A reforma da igreja
Herculano Perestrelo, o eterno prefeito de Guanhabuzamba foi informado por dona Margarida, a eterna secretária, que havia uma comitiva na sala de espera pedindo para falar com ele.
- Doutor, – apesar de não ter curso superior, Herculano exigia que lhe tratassem desta forma – tem um bando de beatas aí fora querendo conversar com o senhor.
- Uai … e aqui é igreja agora?
Dona Margarida apenas cingiu a expressão e respirou fundo esperando resposta do superior hierárquico.
- Diga a elas que estou muito ocupado, mas que as recebo dentro de alguns minutos. Esperem um momento.
Assim que a secretária saiu pela porta, Herculano abriu o caderno de esportes do jornal “O Estado de Minas” e conferiu todas as crônicas e informações de seu clube no campeonato, além de dar uma olhada no encarte de Veículos e consultar o preço da camionete Hillux , modelo mais moderno que pensava em adquirir. A seguir, passou a mão no interfone e ordenou que as senhoras seguissem para dentro do gabinete. Assim que entraram, Herculano cumprimentou as doze senhoras respeitosamente, uma a uma, com um aperto de mão caloroso.
- As senhoras me desculpem. Estava aqui ao telefone com o nosso deputado, e sabem como são as coisas… se não apertarmos com eles na capital, acabam se esquecendo de nós aqui no interior.
Dona Zuca, que sempre andava de véu negro e roupas escuras recatadas, das mais fervorosas católicas do local, sorriu largamente e disse para as amigas.
- Não falei que o Doutor Herculano está sempre cuidando de nossa cidade? O senhor nos orgulha , doutor!
- Que isso, dona Zuca. Não faço mais que minha obrigação… mas a que devo a honra de tão ilustre visita?
Foi dona Belinha que abriu.
- Doutor, a nossa capela, perto da bica do Alceste, está uma lástima. O teto caindo, a pintura descascada. E há um mês roubaram a imagem de Santo Expedito. Nós viemos em nome do Santíssimo pedir uma ajuda que a prefeitura possa arcar com as despesas de reforma.
- Compreendo…
Herculano acatou o pedido vendo ali uma oportunidade para ele e Josias, o pedreiro com sua equipe, de superfaturar mais uma obrinha. Apenas exigiu às beatas que a missa de inauguração da reforma fosse publicitada pela prefeitura e não pelo pároco. Galinha que canta é a dona do ovo, aprendera muito cedo na política.
Em duas semanas os pedreiros montaram andaimes do lado de fora e dentro da capela, e começaram as obras com uma placa afixada “ Obra de reforma da Capela de Santo Expedito – Licença CREA nº 123434 – A cargo da Prefeitura de Guanhabuzamba- MG – Prefeito Herculano Perestrelo.
Quem não gostou de ler a informação foi Názario da Cruz, pastor da igreja pentecostal Jesus me Ama, Judas te Odeia. Passando de bicicleta em frente à capela, parou e ainda confirmou com o mestre-de-obras se era mesmo a prefeitura que estava arcando com aquelas despesas. Saiu pedalando contrariadíssimo. Há um mês havia sido negado o pedido para reforma de seu templo pelo prefeito. E agora estava decidido a pôr cobro àquilo.
Názario da Cruz. Não era este o seu nome de família. Foi apelidado pelo povo por causa de um curioso resquício do catolicismo em suas pregações neopentecostais: o uso de uma cruz de bronze nas mãos que, normalmente, os demais pastores não utilizavam e estava abolida dos cultos. Mas Nazário, mesmo admoestado, insistia em utilizá-la. Nazário, o da cruz, acabou sendo chamado pelo povo como “Nazário da Cruz”.
Envolvido em seus pensamentos e decidido a cobrar do prefeito aquela diferença de tratamento, foi à casa e pegou sua cruz de bronze, que media uns bons 40 centímetros, e seguiu a pé em direção à prefeitura. Na outra mão trazia uma bíblia com capa de couro já muito surrada pelo suor das mãos.
Ao passar pela avenida principal viu o prefeito Herculano conversando animadamente na calçada com alguns cidadãos em frente ao Fórum e aproximou-se da roda.
- Bom dia, Dr. Herculano – sério e grave.
Sobressaltado, o prefeito procurou a voz e viu Nazário da Cruz.
- Oh, Seu Nazário! Chegue mais.
O pastor aproximou-se e soltou.
- Então o senhor não quis contribuir com as obras da minha igreja mas resolveu dar para a capela do Alceste. Quem dá para um, tem que dar para outro!
Herculano sentiu-se um pouco constrangido e tentou amainar a conversa.
- Calma, Seu Nazário. Passe no gabinete para gente conversar melhor e tenho certeza que podemos pensar em algo.
- Eu pedi primeiro! – gritou, chamando atenção de mais pessoas que foram se avolumando ao redor da discussão.
- Mas o senhor a de convir que Santo Expedito é padroeiro de nossa cidade…
- Santo ?! Santos são imagens, doutor ! E são proibidas de serem adoradas. Está escrito aqui – levantou a bíblia em riste - O Dr. Herculano ponha mão no seu juízo e na sua fé . O senhor está possuído! Possuído!
Neste momento já havia duas dezenas de pessoas assistindo o embate que viria. Herculano pôs as mãos no bolso e sorriu sem graça pela exposição gratuita.
- Seu Nazário, deixe disto. Não diga uma coisa desta. O senhor sabe que eu respeito sua igreja. Passe no gabinete e vamos conversar com calma.
Nazário levantou a cruz de bronze e gritou de maneira que todos ouviram sem esforço, não que tivesse a intenção.
- O senhor está possuído! Em nome de Jesus, eu digo que saia do corpo do Doutor Herculano. Eu sei que você está aí, Satanás! Você não tem este direito! Saia já!
A multidão foi ajuntando ao redor, entre católicos, crentes e descrentes. O exorcismo continuou aos brados.
- Saia deste corpo que não te pertence! - tentava encostar a cruz de metal perto do rosto de Herculano, constrangido , procurando livrar-se daquela situação embaraçosa e ir-se embora.
- Seu Nazário… pare com isso… deixe disso.
- Não paro! E ordeno! Saia deste corpo! Agora!! Saia, Satanás! Saia do corpo de Dr. Herculano!
Inflamado por sua palavras o pastor suspendeu a cruz o mais alto por cima de sua cabeça na intenção de impor sua superioridade. Não contou com o fio de alta tensão da CEMIG que estava ao alcance, desenhando uma barriga devido à tempestade da noite anterior. A cruz tocou no filamento e fechou um grave circuito no corpo de Nazário, levando-o a ficar unido à corrente elétrica, trêmulo, em pé, sentido o enorme poder da descarga, sem saber a origem.
Todos se afastaram e deu-se uma gritaria pedindo socorro e o pobre homem de fé permanecia em pé e eletrocutado, mas consciente. De sua boca saíram as únicas palavras gemidas.
- Volta pra ele … volta pra ele…
O pastor sobreviveu e o prefeito acabou por reformar também seu templo.
Há dias em que a laicidade faz sentido.
(Nota do autor - este conto é obra fictícia. Qualquer comparação com a vida real é mera coincidência. Dalmir Lott - julho de 2013).
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