MOMENTO PISCÃO II - A TEMPESTADE (continuação)

Todos os passageiros foram para o mesmo hotel. Lá pelas 22:00 horas a modorra tinha tomado conta da gente, entorpecia. Pedimos para a recepção de o hotel nos despertar às 5:00 horas.

Acordei na madrugada e olhei para o relógio. Passavam das 5:00 horas. Eram 5:25 horas. Acordei o meu colega, olhei para o corredor, não vi movimento algum, pegamos as malas e fomos para a recepção e não havia ninguém. Concluí que já tinham partido para o aeroporto, se a gente não se apressasse perderia o avião. Dei uma tremenda bronca no recepcionista e ele espantado me disse em tom educado, como todos, ouvir e calar:

-Senhor, aqui está marcado para as 5:00 horas.

- Então, já são cinco e meia disse eu bastante nervoso.

- Não, senhor, são quatro e meia.

Botei a mão na cabeça, só faltei ajoelhar de tantas desculpas que pedi. Eu sabia, mas tinha esquecido que lá o fuso horário é de uma hora a menos. Não tinha atrasado a minha “cebolinha”. O meu colega olhou para mim e disse:

- Olho de Águia, esta gafe merece um registro, esta taça é só sua.

Putos da vida, voltamos para o apartamento. Tomei um banho para refrescar a cuca. Não cabia em mim de tanta vergonha e remorso. Não sabia o que fazer. Também não sei explicar o porque. Cheguei até a janela, bati as asas, digo, as mãos na bunda e cantei de galo. Um canto de galo tenor.

Surpresa, um galo (verdadeiro) respondeu, bem vizinho ao hotel. Devia estar meio puto por eu tê-lo acordado antes da hora. Daí outro galo cantou, outro, outro e tantos outros. Eram galos cantando por toda parte. E como havia galos! Acabou o meu mau humor, porque desopilei o fígado. Comecei a rir, o meu colega também. Era um coral de galos e nossas gargalhadas. Essa eu não esperava. As luzes dos apartamentos acendiam uma após outra, era um despertar diferente, ninguém entendia o que estava acontecendo. Todo mundo acordou antes da hora.

No salão do café, só gente mal humorada. Nós também fingíamos, pelo medo de apanhar. O Garcia xingava. Imaginem um espanhol mal humorado. Os impropérios eu deixo para vocês deduzirem. No íntimo eu continuava rindo e concordando.

O avião partiu lotado, mais cheio do que veio, aqueles compartimentos para bagagem estavam lotados, havia tralha até no chão. Só estavam faltando galinhas e cabritos. O interior do avião parecia uma jardineira, aquelas tão conhecidas no interior do Brasil. Devo lembrá-los que íamos para o noroeste do Brasil e eram apenas e tão somente dois voos semanais e aquele era o voo do domingo. Então, parece que valia tudo.

Meu colega olhou para o fundo do avião e me perguntou:

- Olho, será que vamos conseguir levantar? Ô loco!!! (ainda não existia o programa do Faustão).

- Vamos rezar, disse eu, porque acho que só mesmo com reza e... das bravas!

“Piscão”. O avião foi para a pista, acelerou, vibrou, rosnou e partiu. Confesso que me concentrei e rezei. Estava sentado na janela ao lado da turbina, senti que estava na potência máxima, e aquele era o momento, se não decolasse, teria que fazer cavalo de pau e, naquelas circunstâncias, a tragédia era inevitável e nós estávamos em cima da asa onde é o tanque de combustível. Eu me sentia galopando a toda para saltar sobre um abismo e foi quando, involuntariamente, gritei:

- Vamos pingo!!!

Imediatamente o avião saiu do solo, a pista tinha acabado e o avião ia lambendo os telhados. Foi “chorando” que ganhava altitude muito lentamente. Passado um bom tempo o avião ainda estava subindo. Comentei com o colega:

- Ó meu, quando é que este avião vai parar de subir? Fomos até a cabine e perguntamos para o piloto porque ainda estávamos subindo tanto. Ele nos disse:

-Veja o motivo lá na frente. Aquela escuridão é uma terrível tempestade. Temos que voar acima daquelas nuvens. Se ficarmos abaixo delas, poderemos cair. Este avião é pequeno demais para enfrentar uma tempestade dessas. Estamos numa situação risco. Por favor, não façam comentários sobre o temporal para evitar pânico.

Pensei: “Ontem estávamos abaixo dos urubus e hoje acima das nuvens. Estamos nas mãos e mais perto de Deus. Que Deus dê toda a perícia necessária a esse piloto, aquele mesmo barbeiro em Urubupungá, temos que confiar”.

Voltamos aos nossos assentos calados e apreensivos. Apenas registrar uma conversa dos passageiros que estavam sentados no banco atrás do nosso.

- Porra, meu! Teve um cara que cantou de galo e despertou tudo quanto era galo que existe na cidade, logo cedo. Estou com um sono daqueles!

Ficou só nisso, ainda bem. Outra, o Garcia viu ao longe umas montanhas e veio nos dizer:

Mira, mira, son las montañas de los Andes.

Fizemos de conta que acreditamos. Eram as nuvens negras que tínhamos que passar. Acho que nem de telescópio daria para se enxergar daquele ponto as tais cordilheiras. O Garcia chutava bem e com os dois pés. Gente boa, por onde andará o Garcia? Que situação nós nos encontrávamos. “Piscando” e calados, sabendo que aquele voo poderia ser o derradeiro. Veríamos a tempestade por cima dela. Seria um lindo espetáculo se não soubéssemos o risco que representava. Era tétrico. Os demais passageiros estavam calmos. Ignoravam a realidade. Eu imaginava o sofrimento de quem tem a morte com data e hora marcadas. Para nós poderia ser aquele momento. Aeroporto próximo não existia. A autonomia do avião era baixa. Tinha que enfrentar o temporal mesmo, fosse o que fosse. Quando o YS-11 chegou à área da tempestade, vimos os raios passarem perto de nós. Rezávamos para que houvesse teto suficiente e visão para o pouso. Finalmente o perigo passara e vimos o bico do avião dar uma leve inclinada. Graças a Deus tínhamos iniciado o processo de descida e quando vimos uma imensidão de florestas, comentei com o colega:

- Aqui devem existir muitos índios. Não quero ser refeição de índio.

Com muito balanço e sacudidas, conseguimos descer em Porto Velho nesse aguaceiro. Que alívio quando sentimos o avião correr na pista em solo firme! Ainda bem que a pista era asfaltada e nova. Pelo menos a viagem tumultuada e os “piscões” chegaram ao fim.

O caminho até o hotel era só lama. Chovia até dentro da C-14 (Van Chevrolet da época).

Quando chegamos ao hotel, não havia luz, água quente, nada. Nenhum conforto. Toquei no mosqueteiro e virou pó. À noite, deitamos com uma vela e fósforos em cima do criado-mudo, caso tivesse que levantar no meio da madrugada. Mas vou parar por aqui, porque outros “causos” e “piscões” viriam. Esse foi só o começo, o primeiro e segundo dias de uma jornada que durou 112 dias (janeiro a maio de 1970). Ouvi esta frase do sertanista Orlando Villas Boas:

- “O ignoto nos aguarda”.

Sim o ignoto nos aguardava!

SANTO BRONZATO EM 22/01/2.014.

SANTO BRONZATO
Enviado por SANTO BRONZATO em 22/01/2014
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