A LUFADA

Lá por 1965 eu fazia auditoria numa empresa de transporte aéreo (passageiros e cargas). Época em que tudo era difícil, a informática estava nascendo (pelo menos aqui no Brasil posso afirmar que era a Era da Pré-informática). Numa empresa de transporte aéreo o que se emite de documentos (bilhetes e conhecimentos de carga) é algo inimaginável. Imagine, então, o controle de tudo isso sem computadores e sem sistemas “on line”. Só quem vivenciou sabe. Todos os bilhetes (vou falar só deles) tinham como contrapartida uma conta intitulada “Transportes a Executar”. Uma via de cada bilhete, emitido em qualquer lugar do Brasil, seguia para o Departamento de Receita (o maior da empresa, com maior número de funcionários). Essas vias ficavam arquivadas em gavetinhas, aguardando outra via que era destacada no momento do voo e também enviada ao mesmo Departamento. A contabilização da receita efetiva se dava casando o bilhete voado com a via da gavetinha. Eu comparo a gavetinha com as famosas pastas sanfonas ou foles ainda hoje usados em algumas empresas para controle de contas a pagar e contas a receber (empresas não informatizadas). Esse arquivo, que ficou famigerado, mais parecia um ossuário no lado interno de muros de cemitérios, ficava nos fundos do Departamento. A inscrição das gavetas eu não me lembro de ser por agência ou numero do voo, mas isso pouco importa agora. Os corredores eram bem estreitos. Os funcionários se trombavam, alguns até eram obrigados a agachar-se, senão haja coluna.

Este introito foi só para dar uma ideia do panorama, porque o que eu vou falar mesmo é de um episódio que ficou famoso na empresa. O chefe do Departamento, aqui fictíciamente chamado de Leôncio, era um sujeito grandalhão, obeso, usava roupas largas. Era “dez para as duas” quando andava. Apesar desses “atributos” físicos era gente fina. Seus passos eram bem longos e abertos, chutava tudo o que ficava para os lados. Os funcionários amarravam os cestos de lixo junto aos pés da mesa, senão era queda em cadeia. O corredor já era estreito entre uma mesa e outra e mal dava para ele passar com o corpo, imagine com o paletó aberto varrendo tudo o que estava por cima das mesas. Quando vestia seu terno escuro ficava parecendo um morcego gordo. Era uma figura “sui generis”.

Um dia, após o almoço, quando dava visto nos lançamentos para contabilização, foi ao arquivo para tirar uma dúvida. Enquanto mexia nos bilhetes, cuja gaveta ficava na sua altura, um “prisioneiro” manifestou a vontade de sair. Ele olhou para os lados e não vendo ninguém, liberou o preso.

- Porco! Mal educado, nojento. Vou levar ao conhecimento da diretoria.

Enquanto o Leôncio se perdia com a cabeça na gaveta, não viu que uma funcionária baixinha, tinha entrada no corredor e de joelhos procurava um bilhete bem atrás dele e na direção de sua bunda. Foi um tiro a queima roupa na cabeça da funcionária. Diante desses apupos todos, os funcionários correram para o arquivo e ela aos prantos repetia.

- Porco! Porco! Porco!!!

- Desculpe-me, eu não te vi entrar e não ouvi você mexer em algo, disse o Leôncio.

Todos sabiam que ele não era de assediar as funcionárias, logo perceberam o ocorrido e caíram na gargalhada. Ela aos prantos foi à diretoria e contou ao diretor superintendente, pedindo a demissão do Leôncio. O diretor ficou atônito. Nunca ficara diante de um caso desses. Não sabia o que falar, queria rir, mas não podia.

- Está bem disse ele, vou chamá-lo para conversar, mas adianto que não vai haver demissão.

- Com que cara eu fico agora? Perguntou a funcionária.

- Peça para uma colega apanhar os seus pertences e volta só amanhã, você está dispensada por hoje, enquanto eu penso o que vou fazer. Amanhã pela manhã você vai direto para o Departamento Pessoal, respondeu o superintendente.

- O senhor está me demitindo? Eu sou vítima e fui eu que fui desrespeitada.

- Você não está demitida, apenas acho que não é conveniente voltar para a seção, senão você vai ver todos os colegas rirem de você, já que todos ficaram sabendo.

O Leôncio foi chamado à diretoria. Entrou todo desenxabido e foi logo falando.

- Você me conhece há mais de vinte anos e sabe que eu nunca faltei com o respeito a ninguém, mas aconteceu. A comida, servida hoje no restaurante, provocou muitos gases. Eu estava só e não vi nada de mais em soltar uma “lufadinha”. Eu não a vi abaixada atrás de mim. Se ela tivesse ficado quieta, eu teria me desculpado e só. Agora que ela fez todo aquele carnaval, ficou mal para ela e para mim, pois todos vão ficar sabendo. As coisas aqui se espalham com tanta rapidez. Vai até sair no jornal.

- Leôncio, da próxima vez que você quiser “lufar”, faça no lugar certo. Vá ao banheiro. Eu quando quero, faço no banheiro.

- Você tem o privilégio de ter um banheiro exclusivo. O nosso tem três vasos de micção, três latrinas e três lavatórios para mais de cem pessoas. Faz fila depois do almoço. Sorte sua que você hoje é diretor.

Tanto o Leôncio como o diretor se davam bem, sem cerimônias.

- Leôncio, arrume uma solução. Eu não vou demiti-lo e nem a ela. Por hoje eu a dispensei, mas o que vai acontecer amanhã e um problema para você resolver. Só me faltava esta. O diretor de uma companhia deste tamanho ter que resolver um problema causado por uma “lufada”. Isto é ridículo.

O chefe do Departamento Pessoal foi chamado à Diretoria. Disseram os funcionários que ele ficou pasmo quando recebeu o telefonema.

- Resolvam essa situação agora. Sem demissões.

- Eu já estou sabendo, disse o RH, e acho que todos que trabalham por aqui já sabem. Podemos transferi-la para outra seção ou para uma agência. Eu converso com ela amanhã e vejo a melhor conveniência para ela não ficar exposta. Nunca me vi diante de um caso assim. Isso é inédito e incrível. Você Leôncio, que já era famoso, vai para o folclore como o maior “lufador” da companhia.

Risos e mais risos. De fato o Leôncio ficou mais famoso, mas conseguiu manter o respeito dos funcionários, pelo menos quando estava presente, porque as piadas e os boatos que vieram depois foram os mais diversos. Houve até quem disse que a garota saiu chamuscada. Uma semana depois já não se comentava mais. A funcionária foi transferida para uma agência. Dizem que ela e o Leôncio nunca mais se viram.

SANTO BRONZATO
Enviado por SANTO BRONZATO em 03/01/2013
Código do texto: T4065764
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