O GATO DE NOVE RABOS & MAIS
O GATO DE NOVE RABOS I (31 AGO 12)
Dizem alguns que ganha sete vidas
cada gatinho ao nascer; para outros, nove,
mas por entre mil perigos o animal move,
sem mais sofrer do que minúsculas feridas.
Em especial no cio, nas aguerridas
disputas pela fêmea que o comove,
tanto o que perde, como quem o sove,
algumas vidas, de certe, veem perdidas.
E são essas multidões desiludidas
que acompanham o corpo do gatinho,
todas as almas por ele descascadas,
como as daquele que tomou, quando vencidas
essas lutas de telhados e escarninho,
miando em coro tais desencarnadas...
O GATO DE NOVE RABOS II
Alguns afirmam que dos cantos nos espiam
almas de gatos, enquanto o corpo vive,
que lá das sombras sedento olhar nos crive,
enquanto os próprios olhos nada viam.
E também dizem esses, que em tal criam
(embora eu mesmo dessa crença me contive),
que em certos pontos, por que já estive
almas de gatos durante as noites miam.
Vêm chamar pelo corpo que deixaram
ou no rancor de quantos os humilharam:
querem vingança uns, outros, abraços...
E quando um gato contempla fixamente
esse lugar em que não há nada aparente,
é que distingue de tais almas os traços...
O GATO DE NOVE RABOS III
Ou quando um cão sai a latir descompassado,
sem ter motivo aparente para tal,
talvez contemple algum tênue ser do mal
de tocaia, com seu rabo já eriçado!...
E se tivermos algum gato bem cuidado,
é só a ele que ameaçam, afinal,
na ambição de retomar corpo mortal,
enquanto o veem saudável a seu lado...
Quiçá por isso os bichanos, irrequietos,
querem entrar em casa e, então, sair,
sem escolher um pouso permanente...
Pois veem as almas de seus desafetos
ou as próprias sombras perdidas ao fugir
de algum perigo encarado frente a frente!...
GELISPEL (Sussurro) I – 1º SET 12
Que sensação seria ter nos braços
a mulher mais formosa deste mundo?
O que haveria a despertar, no fundo
da mente e coração, por tais abraços?
Ao contemplar no amor os lindos traços
dessa Helena tão famosa, que fecundo
ciclo poético gerou, sobre o iracundo
combate provocado em seus encalços...?
Mas essa história de beleza é estranha:
o que alguns tomam por belo, é indiferente
para aquele que se encontra do seu lado.
E o que desperta amor é outra façanha,
pois um encara o dom, cinicamente,
que a qualquer outro deixa entusiasmado...
GELISPEL II
É quase certo que não queria ter agora
essa Helena de Tróia emurchecida,
na melhor das hipóteses, envelhecida,
múmia e restolho do que foi outrora...
E bem percebo que já se foi embora
a derradeira poeira recolhida
por Zéfiro ou Éolo, distribuída
por longos prados para além da aurora...
Talvez... se apresentando toda bela,
com sua carne a uma vez firme e macia,
a saliva em sua boca umedecida...
Quiçá tornada novamente em uma donzela,
com voz maviosa... Sim, talvez seduziria
a reencarnada lenda malferida...
GELISPEL III
Se me surgisse, em sonhos renovada,
sem sombra impura que recordasse a morte,
sem a mágoa vingativa de sua sorte,
sem a vaidade de sua vida airada...
Se repetisse a frase murmurada,
antes que o sonho me chegasse ao corte,
com toda a gentileza que comporte
a doce amada que se mostra enamorada...
E me esquecesse, afinal, quem ela fora,
a dama antiga que causou o malefício
de tanta gente (ou serviu-lhes de pretexto),
eu poderia entregar-me a tal demora,
no usufruto do derradeiro benefício,
inda que apenas em onírico contexto...
GELISPEL IV
Contudo, se outra helena me surgisse,
tida por todos a mulher mais bela
e viesse sussurrar à minha janela,
dificilmente à sedução me permitisse...
O que eu desejo é permanência que dormisse
entre meus braços, não jovem donzela,
mas persistente e luminosa estrela,
que me aquecesse perante minha velhice.
Pois que faria então, se Helena viesse,
ou qualquer outra mulher de igual beleza,
para me encher de suspeitas de traição?
