A origem do “uai” WRITTEN BY: PROFA. FRANCINE

A origem do “uai”

WRITTEN BY: PROFA. FRANCINE

A origem do “uai”

Interjeição característica de Minas Gerais torna-se alvo de toda sorte de palpites de pseudoetimólogos sobre suas raízes na cultura

Mário Eduardo Viaro

Segundo pseudoetimólogos, o ex-presidente Juscelino (centro) teria encomendado pesquisa sobre origem do “uai”: fantasia e irresponsabilidade viram spam na internet

Para os pseudoetimólogos, a origem das expressões é o assunto predileto. Apesar de étimos de expressões e de nomes próprios serem os mais difíceis de localizar nos textos, são ainda hoje as que no mercado etimológico têm mais demanda. Dou aqui um exemplo extraído do Correio Braziliense (supostamente, em seu suplemento Revista do Correio, de 18/1/2009), enviado a mim pela minha aluna Ágata Soares:

“Você sabia como surgiu a expressão popular dos mineiros “uai”? Segundo a professora Dorália Galesso, foi o presidente Juscelino Kubitschek que a incentivou a pesquisar a origem. Depois de exaustiva busca nos anais da arquidiocese de Diamantina e em antigos arquivos do estado de Minas Gerais, Dorália encontrou explicação. Os inconfidentes mineiros, patriotas, mas considerados subversivos pela coroa portuguesa, comunicavam-se através de senhas, para se protegerem da polícia lusitana. Como conspiravam em porões e sendo quase todos de origem maçônica, recebiam os companheiros com as três batidas clássicas da maçonaria nas portas dos esconderijos. Lá de dentro, perguntavam:

- Quem é?

E os de fora respondiam:

- UAI – as iniciais de “União, Amor e Independência”.

Só mediante o uso dessa senha a porta seria aberta aos visitantes. Conjurada a revolta, sobrou a senha, que acabou virando costume entre as gentes das Alterosas. Os mineiros assumiram a simpática palavrinha e, a partir de então, a incorporaram ao vocabulário”.

Achismos Quando encontro argumentos desse tempo, tenho vontade de desistir de qualquer contribuição para o estudo etimológico. Parece ser luta inglória combater algo que meios de comunicação difundem e os blogs inconsequentemente multiplicam. O pior é que todos falam com convicção inabalável sobre os seus achismos, como se qualquer tipo de explicação retirada da cartola fosse igualmente fidedigno.

Mário Prata, no prefácio de seu Mas Será o Benedito? (São Paulo: Globo, 1996) talvez seja o único que confesse honesta e abertamente a pilhéria escondida nas suas soluções:

“Sempre tive a curiosidade de saber a origem de certas expressões brasileiras. Comecei a pesquisar e descobri que cada autor (e/ou filólogo) dá uma versão diferente para a mesma expressão. ‘Para inglês ver’, por exemplo, encontrei quatro origens diferentes. Já que a situação era essa, resolvi escrever este livro, dando as minhas ‘versões’. Apenas seis são reais e explicadas por Câmara Cascudo. Nestas dou a fonte (…) Invenção pura. Não leve a sério. Mas divirta-se!”.

Apesar disso, nos blogs há muitos que inadvertidamente usam o livro de Prata como autoridade no assunto. Entretenimento não é conhecimento, embora a busca do conhecimento possa ser algo divertido, quando se tem o gosto pela pesquisa.

“Festa do uai”, que ocorre todos os anos em Poços de Caldas (MG): interjeição que instiga o imaginário

Why x uai Voltemos ao “uai”. Qual seria a minha posição? Antes de qualquer coisa, penso o seguinte: se etimologia é uma ciência, não existe a minha explicação. Eu não sei de antemão. Duvido que alguém saiba. A minha postura é metodológica: submetamos as propostas que existem a um rigor científico. Se não passarem, são achismos. Deveriam ser ignoradas. Por que digo que são achismos? Um dos comentaristas de um blog em que está divulgado o texto sobre o “uai” retruca:

“Eu conhecia a história de outra forma: a origem se deu pela presença inglesa na região e o termo why (por que), aí ficou ‘uai’”.

Presença inglesa em Minas Gerais? Quando? Onde? Mesmo que houvesse (suponhamos, na criação da malha ferroviária do interior), essa presença seria tão influente assim? O que move a “teoria” desse leitor é a semelhança fonética. Isso é o mesmo que nada. Com base em duas ou três palavras é possível que imaginemos que qualquer língua do planeta tenha influência sobre outra.

