Genro é parente?
Quando se perde os quatro dentes da frente da arcada inferior,você pode substituí-los de várias maneiras.
Oldemar escolheu a mais barata delas,e passou a usar uma daquelas próteses removíveis presas por grampos.
Ele planejara,inicialmente,optar por um implante ou qualquer outra opção em que os novos dentes ficassem fixos na boca,mas as despezas da festa de casamento de sua única filha inviabilizaram seu intento.
Deitado na cama a espera do sono que teimava em não chegar,Oldemar procurava convencer-se mentalmente de que fizera a coisa certa.
Não estava sendo uma tarefa fácil,pois o seu superego teimava em manifestar-se:"Você não trabalha que nem um burro?E para quê?Vai ficar igual a sua avó Dita,colocando os dentes no copo d'água todas as noites?E ainda vai financiar a festa de casamento da sua filha,que já mora com o cara há mais de um ano?Que palhaçada!
__Oldemar?Oldemar!?Você está todo esparramado!
Era sua esposa Edília que o cutucava,reclamando espaço no leito conjugal e o arrancando das suas elucubrações.
__Como foi a frova do fesfido?__perguntou ele,saindo do transe
__Hein?__exclamou a esposa__Coloca seus dentes Oldemar!Não entendi nada do que você disse!
A mulher estava certa.Sem o roach,era impossível para ele falar todos os fonemas claramente,sem assobiar.
Depois de uma rápida ida ao banheiro,Oldemar voltou completo:
__Eu perguntei como foi a prova do vestido?
__Ah;agora sim...A cintura estava apertada,vai ter que ajustar...espera um pouco.
Edília abriu uma das gavetas do criado mudo,pegou uma cartela de comprimidos,retirou um deles e o tomou junto com um pouco de água.
__Você está tomando muito calmante Edília.Esse é da flora?
__Que flora o quê?E você acha que "goiaba" vai dar jeito na minha ansiedade?Com uma festa dessas em cima do laço?É frontal nas idéias e pronto!
__Outro dia você estava encerando a cozinha as duas horas da manhã...
__Isso foi por causa daquela receita de emagrecimento que eu peguei da Cinara,nossa vizinha.Me deixou pilhada!
__Você enlouqueceu mulher!Essas fórmulas pra emagrecer são perigosas!É preciso ter acompanhamento médico!Além disso,você usou uma fórmula feita para outra pessoa;não pode!Essas coisas são individualizadas!
__Estou sem dinheiro pra médico atualmente__Edília passava um creme nas mãos enquanto falava.
__Foi bom você dizer isso__disse Oldemar,enquanto tirava o cobertor de cima das pernas__Vamos conversar um pouco.
__Sobre o quê?
__Essa festa.
__O que tem a festa?
__Voce acha certo nós gastarmos os tubos nisso?Eles já vivem juntos há mais de um ano!Se fosse uma festa simples para os mais íntimos...mas uma super festa dessas!
Edília fez uma cara de frustação e respondeu:
__Estou,quer dizer,estamos fazendo isso pela nossa filha.Você
sabe como eu não suporto o marido dela.Até terapia eu fiz pra conseguir engulir aquele estrupício,sem falar nos remédios...
__No início eu achava que era implicância sua,Edília,coisa de mãe que não quer perder a sua filha única;mas com o tempo eu vi que você estava certa.O cara é muito enrolado,pra não dizer esquisito,maluco...
A esposa concordou balançando a cabeça e falou:
__Quase não vem aqui em casa,e quando vem,fica o tempo todo mexendo naquele telefone celular,passando o dedo na tela sem olhar no olho de ninguém...Acho isso horrível!Horrivel!
Oldemar decidiu contar um fato que até então mantivera em segredo:
__Tem a última...Outro dia peguei o ônibus lá em Bangu,perto do ponto final.Quando passei pela roleta,vi que ele estava sentado num dos bancos,mais ou menos na metade do carro.Pois bem;passei por ele fingindo que não sabia de nada....Ele nem me cumprimentou!E ainda fingiu que estava dormindo quando eu fui saltar.Também não dei mole!Nem me virei pra falar com ele...Maluco!
__Mas a última não é essa.Tem outra__ao falar,a mulher tinha uma expressão de contrariedade e enfado.
__Outra?
__A mãe dele está dizendo que eles já deveriam ter tido filho pelo tempo em que estão morando juntos,e acha que é tudo culpa da nossa filha,que é muito magrinha e não engravida...
