o senhor, por acaso, já está fugindo do meu caso? É o que sinto. Todos se irritam com o meu dom metafísico...
-Bem,me desculpe , mas é que eu também me sinto metafisicamente muito preocupado com a sua doença que, confesso, ainda não sei qual é.
-Certo, eu aceito. Mas voltarei aqui para lhe provar que a metafísica não erra nunca...
Quando o dia terminou senti que doutor João estava meio esgotado, cabisbaixo, pensativo, nada que a ciência médica não o venha elucidar...no decorrer do seu cansaço pra lá de metafísico.
Nota: verídico. Paciente bem diferente...mas metafisicamente real.