OS PAPELOTES DE "MADAME" CHARLOTTE

Eu sempre fui uma ótima fisionomista e, de todas as memórias das quais somos dotados, a memória visual é a que menos me trai.

Ou a que menos me traía...

Todavia, conforme o tempo passa, ah, tenho que admitir, vez ou outra já me vejo sendo ludibriada pela minha excelente memória, e alguns rostos que já passaram por mim nem sempre eu os reconheço assim tão de imediato.

Mas ali, naquele caso, eu prontamente seria perdoada posto que nem o local e tampouco as circunstâncias do rosto me permitiriam distinguí-lo entre tantos outros que ali estavam.

Fato é certo: há pessoas que fazemos questão de esquecer, embora sejam totalmente inesquecíveis e eu tinha um grande álibi: aquela madame era uma delas.

Eu a conheci há muitos anos atrás, talvez uns onze anos que não a via, e ela se tornou muito marcante para mim porque era uma dessas espécies de "madames" sem pedigree.

Nada contra as madames mas tudo contra certa falta de "pedigree" que para mim eu o defino como "educação".

Charlotte era o seu nome.

"Charlotte com dois "ts", sempre frisava...e aquilo me irritava.

Assim que chegava ao ambiente social logo esticava a mão direita e exclamava no tom mais altivo deste mundo, e dos outros mundos penso que também: "encantada Charlotte...com dois ts" e deixava bem claro que a tal pessoa bem mais idosa, sempre ao seu lado, era " miss Hortência" a sua dama de companhia, ambas conhecidas no bairro inteiro...

Era uma dessas pessoas eternamente jovem e arrogante, dessas que cansamos de ver por aí, que fazem questão de não ser "plebe" no social embora sejam de chocantes rarefação espiritual e comportamental.

"essa mulher nunca vai tomar jeito"-às vezes eu ousava pensar...

Lembro-me que nas entrelinhas dos seus diálogos sempre fazia uma subliminar divisão social entre absolutamente todos que a cercavam, num "auto- enaltecimento" de espantar até Narciso.

E o destino, dia desses, nos colocou ali, num salão de beleza da cidade aonde de imediato seria impossível reconhecer qualquer ser conhecido das nossas tantas memórias.

Outrossim, convenhamos, com aqueles tantos papelotes ouriçados, aqueles rolinhos que espetam nossos fios de cabelo para mechas, e com a face besuntada de produtos para peeling qualquer famosidade se torna totalmente despersonalizada.

De fato, aquilo tudo se tratava dum horroroso disfarce para qualquer mulher...inclusive para ela.

De repente, papo vai, papo vem, em meio às suas opiniões e receitas sobre todos os seus recursos de rejuvenescimento pelos tantos anos já passados e quando eu ainda me encontrava "in natura" e distraída com o entorno, assim me exclamou ela em alto tom olhando em minha direção:" querida, se lembra de mim, você não é a fulana de tal?"

Demorei para varrer meu "disco rígido " de onze anos atrás e num lapso da memória, tentando ser o mais elegante possível lhe respondi:

CLARO QUE ME LEMBRO, A SENHORA NÃO É DA DONA HORTÊNCIA?

E ainda tentando ser - nunca falsa mas sempre cortês! -eu ainda lhe acrescentei:

A senhora está igualzinha...e aonde anda a sua dama de companhia, a senhora CHARLOTTE?

Seria desnecessário aqui relatar a saia justa na qual me meti.

Nem me esclareceu que era ela a madame CHARLOTTE com dois TS.

Pedi humildemente desculpas pela meu lapso de trocar os nomes.

Bem, moral do fato: às vezes somos vingados pela vida sem grandes esforços ou premeditações e ali pude entender o velho dito do povo: de fato a vingança é uma prato que se come frio...e nesse episódio percebi que prato frio é até meio sem gosto...

Nota:

Fato verídico, nomes fictícios, menos o meu!