__Foi melhor assim__disse Oldemar__pelo menos ela não sai de barriga nas fotos do ábum de casamento e se não der certo é mais fácil separar.
__Eu mandei ela fazer exame de fertilidade junto com ele__Edília elevou o tom__Mas te digo uma coisa:Se der algum problema no exame do maluco,a mãe dele vai ouvir!
__Vamos dormir agora,chega de falar desse prego!Pensando bem...Vem cá minha Angelina jolie..__ele puxou a esposa para si,dando-lhe um beijo na testa
__Não Oldemar!Amanhã tenho que acordar cedo.Vamos escolher o bufêt..Sai pra lá!
Resignado,Oldemar foi até o banheiro e recolocou sua prótese no copo d'água;depois voltou para cama e enfiou-se debaixo das cobertas.logo os dois estavam dormindo.
Dez minutos depois o telefone tocou.Bêbada de sono,Edília atendeu.
Era a filha,que ligava para dar uma notícia bombástica.
Depois de ouvir tudo e desligar,a mulher cutucou o marido,que não acordara apesar do barulho estridente da campainha:
__Oldemar!Oldemar!
__Fe foi?
__Vai colocar sua prótese!Rápido!
Cambaleando,Oldemar foi até o lavabo e "vestiu" seus dentes.Ao voltar para o leito,recebeu a notícia da mulher,que perdera o sono apesar do calmante que inundava seus neurônios.
__Nossa filha ligou pra dizer que recebeu hoje o resultado daquele exame de fertilidade...Não tem nada de errado com ela;ELE é que tem baixa contagem de espermatozóides!A culpa é dele!A sogra da minha filha que me aguarde!
__Quem muito fala...__disse bocejando Oldemar
__E ela deu a entender que talvez nem saia o casamento...Já imaginou como isso seria bom?
Oldemar imaginou isso e muito mais.Imaginou o quanto economizaria com o cancelamento da festa,provavelmente mais do que o suficiente para fazer seus implantes.
Demorou um pouco mas voltaram a dormir.
Uma hora depois o telefone voltou a tocar,mas desta vez quem atendeu foi Oldemar.Edília já estava no sono sem sonhos do calmante.
__Esfera um insfanfe filha!__disse o pai ao atender.
Depois de ir até o banheiro e mais uma vez recolocar o aparelho que havia tirado para dormir,ele voltou e continuou o papo:
__Aconteceu alguma coisa filha?
Oldemar calculou que aquele seria um telefonema para comunicar o rompimento definitivo do casal.Ele não se surpreenderia,inclusive,se a filha pedisse para que ele a buscasse naquele momento,pois não estaria mais suportando ficar junto daquele panaca do saco vazio.
Mas era justamente o contrário.
Sua filha falou que aquela dificuldade reprodutiva servira para uni-los ainda mais,e que o exame não dizia que eles não poderiam ter filhos,apesar da contagem baixa de espermatozóides do marido.Seria necessário apenas os dois consultarem uma clínica de fertilização quando ela quizesse engravidar.
Ela falou ainda que continuava a contar com ele para fazer a festa do casamento e que,se não fosse pedir muito,esperava uma pequena ajuda quando fosse na clínica de fertilização assistida.
Oldemar ouviu tudo sem discordar de nada.Seria pior se criticasse o genro;estimularia ainda mais a obsessão da filha pelo traste.
Quando desligou,depois de meia hora de papo em que ouvira tudo o que não queria ouvir,não conseguiu concluir se fora a mulher que não entendera o conteúdo da primeira ligação,ou se fora a filha que mudara de opinião em pouco mais de uma hora.
Parou de tentar decifrar o enigma quando sacou que aquilo não faria diferença alguma.
Foi até o banheiro e colocou novamente a prótese no copo.Desta vez,porém,acrescentou ao líquido um daqueles comprimidos efervecentes que ajudam a limpar a e desinfetar o aparelho.
Com as despezas da festa e,agora,a da fabricação do neto,aquela prótese teria que durar muito.
Voltou para cama,mas o sono desaparacera.Olhou para a esposa e invejou o jeito como ela dormia.
Abriu o criado mudo,pegou dois comprimidos do calmante e os enguliu.
Sem água.
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Obs)Leiam o conto policial: "O vinho mais caro da terra",que publiquei em quatro partes.
Uma boa semana para todos!