Continuando de: http://www.recantodasletras.com.br/humor/3721205
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Duas semanas depois...
Ícaro foi levar Daniela em casa, após passarem um dia inteiro passeando no shopping. E a despedida nunca fora tão demorada. Ao voltar para casa, encontrou sua mãe sentada na poltrona com uma calcinha minúscula presa nos dedos.
- Então vocês voltaram? – perguntou ela com um tom autoritário. – Você e aquelazinha reataram esse namoro de vocês, não é?... Aquela janela quebrada... Como não reparei isso!
- Mãe, ela se arrependeu! Eu disse que ela me amava!
- Ama coisa nenhuma! Provavelmente ela se separou, curtiu tudo que não estava curtindo contigo, se esbaldou, e agora, que secou a sede, voltou para você! E o pior é que você a aceitou de volta, Ícaro Roberto!
- Mãe! Você devia estar feliz pela gente! Eu amo a Dani! A senhora tem que aprender a conviver com isso!
- Eu não quero essa garota dentro dessa casa! Respeite a alma de seu pai! A integridade dele!
- Integridade? A senhora é a primeira a lembrar que ele era um alcoólatra!
Dona Evenilda se calou.
- Não venha dar de santa agora, mãe. E é melhor se acostumar com a Dani. Se a senhora não a quer aqui dentro, ok, eu respeito. Mas meu namoro com ela vai continuar! E rumo ao altar!
- É só essa garota aparecer que você me destrata! Faça o que quiser da sua vida Ícaro Roberto, mas depois não diga que não avisei! Já fiz de tudo por você, já tentei abrir seus olhos, mas se quer teimar, que assim seja!
Ícaro, irritado, saiu da sala e foi para a rua novamente. Caminhou até a praça e lá permaneceu por algumas horas, conversando com Júnior, que finalmente revelou que fora sua prima quem dissera que Dani sentia falta dele.
Ao voltar para casa, encontrou sua mãe ao telefone.
- Incompetentes, Lúcia! Todos eles... – dizia ela irritada, mas ao notar a presença do filho, desligou. – Olha, seu celular tocou diversas vezes aí. Era número confidencial.
Ícaro não lhe deu muita atenção. Pegou seu celular sobre a cômoda, e foi para a cozinha. Levou um grande susto ao perceber que havia vinte ligações perdidas e todas de Daniela. Tomado pela curiosidade do motivo de tamanha insistência, imediatamente retornou.
- Oi amor, me ligou vinte vezes, é isso mesmo? –perguntou Ícaro carinhosamente.
- Liguei sim, seu Ícaro Roberto. Onde o senhor estava que não me atendeu, hein? Não ouviu o celular? É isso?
O tom de voz de Daniela intrigou seu namorado. Ela nunca havia falado daquele jeito, e nunca havia demonstrado ou feito cena por ciúmes. Parecia que as coisas realmente estavam dando certo.
-Calma, amor. Eu estava conversando com o Júnior. Te levei em casa, esqueci meu celular aqui. Jamais pensei que você fosse me ligar... Desculpa, tá? – desculpou-se ele fazendo voz chorosa.
Ela ficou calada por alguns segundos. Do outro lado da linha, se Ícaro visse a cena, com certeza estaria com medo. Sobre a mesinha do telefone, havia dezenas de canetas e lápis quebrados, todos à mão, e todos por Dani. Consumida pela raiva e desconfiança, começou a descontar sua raiva em objetos, e, que Deus o tenha, em seu periquito de estimação. Friamente, e imaginando que aquele fosse o pescoço de Ícaro, ela entortou o passarinho com a força dos dedos, enquanto escutava possessa, pela décima oitava vez, a secretária eletrônica do celular do namorado. Após isso, jogou-o morto dentro do vaso sanitário e deu descarga.
-Tudo bem, Ícaro. Eu te perdoo. Mas se eu souber que você tá mentindo para mim, eu não respondo por mim, entendeu?
- Eu não quero outra. Penei muito para te ter de volta, não te troco por ninguém!
