Meu velho pai e sua língua portuguesa brasileira - 5
Na língua portuguesa existem certos tipos de sons fonéticos bem peculiares, por exemplo:
Exame – x com som de z
Externo – x com som de s
Enxergar – x com som de ch
Casa – s com som de z
Consentimento – s com som de c ou som de s mesmo, sei lá... Isto também é bem complicado...
Consensual – s com som de c ou de ç, não sei...
Entre tantas outras variações...
Também existem palavras ou expressões que podem ou não estar erradas, mas, que são a princípios um pouco estranhas:
Interveio – em vez de interviu...
Correr atrás do lucro – em vez de correr atrás do prejuízo
Correr risco de morte – em vez de correr risco de vida
Entrar para dentro – só se entra para dentro
Sair para fora – só se sai para fora
Subir para cima – só se sobe para cima
Descer para baixo – só se desce para baixo
Agora na língua que meu pai falava existia uma série de variações tão dramáticas quanto únicas, então lá vamos nós, perdão pelo trocadilho... hehe
Meu pai e os decumentos do caminhão:
Um dia meu pai resolveu que iria trabalhar como instrutor de autoescola, como ele sabia dirigir muito bem, apesar de ser analfabeto, ele possuía carteira D, não sei como, mas, isto não vem ao caso é para outra ocasião, ele progrediu rápido e de instrutor de autoescola passou a ser despachante credenciado junto aos órgãos públicos, ele era muito inteligente, tinha uma memória fantástica, sabia entrar e sair de qualquer assunto como se fosse exímio, enganava muito bem.
Apesar de sua inteligência, como não sabia ler os documentos que lhe chegavam às mãos, os mesmos era de uma forma que só ele entendia, separados e ordenados, documentos de carros, motos, caminhões e outros, num sistema que só ele entendia.
Um dia ao chegar da escola, por volta dos meus doze anos de idade, estudava de manhã, participei de mais uma de suas “liberdades poéticas’ com a nossa língua portuguesa, o diálogo foi assim:
- Fia (ele chamava a minha mãe de Fia, isto é dá uma outra história) cadê os decumento?
- Que documentos Souza?
- Os decumentos do caminhão do Olavo (eu acho que era este nome, não me recordo bem.).
- Se eu não achar os decumentos eu vou perder muito pila... (pila = dinheiro) O Olavo é brabo, se eu perder os decumentos ele pode até me matar...
Foi um terror só...
E por aí foi, meu pai cada vez mais nervoso procurando os tais “decumentos”, minha mãe já em ponto de chorar de raiva, pois, ela não tinha culpa dele ter-se confundido em sua “organização”, vendo esta situação se complicando cada vez mais eu resolvi ajudar, peguei uma caixa de sapato aonde ela guardava alguns destes “decumentos” e comecei a procurar.
Logo no primeiro era o documento do caminhão que ele estava procurando, com raiva dele fazer a minha mãe sofrer, eu pensei comigo e disse que iria lhe dar uma canseira, olhei para minha mãe e ela percebeu que eu já havia achado o tal “decumento”, saiu da sala e foi fazer o almoço.
Então eu perguntei pro meu pai: - Pai, o caminhão que o senhor procura é da cor tal, placa tal, em nome de tal pessoa? Ele disse que sim e como eu sabia disso, eu disse que havia escutado ele falar com a minha mãe, ele perguntou se eu havia achado se era o que estava na minha mão, resolvi testar a inteligência do meu pai e sua paciência e disse que não era.
Ele pegou o “decumento” da minha mão e disse: - Não é este aqui? Eu rindo por dentro disse que não... Ele começou a esbravejar, falar mal, falar que iria ser morto e tal, mas, meus amigos, ele parou, olhou pro documento, e não sei até hoje o que ele viu no tal “decumento” que lhe mostrou a verdade e disse:
Caraia! (até o palavrão ele falava errado) eu te pego seu muleque, este aqui é o “decumento” do caminhão, eu gelei na hora... Agora eu iria apanhar como nunca... Sai correndo e só voltei depois que ele já tinha almoçado e acalmado...
Hoje eu sou contador, trabalho com todos os tipos de documentos, mas, ainda sou pego falando assim para minha mãe: - Mãe, nós vamos à igreja? Pegue os “decumentos” do carro...