Uma vida qualquer

Nasci de um ovo roxo dentro do ninho esquecido de uma árvore velha. Com pena de minha solidão e fome outra mãe decidiu me criar. Então ganhei seis irmãos. Todos lindos e cheirosos, ou seja, em nada se pareciam comigo. Mamãe costuma voar e buscar comida no chão e assim que retornava nos dava a comida regurgitando-a em nossa boca. Mas devido ao um problema estomacal adquirido algumas semanas depois que fui adotado, não pude comer mais. Mamãe não aturava o que ela chamava de “bafo de onça”, por isso se recusava a me alimentar. Então aprendi a me virar sozinho, comendo insetos que inocentemente passavam por ali. Até que não eram ruins, mas pela falta de dentes tive que me contentar em apenas lamber a doce carapaça cascuda dos besouros.

Dentro de alguns meses comecei a frequentar a escola. Era legal poder conviver com outras espécies, mas elas não achavam legal conviver comigo. Tive que me contentar em ter apenas um amigo, o Chico. Ele era um menino cego e perneta que tinha vindo de outro país. Era bastante esperto quando se tratava em fazer burrice. Divertíamo-nos muito inventando milhares de brincadeiras. Lembro que eu era imbatível no pique-esconde e no pega-pega. Pena que essa linda amizade só durou até o temido ensino médio (Chico não era tão descolado como eu). No ensino médio conheci muitas pessoas. É certo que não podemos considerar os professores e serventes da escola como amigos íntimos, mas eles eram tão agradáveis e gentis comigo. Foram três anos inesquecíveis. Aprendi muito durante essa saudosa fase de minha vida.

Logo depois que sai do ensino médio fui para faculdade a fim de realizar o meu grande sonho de ser médico. Logo no primeiro dia de aula fiz alguns amigos. Eles eram mudos e se comunicavam através de sinais, por isso fiquei meio deslocado durante as conversas. Mas eu tinha uma meta a cumprir: Faria amigos de verdade. Então por coincidência do destino conheci José, o porteiro goiano que sabia falar a linguagem dos sinais. Em algumas semanas aprendi quase tudo, mas de nada adiantou. Meus amigos mudos riram de mim, alegando que eu gesticulava com sotaque de caipira (maldito José). Mas não desanimei. Continuei o curso e me tornei um dos melhores alunos de toda a universidade. Conheci algumas meninas e por pouco não me casei com uma delas. O nome dela era Alice. Um metro e setenta de pura beleza, um olhar com castanho caramelado e uma boca tão carnuda que lembravam duas linguiças empilhadas, essa era a mãe de Alice. Alice infelizmente não herdou os traços genéticos de sua mãe. Mas sim os do pai, um sujeito baixinho e magricela que usava dois binóculos nos olhos. Alice teria sido uma boa esposa, pena que sua alergia fulminante a barba masculina a afastou de mim.

Em seis anos terminei o curso e fui trabalhar em uma clinica que era especializada em anões com mania de grandeza. E em pouco tempo enriqueci e abri a minha própria clinica. Foi uma grande vitória em minha vida. Mas não adiantava nadar em dinheiro e não ter uma família com quem gastar. Estava decididamente a casar, ter filhos e mais tarde ser avó. Então sai em busca de um amor. Eu desejava uma paixão que logo de cara arrebatasse meu coração. E por ironia do destino, justamente neste período de minha vida, eu conheci Gisele. Ela era a mais nova funcionaria de minha clinica. Trabalhava como enfermeira. Que olhos Gisele tinham! Foi amor à primeira vista. Eu queria tanto poder falar para ela tudo que eu sentia. Pena que a minha estupida vergonha não deixava. Então deixei que o acaso tomasse conta das rédeas da minha vida.

O tempo foi passando e eu ficava cada vez mais velho. Mas Gisele ficava cada vez mais linda. Decidi que era hora de agir. Comecei a fazer certas insinuações para Gisele. Certo dia estava com ela na saleta do café, quando em um surto repentino de coragem eu disse: O coração é dividido em dois átrios. Ela em uma voz maviosa e serena respondeu: Que bom! Foi naquele exato momento que escorreguei em uma poça de ilusão e passe a acreditar que ela também estava caidinha por mim. Levado por essa ilusão, decidi da o próximo passo: Chama-la para sair. Então escrevi um bilhete e deixei dentro de seu armário. Infelizmente, em vez de botar meu nome, acabei optando em colocar apenas minhas inicias: J.P. Foi um péssimo negócio. Por um leve tropeço do acaso J.P também eram as iniciais de um dos empregados de minha clinica. João Paulo era um dos serventes. Era alto, robusto e de acordo com os muitos comentários femininos ele era lindo de matar. Gisele ao ler o bilhete logo associou que fora escrito pelo tal bonitão e, sem mais delongas, assim que o viu imediatamente se atirou em seus musculosos braços. Sem pouco entender, João Paulo também correspondeu a essa demonstração de afeto inesperada. Foi ali então que desistir do amor. Para ser sincero esse fato abiu meus olhos para a vida, me fez cair em um estado de reflexão, onde decidi mudar minha vida por completo. Vendi a clinica, mudei de cidade.