Destarte escolho, caso me aceitem prece,
que me conservem a companheira da certeza,
sempre formosa no meu coração...
O RIO DO ARCO-ÍRIS I (2 SET 12)
Sob um ponto de vista, é o rio da morte;
matou as rochas por ele atravessadas,
seus estratos esculpidos por passadas
calculadas e lentas de seu corte...
Os fragmentos da rocha, em nova sorte,
qual esmeril suas arestas transformadas,
lixas moles, mas constantes esfregadas,
recortando suas irmãs de maior porte.
E a rocha dura se transforma em vasa,
ao se romper o obstáculo derradeiro,
quando um filete de água chega ao mar,
logo aumentando o sulco de sua casa,
sem hesitar, num ritmo certeiro,
cada borrifo em seu manso martelar...
O RIO DO ARCO-ÍRIS II
Em alguns pontos dele, é encarnado,
a sangue humano fresco similar,
escorre em turbilhão, a encachopar,
qual recém de ferida derramado;
porém se vê o verde logo ao lado,
verde limoso, verde-musgo, verde-mar,
o amarelo do fundo a cintilar,
seiva de haste e caule degolado;
são rochas negras, marrom, acinzentadas,
passam espumas em brusca revoada,
por entre lâminas de roxo e azul-anil,
faixas laranja e carmim disseminadas
nessa massa de cores esmagada,
como rostos esculpidos sem buril.
O RIO DO ARCO-ÍRIS III
Certamente não são cores, são reflexos;
nas mãos tomada, fica cinza-acastanhada
essa água de detritos incendiada:
mil redemoinhos em busca de seus nexos;
como almas humanas, presas nos amplexos
das emoções, sem cor determinada,
cândido o ódio, a inveja azinhavrada,
azul o beijo no carmesim dos sexos;
cada momento na meada rebrilhando
desses fios de emoções, desses impulsos,
paleta em descontrole dos hormônios,
enquanto os anos grisáceos vão passando
e as horas turmalinas em seus pulsos,
na sinfonia nasal dos feromônios...
MACCHU-PICCHU I (3 SET 12)
Sobre outro plano a lhama filosofa,
ante as ruínas de negror esmeraldino;
não na foto em tradição de sol a pino:
é ainda a aurora que o poema estrofa.
Que pensará a lhama, a capa fofa
a protegê-la do frio do clima andino...?
E quem sou eu, neste soneto pequenino,
quando Neruda do meu verso mofa...?
Porém seus olhos veem os patamares,
assim cobertos por negro verdor,
a calcular seu valor de nutrição,
do precipício acostumada em seus andares,
em que a relva é escassa e sem sabor,
Macchu-Picchu a ambicionar por refeição...
MACCHU-PICCHU II
Talvez calcule, em seu olhar lhameiro,
a distância que comporta tal abismo...
Igual que a lhama, no pensar eu cismo
sobre a distância do páramo altaneiro...
Talvez devera até criar neologismo,
ao assumir a indumentária de monteiro,
mas me contento com o termo pegureiro,
pois que sobrou a dizer do Nerudismo?
Mas lembra um bolo de algum aniversário
à lhama bicolor, verde glacê,
em seu desenho de figura escalonada,
a lamentar que o verde perdulário,
tão perto e tão distante que ela vê,
somente atice a sua fome demorada...
MACCHU-PICCHU III
Cada um de nós possui o seu santuário
e nele põe os deuses que prefere...
Dente do Buddha um Nirvana nos sugere,
outros tremem de emoção ante um sudário...
Para o quíchua, talvez seja um sacrário,
que pensamentos de glória na alma gere...
Para o turista, cujo passo o solo fere,
um mal-estar quiçá provoque, temporário,
Porque se “apuna”, por sentir falta de ar...
Para o arqueólogo, é um tesouro inconquistável:
não lhe permitem trazer a picareta...
E se limita, tão somente, a estudar,
mais uma vez, o monumento ponderável
dessa cidade que já deixou de ser secreta...
MACCHU-PICCHU IV
Falam que algures existe outra cidade;
talvez a lhama até a conheça bem,
ou seu pastor onde é saiba também:
véu de mistério em fina opacidade...
