VELHA QUE VÊ
Texto de Rafael Velloso
 
No ônibus...
 
Um rapaz entra no ônibus. O coletivo está parado no ponto final, e ele é o primeiro a embarcar. Ele anda e vai se sentar no último banco. Uma senhora já idosa embarca logo em seguida, fica olhando pelo ônibus parecendo procurar um lugar para se sentar, e após um tempinho escolhendo, senta-se ao lado dele. Ele estranha a escolha da senhora, sorri sem graça, a cumprimenta e abre um livro para ler. Chamam-se Heitor e Eleonora.
 
ELEONORA: - Acho que vai chover, né meu filho?
 
HEITOR: - É... Tempo maluco, né? Ontem fez um calor... Um sol!
 
ELEONORA: - É... Isso ataca minha alergia!... O senhor tá lendo é o quê? É a Bíblia?
 
HEITOR: - Não, não... É “Cinquenta tons de cinza”.
 
ELEONORA: - É o que isso? Livrinho de colorir?
 
HEITOR: - Não, não... É um livro sobre sedução, sexo... Tá fazendo muito sucesso no mundo!
 
ELEONORA: - Entendi. É tipo livro de sacanagem?
 
HEITOR: - É... Têm umas sacanagenzinhas aqui, outras ali... Olha, na verdade tem sacanagem no livro todo!... Mas não pense que sou tarado, hein! Estou lendo porque minha namorada me pediu tem um tempinho.
 
ELEONORA: - Jovens... Escuta, meu filho, me responda com sinceridade?
 
HEITOR (fechando livro): - Sim, sim...
 
ELEONORA: - Você também está vendo aquele moço sentado lá na frente?
 
HEITOR: - Que moço?
 
ELEONORA: - Aquele moço lá na frente, com o volante.
 
HEITOR: - Senhora, ele é o motorista, né?... É ele que tá dirigindo o ônibus, no caso...
 
ELEONORA: - Entendi... Ideia boba a minha!... Mas é que eu tenho tido umas visões estranhas, sabe? Vejo coisas que ninguém vê!... Meus netos e parentes acham que estou maluca!
 
Heitor sorri, e volta a ler o livro.
 
ELEONORA: - O senhor já vai descer?
 
HEITOR: - Não! Ainda falta um pouquinho...
 
ELEONORA: - Ah tá... Filho, você também está vendo aquela moça ali, sentada bem atrás do tal do motorista?
 
Heitor fecha o livro novamente. Está impaciente.
 
HEITOR: - Que moça?
 
ELEONORA: - Aquela ali, atrás do tal do motorista.
 
HEITOR: - A de branco?
 
ELEONORA: - Exatamente!
 
HEITOR: - Sim, estou vendo... Minha senhora, tem certeza que a senhora tem mesmo algum problema? Às vezes seus parentes tão zoando com a sua cara...
 
ELEONORA: - E aquele ali na janela, o gordinho?... Também está vendo?
 
HEITOR: - Sim! Estou vendo todo mundo que a senhora está vendo, minha querida!... Olha, tô vendo aquela periguete ali perto do cobrador! Tô vendo aquela nordestina comendo cocada escondida... Tô vendo até que aquela adolescente de uniforme tá com a mão dentro das calças do namorado!... Mais alguma coisa?
 
ELEONORA: - Ih, tá nervoso, querido?... Calma, é que sofro muita pressão. Esse lance de ver coisas, de ser taxada de velha louca gagá...
 
HEITOR: - Mas que coisas que a senhora vê demais, hein? Tô vendo tudo exatamente como a senhora tá vendo!... Agora posso ler meu livro?
 
ELEONORA: - Como quiser...
 
Heitor abre o livro com certa ignorância, respira fundo e volta para a leitura. Eleonora parece impaciente.
 
ELEONORA: - Mas aposto que num tá vendo aquele moço de terno que subiu agora!
 
HEITOR: - Senhora, por favor! Posso continuar lendo o livro?... Porra, o ônibus estava vazio, tinha um montão de lugares, tinha até os banquinhos reservados para idosos que vocês fazem tanta questão! Sempre reclamam quando tem alguém sentado neles... Mas a senhora resolveu se sentar do meu lado, e ficar brincando de vejo-não vejo?... Tá me dando dor de cabeça já!
 
ELEONORA: - Desculpa. Não sabia que estava sendo inconveniente. Mas é que não gosto de me sentir meio maluca!... Sinto que sou médium!
 
HEITOR: - A senhora num é médium, nem inteira, nem nada! Acho que tem é alucinação!
 
ELEONORA: - Esse lance de alucinação é coisa séria... Ih, e aquela criancinha ali? O senhor está vendo também?
 
Heitor se levanta estressado.
 
HEITOR: - Quer saber? A senhora conseguiu!...Chega!... Motorista, pare o ônibus que eu vou descer!... Motorista! Eu quero descer! Pare o ônibus!... Miserável! Tá fingindo que num tá me escutando...
 
Uma passageira se aproxima da saída do ônibus e a porta se abre.
 
HEITOR: - Ah, pra mulher ele abre!...
 
ELEONORA: - Tchau, moço!
 
HEITOR: - Vai pro diabo que te carregue, velha maluca!
 
Assim que Heitor desce do ônibus, notamos que suas costas estão muito sujas de sangue. Outro rapaz se aproxima de Eleonora.
 
RAPAZ: - Senhora, esse livro é seu?
 
ELEONORA: - Que livro?... Ih, num é que o menino nervosinho que desceu esqueceu o livro de sacanagem dele!
 
RAPAZ: - Ué... Menino que desceu?... Num tinha ninguém aqui até agora... Na verdade, eu estava até preocupado lá da frente olhando a senhora falando sozinha aqui atrás, o ônibus balançando a beça. Pensei que fosse cair na primeira freada.
 
ELEONORA: - Sozinha? Eu estava falando sozinha?
 
RAPAZ: - É. A senhora tava batendo maior papo descontraído com ninguém...
 
ELEONORA: - Então o senhor não estava vendo aquele moço que estava sentado aqui ao meu lado...
 
RAPAZ: - Minha senhora, não havia ninguém... E posso ficar com esse livro pra mim? Dizem que só tem sacanagem...
 
ELEONORA: - Pode ficar sim!... Cacilda! Eu sabia que num estava maluca... Mas me diz, querido. E aquele moço com o volante? O senhor está vendo?
 
FIM
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 07/11/2012
Reeditado em 10/11/2012
Código do texto: T3972874
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