Já fizeram isso com o tupi e o japonês, com o quíchua e o húngaro. Em persa, “mau” se diz bad, como em inglês; em malaio mati é “olho”, como em grego moderno. E daí? Coincidência. Na minha cidade de origem, Botucatu, houve um padre que jurava que o nome não vinha do tupi (significa “bons ares”), mas do sumério (e, nesse caso, significaria algo como “o ninho da serpente”). A pergunta que me cabe é: como os japoneses ou os sumérios tiveram contato com os tupis? Por que, rastreando a história do persa e do inglês (ou do malaio e do grego), observamos que havia formas mais antigas que surgiram independentemente e não eram tão parecidas com as formas modernas? E mais: por que só essas palavras sobraram, se houve esse suposto contato?

Maçonaria A distância não é problema: o malgaxe e o rapanui são línguas faladas a muitos milhares de quilômetros do grande foco das línguas malaio-polinésias, no entanto são línguas malaio-polinésias, pois não só há muitas palavras parecidas em seu vocabulário, mas a estrutura linguística é parecida. Semelhanças entre apenas uma ou outra palavra, bem como semelhanças fonéticas ou sintáticas não valem. Não garantem afiliação de modo algum. Nesse erro, porém, estão muitos linguistas americanos, como Merrit Ruhlen, porta-voz do trombettismo.

Mas e a hipótese maçônica do “uai”? Primeiramente, eu gostaria de observar o seguinte. Interjeições não são palavras. Apesar de tradicionalmente serem estudadas pela Morfologia, as interjeições são signos linguísticos muito especiais. Independem da oração, às vezes valem por uma oração inteira. Não participam do mesmo sistema fonológico presente nas demais palavras (por exemplo, em português, as interjeições podem ter vogais longas, cliques, tons e outros fenômenos não distintivos).

Mentira Se expressões e nomes próprios têm etimologias muito difíceis, as interjeições, a meu ver, têm etimologia impossível. Na onda das interjeições estão as “palavras expressivas”. Além disso, a explicação etimológica por meio de uma sigla U.A.I. é banalíssima e muito antiga. Daí a bobagem de dizer que a palavra news é um acróstico dos quatro pontos cardeais (north, east, west, south) ou que a da palavra latina cadaver seria, segundo o raciocínio medieval, o truncamento das primeiras sílabas da expressão caro data vermibus (carne dada aos vermes). Na verdade a palavra cadaver está ligada ao mesmo radical do verbo cadere (cair, morrer). Platão caiu nesse tipo de etimologia fantasiosa. O pior é que mil anos de verdade não conseguem vencer um segundo de mentira, se essa mentira tiver apelo.

Mais preocupante que imaginar que interjeições têm etimologia e que “uai” provenha de uma sigla é a própria história em si narrada pelo texto. Se houvesse algum fundo de verdade, o contrário teria acontecido: os inconfidentes maçônicos se teriam valido da interjeição já existente para fazer sua senha de modo mnemônico e não o contrário.

Como explicar a espantosa divulgação desse “uai” maçônico na boca do povo não maçom? Como se tornou espontâneo tão rapidamente? Questionamentos sobre a divulgação das palavras raramente são feitos. Palavras de origem artificial, como seria o caso, só têm ampla divulgação, antes da invenção do rádio, televisão e internet, nas classes baixas, se estiverem vinculadas aos ambientes que seus integrantes frequentem (por exemplo, a igreja ou a escola primária). O pseudoetimólogo vale-se do desconhecimento histórico do falante para inventar qualquer explicação inverossímil.

Dialetologia Eu teria ainda outra pergunta, mais complexa: quem disse que “uai” é exclusivamente mineiro? Todo mineiro usa “uai”? Só se usa “uai” em Minas? E as cidades de fronteira? Não há estudos sérios de dialetologia que respondam isso. Tenho dificuldade de imaginar que, passada a fronteira fictícia de algum estado, algo substancial aconteça, mas é dessa forma artificial que os nacionalismos criam línguas até então inexistentes, como ocorreu com o sérvio, o croata e o bósnio. Quando a federação divide dois estados, cada um passa a ter automaticamente peculiaridades distintivas? Ou isso vem do nosso preconceito e necessidade de colocar tudo e todos em rótulos? Richard Dawkins chama isso de “pensamento descontínuo”. Dele nem mesmo os pesquisadores da linguagem estão a salvo se não refletirem bem.

Mário Eduardo Viaro é professor de língua portuguesa na USP e autor dos livros Por Trás das Palavras (Globo: 2004) e Etimologia (Contexto: 2011)

RETIRADO DE http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12487 ACESSADO EM 27/02/2012 às 16h10