Mas Macchu-Picchu é o alvo da vaidade
dos viajantes de eterno vaivém:
que lá estiveram, contar não se contêm
das maravilhas que encontraram de verdade.
Sem dúvida, é soberbo esse espetáculo,
hoje vedado à lhama e até ao guanaco,
preservado na receita do turismo...
Que até o alcança, sem achar grande obstáculo,
tomando um trem, qualquer turista fraco,
cujo pulmão não se preste ao alpinismo...
NOITES DE PAPIRO I (4 SET 12)
Há muito guardo minhas noites ressecadas
em cartões aproveitados de outros fins,
de remédios, de rolos ou de afins,
numa gaveta alta bem guardadas...
Para não serem assim contaminadas
por bactérias, por mofo, por sem-fins
de vírus marchetados de alfenins:
nas as conservo em bilhas consagradas...
Cada noite em palavras traduzida
e algo me impede de tocar nesses rascunhos,
para os passar a limpo e os difundir,
pois cada frase que descubro constituída,
provoca logo a impressão de novos cunhos
e assim conservo as minhas noites sem dormir.
NOITES DE PAPIRO II
Não são minhas noites velhos pergaminhos
que o tempo ressecou, mas que perduram,
nem palimpsextos que técnicos procuram,
em sua busca de secretos escaninhos
raspados e reusados... Comezinhos
escritos de litanias que não curam
ou preces seminais, que as traças furam
e muito menos os papiros em seus ninhos.
Guardo das noites velhos pensamentos
que quando leio, nem recordo mais;
talvez nem sejam meus os sentimentos,
no temporário perpétuo do ademais,
mas só reflexo de passados julgamentos,
que se ocultaram nas noites do jamais.
NOITES DE PAPIRO III
Também ocorre coisa semelhante
com essas noites que já transcrevi
para o computador, que pus ali
e de minha mente fugiram, nesse instante.
Existem noites de sonho delirante.
Existem noites de amores que perdi.
Existem noites de amores que vivi.
Existem noites de um momento triunfante,
em que meus dedos, em seu desenfreio,
redigiram as gotas de minha mente,
na busca vã do efeito permanente,
na erupção voluntariosa do meu seio,
esses instante arrebatados do passado,
que assim conservo firmes a meu lado.
NOITES DE PAPIRO IV
Não são escritos de filósofos ou poetas,
de quem somente se conheciam citações,
ou dos profetas as velhas previsões,
nem dos artistas anotações de estetas;
mas tampouco se revelam as secretas
listas de cereais ou de frutas de estações
que alimentaram falecidas multidões,
nem de viagem comercial estoque e metas.
Pois não guardei em minhas noites de papiro
tão só minhas glórias próprias e minhas queixas,
mas sem limites de palavras corriqueiras,
cumprem minha pena em solitário giro,
sob influência talvez de outras endeixas,
por entre imagens nem sempre alvissareiras.
NOITES DE PAPIRO V
Não incluíram rimas de pobreza,
nem imagens sem cunho original,
nem receitas culinárias, afinal,
nem inventários frios e sem beleza.
Não mostram listas de reis, em altiveza
e nem ao menos meu queixume natural,
que inda tivesse de dores cabedal,
manifestaram-se com plena singeleza.
Minhas noites de papiro incluem vozes
sussurradas nas costas de minha mão,
sem que a mente ou o ouvido as percebesse
e se falam de outras lástimas atrozes,
talvez provenham de alheio coração
de quem momentos de agonia recebesse.
NOITES DE PAPIRO VI
E não buscaram artimanhas de linguagem,
mas um falar mais ou menos acessível,
que se mostrasse, no geral, legível,
sem estranhos papiamentos (*) em voragem.
Porque essas noites captadas com coragem
não são apenas de meu sonhar possível,
mas se destinam de forma perceptível
para ti, que as refaças à tua imagem.
Não são minhas essas noites... Seus papiros
ainda aguardam a impressão do sentimento
que com teu próprio coração lhes atribuas;
e o que interpretes delas, nos teus giros,
que signifiquem em teu próprio julgamento,
porque essas noites de papiro são as tuas.
(*) Dialeto da América Central, mistura de inglês, espanhol, holandês e outras línguas.