DOUTOR, QUER ENVELHECER OTIMAMENTE, COMIGO?

Claro que esse assunto de se passar pelo tempo também tem lá os seus aspectos engraçados.

Não é fácil , mas é possivel passar por ele com certo humor zombeteiro, e eu acredito mesmo ser tal postura mais providencial do que ficar se lamentando pelo futuro que inexoravelmente se aproxima zombando da gente.

Afinal, ainda acreditam por aí que conseguimos driblar os anos.

Vou me explicar melhor: há bons tempos que observo a dinâmica profissional do doutor João, que dia desses , todo feliz, analisando os exames da sua paciente da quarta idade, lhe exclamou: " a senhora está ótima!", ao que prontamente recebeu o troco:" Tô ótima?-isso porque o senhor não está me vendo por dentro e também não se sente como eu me sinto...com dor em tudo!".

Percebi que depois daquele dia o doutor João pára para pensar melhor no que significaria se estar ótimo. Depende, tudo depende. Cada um tem o seu ótimo próprio, acreditem.

Quando tudo aparentemente está ótimo por fora...

Dona Maria Conceição ficou indignada quando certa vez o doutor João lhe mandou que ela lesse mais livros e fizesse plavras cruzadas para treinar o cérebro e se esqueceu da sua atrofia macular senil.

" Doutor, mas não foi o senhor que diagnosticou meus olhos senis, se lembra?"

Com dona Maria Antônia também não foi diferente:" a senhora tem que andar bem rapidamente todos os dias para melhorar as gorduras!" ordenou o doutor num tom irritadiço, ao que novamente a paciente o lembrou: "doutor, se lembra que tenho próteses nos dois joelhos e numa articualção do quadril...?".

Percebo que a medida que o tempo passa, inclusive para o doutor João, parece que ele vai envelhecendo com a sensibilidade menos aflorada para o todo, inclusive o de si mesmo, afinal, dona Gertrudes também não deixou por menos:" doutor, meus ossos estão como casca de ovo, o que faço além de comer sardinhas e todas as folhas verdes?

Bom, ossos são problema sério mesmo. A medida que o tempo passa, eles resolvem se dissolver a olhos vistos. E não são só eles, obviamente que não, todo o demais conjunto os acompanha.

Doutor João, então, antes de lhe epedir que ingerisse mais cálcio em comprimidos, que caminhasse mais horas, fizesse musculação e tomasse sol ..blá..blá...blá...protamente se lembrou:

A dona Gertrudes se trata duma antologia de clínica médica, escapou de tudo: já teve câncer de pele, fratura de vértebra, cálculos renais de cálcio, ruptura dum tendão do ombro com posterior colocação de prótese- só por carregar uma sacolinha do supermercado- úlcera péptica, refluxo, nó nas tripas...e por aí vai...

Afinal, sinceramente, senti ali na consulta que os noventa anos da dona Gertrudes desestabilizaram o humor e o conhecimento do doutor João, tão notoriamente, que até o fizeram nos revelar o seu pensamento:

"raios me partam e agora? dona Gertrudes também é mais um compêndio de contra- indicações para se abordar todos os aspectos do tratamento da osteoporose."

"Dona Gertrudes coma cinco sardinhas por dia...com suco de couve, e tire todos so tapetinhos da casa para não escorregar, pronto, tudo resolvido."

Pensativo, dona Gertrudes, então, logo lhe trouxe o consolo da realidade: "doutor, fique tranquilo, eu já sei que o senhor não faz milagres, não inventa ossos e já me trouxe até aqui... osso pra mim agora é só na outra vida, eu sei disso, nem que eu engolisse por dia um cardume de sardinhas com suco de couve das hortas do mundo...fico com o remédio do colesterol, da pressão, da artrose , do labirinto, do coração, da tireóide, da gastrite, da insônia, da depressão ...esqueça do meu osso e assim tudo ficará ótimo para mim!".

Doutor João se assustou com tanta convicção...verdadeira, até passou a se enxergar melhor e lhes digo que mudou seu conceito do que é estar "ótimo", inclusive consigo mesmo.

"Ótimo, dona Gertrudes, ótimo mesmo, vamos fazer assim então, como a senhora diz ser o seu ótimo.."

"Doutor?'"

"Sim, dona Gertrudes:"

"Olha, para eu ficar ótima mesmo, me tira tudo, mas não me tira os meus tapetinhos..."

Terminado o dia li o pensamento do doutor João que em silêncio otimizado se arguia: "até aonde eu quero...e devo chegar?"