Em uma cidade nova, completamente desconhecida, decidir refazer minha vida. Juntei-me a um grupo de hippies e aprendi a fazer trabalhos artesanais. Tudo era muito calmo e sereno, havia apenas um único incomodo: O odor forte provocado pela falta de banhos diários. Mas em pouco tempo perdi a sensibilidade do olfato e devido a tal talento adquirido fui trabalhar em uma fábrica de esterco. O salário era uma merda. Mas devido a minha gloriosa capacidade empreendedora bolei um plano que me levaria ao ápice da sociedade novamente. Juntei toda merda de salário e usei para adubar toda uma plantação de uma planta que até então era desconhecida por mim, mas, segundos uns venezuelanos que conheci em um bar, elas davam muito dinheiro. E realmente, me deram muito dinheiro e muita fama. Passei a ser conhecido como o rei da Juana. Nunca entendi esse apelido. Mas por alguma razão ainda não conseguia me sentir realizado. Então abandonei minha carreira de agricultor e fugi com um circo tailandês.

Durante minha pequena passagem no circo trabalhei como lava-jato de elefantes. Mas como sempre não me senti realizado nessa carreira. Durantes alguns anos vaguei pelo mundo. Conheci milhares de pessoas, aprendi milhares de coisas. Vi coisas que até então era imagináveis para mim. Passei cerca de cinco anos apenas andarilhando. Quando de repente conheci um sujeito que mudaria por completo a minha vida. Seu nome era Noel. Ele era dono de uma empresa famosa no mundo todo e nas horas vagas se dedicava a criação de renas. Na verdade sua criação se limitava ao total de nove cabeças de renas.

Conheci Noel em um botequim no polo sul. Conversamos muito e descobrimos que tínhamos muito em comum. Gostávamos dos mesmos filmes, torcíamos pelo mesmo time e alimentávamos um ódio sem fim pelo coelhinho da páscoa (aquele pelo fofinho e branquinho me irritam até hoje). Bebemos e conversamos até alta madrugada. Contei a Noel toda frustração que havia vivido. E quando chegamos a um estado fenomenal de embriaguez, Noel, comovido com minha triste história, me fez uma proposta irrecusável: Substituí-lo em sua empresa.

A proposta me veio como um choque. O álcool em meu sangue logo se evaporou. Eu não sabia nada do trabalho de Noel, mas me sentia completamente fascinado por este emprego. De inicio minha resposta foi um amarelo ‘não’, que surgiu de minha envergonhada e murcha boca. Tentei convence-lo que não era ele que fazia tal proposta e sim o álcool. Mas Noel insistia compulsivamente. Dizia- me que eu não iria me arrepender. Que se não fosse o peso de sua avançada idade continuaria a trabalhar. E eu cada vez mais me sentia atraído por aquele emprego que eu nem mesmo sabia o que era. Depois de muita insistência falei que queria um tempo para pensar e que o mais rápido possível lhe traria uma resposta.

Fui para casa e fiquei pensando em tudo que Noel havia dito sobre o tal emprego. Ele dizia que era um trabalho encantador, que a cada ano ele tinha o poder de renovar os sonhos e esperanças de milhares de pessoas do mundo. Que eu seria adorado e que jamais cairia em esquecimento, pois todo ano eu seria lembrado. E o desejo de dizer sim se tornava cada vez mais forte dentro de meu ser, pois era isso que procurava todo tempo. Algo que pudesse atingir o mundo, algo que seria de uma suma importância para a sociedade. Fiquei três dias reclusos em meus pensamentos, até chegar a uma resposta final. Eu tinha enfim decidido o verdadeiro destino que eu sempre quis a minha sofrida vida. Encontrei Noel no mesmo botequim. Ele estava com o pessoal da bossa-nova tocando violão. Quando o vi, logo de cara, soltei um forte e claro ‘sim, eu aceito’. Noel apenas sorriu e me ofereceu uma cerveja para comemorar. E foi assim que me tornei o que sou hoje. Não que eu esteja completamente feliz com minha profissão, mas vá lá, não é tão ruim ser vendedor de bilhetes de loteria que anualmente sorteia uma bolada de um milhão de reais.

Luís Lobato
Enviado por Luís Lobato em 23/01/2013
Reeditado em 24/01/2013
Código do texto: T4101416
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