Pelo circuito interno da TV * EC
Quinta – feira à tarde, véspera de dia santo. A chuva caía fina e intermitente sobre os túmulos. Meia dúzia de gatos pingados velava o corpo franzino e devastado por aquela doença que os mais antigos não ousam nem pronunciar o nome. Minha avó cuspia no chão só em pensar na tal.
Não era gente importante nem muito conhecida, mas era querido o seu Norberto.
A noite seria longa e, pelo circuito interno de TV via-se quem chegava e quem partia. O monitoramento televisivo era necessário para que o lugar não fosse invadido durante a madrugada pelos meliantes de plantão. Talvez um dente de ouro ou as duas alianças de casamento que ele carregava no dedo, desde que dona Alzira, sua mulher, falecera de mal súbito. Costume da viuvez. Quem sabe algum dinheiro enroladinho com barbante, escondido no bolso do velho terno azul marinho, escolhido para o funeral. Os objetos de bronze que normalmente enfeitam esse ambiente lúgubre poderiam valer alguma coisa.
Mas nem velório se respeita mais! Vivos ou mortos estamos todos vulneráveis. Que lástima!
Às 22 horas todos saíram e o recinto foi fechado para resguardar os despojos. Apenas o som da câmera era percebido pelo vigia, toda vez que ela virava daqui pra lá, de lá pra cá, num movimento cronometrado e monótono.
Madrugada fria aquela. Um enterro numa sexta-feira santa seria um mau presságio? Talvez...
Céu limpo. De manhãzinha chega a família enlutada para receber os amigos, parentes e conhecidos em geral, para acompanhar seu Norberto até a sua última morada. Momento longo e doloroso de pêsames. Como é difícil ser original nessa hora!
Pontualmente às 10 horas o carro fúnebre estaciona em frente à porta principal para realizar o de praxe: despedidas, lágrimas, orações e fechamento do caixão. Alguns parentes distantes, crianças correndo na calçada, curiosos, gente contando piada do lado de fora, falando alto ao celular, elogios ao defunto, a ladainha. Enfim, tudo a que um morto tem direito. Os velórios são tão diferentes hoje em dia... Reparou que quase ninguém mais se veste de preto ou roxo?
Zeca, o agente funerário, havia passado no exame seletivo da prefeitura. Era seu primeiro enterro. Segundo os agentes funerários, “o primeiro enterro nunca se esquece”. Todo aquele ritual o deixou meio tenso. Sempre teve medo de alma do outro mundo, penada ou evoluída, mas era emprego fixo, direitos trabalhistas, cartão alimentação, plano de saúde (com carência! O sem carência era só para cargos mais importantes na escala hierárquica) e salário razoável para um homem de 40 anos, divorciado, com ensino médio incompleto. Decidiu tomar um ou dois goles de “calmante” no bar do Vitório antes de sair. Vício matutino e antigo.
Esperou respeitosamente pelas despedidas, fez o sinal da cruz e continuou o seu trabalho. Lacrou a urna e colocou-a delicadamente no carro, contando com a ajuda dos parentes. Justo naquele dia estava sem o seu ajudante – Vandeylsson – (com SS mesmo) acometido de forte gripe. Fechou a porta do veículo, deu uma olhada para as pessoas que ainda se dirigiam aos seus carros e, não se sabe por que cargas d’água, assim, sem mais nem menos, saiu desembestado rua abaixo. Ninguém entendeu a atitude do Zeca. Mesmo assim os carros se organizaram para o cortejo e o primeiro a sair foi a Veraneio vermelha do seu Laércio, seguida pelos demais.
Durante o percurso o carro que puxava a fila decidiu estacionar na avenida, próximo ao único pontilhão da antiga FEPASA que dava acesso ao modesto, mas arrumadinho cemitério da cidade. Os demais também pararam obedecendo à ordem de chegada.
Com as duas mãos na cabeça gritava seu Antonino:
_ Onde está meu irmão? P#@* Q%@ P@%#*! Isso é uma afronta! Uma irresponsabilidade!
Expressão chula, inadequada para a ocasião, mas dada a situação constrangedora, foi perdoado o pobre, mais pelo sofrimento que pela indignação.
Saltamos dos carros e ficamos enfileirados na calçada. Esperando. Perplexos. Inquieta, posicionei a mão direita acima das sobrancelhas, inclinei um pouco o corpo para frente, espichei o pescoço e me pus na ponta dos pés, no meio fio, para ver se encontrava alguma coisa.
De repente, avistei ao longe o carro fúnebre: farol alto aceso, pisca - alerta ligado, as coroas penduradas nas laterais, uma de cada lado, o giroflex funcionando debaixo daquele sol que Deus mandava e ninguém, absolutamente ninguém acompanhando. Os transeuntes, sem saber do acontecido, estavam tão surpresos quanto nós. Cena incomum. Defunto sem cortejo. Cortejo sem defunto.
_ Olhem! Lá vem ele! Gritei para o povo, quase feliz com a minha descoberta.
Zeca descia a avenida a 20 km por hora, como manda o manual do agente funerário. Corremos para os veículos. Enfim a cena ficaria completa: morto, vivos, choro, risos, flores, luzes e carros em procissão.
Eu ria por dentro, pois nunca havia presenciado algo assim. Tinha que ser numa sexta-feira. Enfim conseguimos chegar ao cemitério, o caixão foi colocado sobre os pedestais e aberto para o último adeus. Lindalva, filha caçula e agora órfã de pai e mãe, arrumava as flores e a gravata do pai, cuja companhia nunca mais teria. Anderson, três aninhos apenas, perguntava insistentemente para onde o avô tinha ido e a mãe dizia que ele estava no céu, com Deus. O menino ficou um bom tempo a olhar para cima procurando pelos dois. Antonino estava mais bravo que triste.
A situação era tão tragicômica que eu nem me aproximei.
Observava pelo circuito interno de TV do cemitério o desconsolo da família. Esperavam por um ato de desagravo solene e oficial. No mínimo um pedido de desculpas do Zeca.
Na verdade já não sabíamos se o descontentamento era pela morte ou pela perda. Apesar de que a morte é sempre uma perda. Então, tanto faz.
Hora de enterrar. Com o coração contrito, Zeca fechou o ataúde e levantou-o pela alça esquerda. Sabia que tinha pisado na bola, mas não disse uma palavra.
O irmão do morto, indignado desferiu-lhe o golpe certeiro:
_ Escuta aqui ô sujeito! Você não vai levar meu irmão, mas de jeito nenhum! Já perdeu ele uma vez, não vai perder de novo!
Zeca murchou feito bolo tirado do forno antes da hora.
Voltei para o carro sem que ninguém percebesse. Eu ria da situação, não do morto. Ria da inexorável morte e da vida que, afinal, continua.
Fato verídico do qual fui testemunha ocular.
Tudo é muito estranho mesmo.
Zeca ainda trabalha como agente funerário, só que em outra cidade.
Este texto faz parte do Exercício Criativo - Pelo Circuito Interno de TV
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