Meu cachorro sumiu!
Que atire a primeira pedra quem não conhece ou nunca viveu alguma história pitoresca envolvendo um representante da espécie canina.
Pode ser aquele caso da pessoa que,encantada pela doçura do filhote,o leve para casa,esquecendo que a casa não é casa,e sim um "apertamento" que não é o lugar mais indicado para um São Bernardo.O desenlace é previsível:um novo lar tem que ser providenciado para o totó antes que a família toda seja obrigada a se mudar do condomínio.Lágrimas e soluços.
E o caso em que o pet,geralmente quando é de raça,desenvolve um problema de pele insolúvel,apesar de frequentar os melhores veterinários do bairro e só comer ração importada?A frustação do dono aumenta ainda mais quando ele vê o cachorro do vizinho(o animal,não o ser humano),um vira lata que só come fubá e restos de comida,exibindo um pêlo firme e lustroso,digno de exposição.É dose!
Conheço uma senhora que,não aguentando a hiperatividade de seu Coker hispaniel mandou castrá-lo,orientada pela veterinária,que assegurou:"junto com as bolas,vai-se embora a agitação".Pois bem;o animalzinho não só continuou elétrico como agora urina a casa toda,coisa que ele não fazia antes.Uma vingança molhada.
O caso que passo a narrar agora aconteceu recentemente,e usarei nomes fictícios para manter a identidade dos envolvidos em sigilo.
Jurema acordou com os gritos de seu vizinho:
__Jurema!Jurema!O portão está aberto!O Cremoulo fugiu!
Cremoulo é o nome do mestiço de labrador e pastor alemão,que fora encontrado na rua pelo filho mais novo de Jurema.Na época,uns dois anos atrás mais ou menos,o animal aparentava alguns meses de vida apenas.A graça do filhote e a chantagem emocional do caçula,que ameaçou não estudar para o vestibular caso não ficasse com o cãozinho,venceram a resistência da dona de casa.
O tempo passou,o filho entrou para a faculdade e delegou a mãe a tarefa de cuidar do cão.O nome esdrúxulo do pet veio do apelido de um tio-avô de Jurema,que fora centroavente de um time amador do interior de São Paulo nos anos sessenta.
__O que foi seu João?__Jurema abriu a janela,tonta de sono,para ver o que o vizinho queria as sete horas de um Domingo ensolarado.
__Saí para ir na padaria e vi o portão aberto.Deu pra ver o Cremoulo dobrando a esquina.Corre lá que talvez ainda dê tempo de encontrar ele.
Jurema agradeceu ao vizinho,botou uma roupa qualquer e,ainda em jejum,percorreu o quarteirão inteiro e nada de encontrar o Cremoulo!
Uma hora depois,exausta,retornou para casa.O caçula a recebeu com uma pergunta:
__Mãe;cadê o pão francês?
__Está lá na padaria!O Cremoulo fugiu!
__O quê?!!__o jovem quase derrubou a xícara de café que segurava na mão direita__Fugiu como?
__Fugiu!Eu te falei várias vezes pra trancar direito o portão quando chegasse de madrugada!Mas você está sempre calibrado,não é?Não passou o trinco direito de novo e finalmente aconteceu!O cachorro fugiu!Andei o quarteirão inteiro e não achei o safado!Vai lá procurar agora!Ele é seu,não é?
O caçula foi e nada encontrou também.
__Vamos colocar na internet!__Sugeriu Jurema,aflita.
O filho concordou e publicou a foto do Cremoulo num site de animais desaparecidos.Uma semana depois,sem nenhuma notícia do cão,mãe e filho colaram cartazes com a cara do totó em todos os postes do bairro.O filho mais velho ajudou nessa etapa,apesar do pouco tempo livre que dispunha por trabalhar no mercado financeiro.
Duas semanas e nada.
Numa tarde nublada,três semanas após o sumiço,o telefone tocou.Jurema estava fazendo um bolo de chocolate.Uma voz tímida veio do outro lado da linha:
__Boa tarde.Meu nome é Cléverson.Eu moro aqui no bairro e vi seu cartaz sobre o cachorro.O nome dele é Cremou..
__Cremoulo!__falou Jurema,ansiosa por novidades.
__Isso!Pensei que o cartaz estivesse errado...Pois bem;eu estou com o cachorro aqui em casa há uma semana;encontrei ele vagando na minha rua com uma mordida na anca,deve ter brigado com outro cão..
__Moço__disse Jurema,interrompendo__Me dá seu endereço que eu vou aí pegar ele agora!
O homem deu o endereço e,meia hora depois,a dona de casa estava em frente ao portão da casa dele.Levada até o quintal,ela não se conteve de alegria ao ver o safado.Cremoulo,por sua vez,nem deu bola para a mulher;só tinha olhos para a cadelinha da casa,uma mestiça de Pit bul e Dálmata.Vendo o desapontamento de Jurema pela pouca atenção recebida,Cléverson explicou:
__Ela está no cio.Eles cruzaram uma três vezes...Eu cuidei do ferimento na anca,já está quase bom...
__Meu Deus__disse ela,enquanto observava o assanhamento do cão.__O que vai sair desse cruzamento...
__Os mestiços são os mais resistentes__observou Cléverson,no mesmo instante em que Cremoulo ensaiava uma nova "chinelada" na cadelinha.
Jurema teve que esperar o final do namoro(para não usar um termo mais forte),e depois levou Cremoulo para casa,sob protestos veementes do animal,que saiu arrastado pela coleira.
À noite,ela e os dois filhos reuniram-se para estipular normas mais rígidas de conduta em relação a Cremoulo.A matriarca falou primeiro:
__Se o pai de vocês estivesse vivo ele me ajudaria a cuidar do cachorro;mas já que essa não é a realidade,eu quero que os dois se comprometam,de agora em diante,a fazer a parte de vocês.
Depois de duas horas de debates acalorados,em que foram aventadas as mais variadas hipóteses,desde a doação do animal,chegando até a sua castração,passando pelo uso de remédios controlados para aplacar a sua hiperatividade,ficou decidido que a família continuaria com Cremoulo,sem castrá-lo e sem usar remédios.O caçula iria tomar cuidado para não deixar o portão aberto e se comprometia a dar-lhe banho de quinze em quinze dias,enquanto o mais velho iria usar parte do seu pouco tempo livre para passear com o cão.
Alheio a tudo isso,Cremoulo sonhava todas as noites com a cadelinha mestiça de Pit bul e Dálmata,e ficava atento ao portão da casa;não para afugentar algum intruso,mas para aproveitar uma oportunidade,um descuido dos donos,e sair como um foguete em busca de sua paquera.
Cachorro esperto o Cremoulo!