O TERNO DO DEFUNTO
Naqueles remotos tempos daquela cidadezinha bem longínqua tudo era feito por encomenda artesanal.
Era assim com os convites das festas, aniversários, casamentos, decorações, docinhos, bolos, moda, enfim, até os apetrechos dos velórios tinham as encomendas certas e bem adiantadas, que era para tudo dar certo na oportunidade derradeira de se despedir sem cair na boca do povo, e o dito popular do "cada macaco no seu galho", ali era cumprido rigorosamente na íntegra, sempre com a devida competência profissional reconhecida pelos que dali eram, e com o posterior e rígido controle de qualidade que nunca escapava de olho algum da enorme boca pequena. Era daquele tempo.
Por ali, muito se ouvia falar do seu Nicolino, o alfaiate mais consagrado dentre aqueles clientes que se julgavam super importantes, eram os nossos "Vips" de hoje em dia naqueles remotos dias.
E importantes ou não, todos também morriam naquela cidade, como assim o é até hoje em qualquer lugar, e então o seu Nicolino vez ou outra era incumbido de preparar "nos trinques do acabamento" o terno de algum defunto chique menos esperado para a época.
Tudo era perfeito: festa ou enterro a costura do seu Nicolino caía com perfeição como um ainda futurístico corte dum Pierre Cardin pelas passarelas da escondida cidadezinha.
Assim foi que o Juca do Brejo certa vez adoeceu.
Ninguém acreditava que justamente o Juca- homem simples mas vigoroso, e que morava lá na rebaixada da chácara próxima à linha férrea, junto ao brejo das pererecas da noite, sempre carpindo a horta, arando a terra, cuidando das galinhas chocadeiras empoleiradas na cerca, amparando o já menos arisco galo Giló, cego, bem velho de guerra, cuidando dos gansos, dos patos, dos inúmeros vira-latas adotados, ordenhando as vacas leiteiras que logo cedinho doavam o alimento à cidade toda- ora, justo ele, um homão daquele, trabalhador, nunca que poderia acenar com o encosto das botinas antes da hora.
Mas era. Era triste, mas era verdade.
Juca do Brejó daquela vez pegara maleita pela enésima vez e batia o queixo suado no seu já quase leito de morte.
Ficou amarelinho como gema de ovo. Delirou várias vezes.
Então, reza que as novenas corriam toda a cidade e a redondeza dela, mil promessas foram encaminhadas, simpatias, a benzedeira era sempre chamada para um benzimento mais forte, o médico explicava os riscos de morte, e obviamente que o ofício do seu Nicolino também não fora esquecido.
Avisaram o padre para que ficasse alerta "full time", pois o médico já avisara que o causo era bem grave.
Alguém, nunca se soube quem, encomendou o terno do Juca do Brejo.
Era alguém de gosto bem apurado, era o que se comentava no entorno.
Decidiram que ao menos uma vez na vida o Juca haveria de largar aquelas roupas desajeitadas da roça para elegantemente adentrar num terno de linho puro branco...rumo ao mundo melhor, mais arrumadinho.
Nem que fosse pela primeira e última vez Juca do Brejo teria uma honraria, ora se teria!
Juca do Brejo era um homem merecedor daquela atenção, puro e santo, solteiro, convictamente Mariano, e quando criança fora coroinha da igreja do mesmo padre de então.
Foi quando certa noite chamaram o médico e ato contínuo solicitaram a Extrema- Unção para o Juca. Chegara enfim...a sua derradeira hora.
O padre foi correndo já com a reza mais que pronta.
Vestiram-no na obra prima do alfaiate Nicolino e fervorosamente a cidade encomendou o Juca ao céu dos homens, sempre em uníssono de fé ardente, para o além do mundo visível.
Mas na manhã que renascia à sua extrema- unção Juca abriu os olhos e já se sentindo um touro, pulou do leito d emorte a se estranhar naquele seu impecável modelito de terno do seu Nicolino, embora diga-se que tenha gostado do seu novo visual.
O que se comenta por dedução é que chegara sim o dia do Juca mas não chegara ainda o dia daquele perfeito terno do Nicolino se despedir das passarelas da cidade.
Prontamente restabelecido como num milagre dos céus, Juca do Brejo, forte como nunca, até hoje, todos os domingos pela manhã, ainda sobe elegantemente a pasarela da pirambeira lá de baixo, balançando seu terno de linho branco e puro rumo à missa , em viva memória ao talento do falecido seu Nicolino.
Às sete em ponto o sino da igreja soa a reverenciar para a cidadezinha todos os milagres das horas, daquelas horas exatas, que com muito mistério selam e determinam o destino de tudo e de todos.
**
Nota: Baseado num fato real. Em homenagem ao alfaiate Nicolino que realmente existiu e ao defunto que felizmente não sucumbiu.