-Acho bom! Muito bom! E que tal você vir aqui em casa agora, hein? Meus pais saíram, acho que só voltam de madrugada... o que acha?
Os olhos de Ícaro instintivamente se desviaram para o relógio de parede. Eram nove da noite, e se saísse naquela hora, e sua mãe soubesse que ia para a casa de Daniela, com certeza teria problemas.
- Poxa, Dani! Tá meio tarde... Minha mãe vai ficar falando no meu ouvido!... E tipo, eu tô cansadão!
-Ícaro, você está dando desculpas para não me ver?
-Claro que não, amor. Claro que não... Mas você conhece minha mãe!
-Ah o problema é você sair? Então tá! Deixa a janela aberta que eu vou até aí! – intimou Daniela desligando o telefone logo em seguida.
Enquanto ia para seu quarto e tentava arrumar um jeito de sua mãe não perceber a presença de Dani, Ícaro ficou pensando nas palavras do Pai Maria-João. Será que realmente as coisas estariam diferentes e era daquele tipo de diferença que ele... Ela... Que Maria-João se referia?
Ficou encucado por algum tempo e após isso, sentou-se sobre sua cama esperando sua amada.
O que ele não contava, era que sua mãe resolveria pela primeira vez, se desculpar pelo que tinha falado. E ao vê-la surgindo receosa na porta de seu quarto, imediatamente bateu a porta contra sua cara. Mas dona Evenilda não desistiu.
-Filho, eu sei que você está chateado comigo, e sei que falei coisas ruins da sua namorada. Mas você precisa entender meu lado...
Ícaro foi se aproximando da porta de seu quarto, mas sem deixar de prestar a atenção na janela do mesmo. Sua mãe continuava...
- Não conheço os pais dessa menina; Nunca conversei com ela; e os vizinhos dizem que ela não é lá muito confiável. Mesmo sabendo desses boatos, nem ela e nem você chegaram até mim para dar satisfações. Como vou confiar em alguém que entra na minha casa e nem bom dia dá?
Ícaro aproximou sua cabeça da porta, e encostou a testa nela.
-... Sei que errei agredindo-a, mas foi necessário! Eu estava irritada, e ela me olhava com aquele olhar debochado, sabe? Puxei mesmo o cabelo! Mas foi necessário! Só que eu andei pensando hoje, e vi que não vou conseguir mudar seu coração. Você está apaixonado... Não deu em nada nem mesmo depois de eu...
O telefone celular de Ícaro tocou nesse instante.
-Mãe, espera aê, que meu celular está tocando...- pediu ele indo até sua cama e conferindo que era Dani quem o ligava. –Oi amor, fala!
- Ícaro, você me ama? –perguntava Dani sussurrando. – Só me diz sim ou não.
Sem entender, o rapaz gaguejou por alguns milésimos de segundos.
- Ah, gaguejou? Você não me ama, Ícaro?
-Claro que te amo... Dani cadê você? Porque está sussurrando?
Ela não respondeu. Do lado de fora do quarto, dona Evenilda continuava seu discurso de desculpas.
-... Então filho, se é assim que você quer que seja sua vida, que seja ao lado dessa menina, faça como quiser. Só peço para que não a coloque aqui dentro de casa durante a noite...
Ícaro foi até a janela, insistindo em tentar algum contato com sua namorada pelo celular.
- Dani, responde! Cadê você?
-... Você me ama mais do que ama sua mãe?
- Que isso?! Que tipo de pergunta é essa, Daniela? São amores diferentes...
-Não foi isso que eu perguntei, porra! – reclamou a moça aumentando o tom da voz, mas logo voltando aos sussurros. – Você me ama mais do que ama a sua mãe?
-Dani, claro que não! Assim como você não me ama mais do que ama seus pais...
-Do que você está falando, Ícaro? Claro que te amo mais do que eles! Amo você mais do que a mim mesma! Você é que não me ama o suficiente!
-Dani, para com isso! Você está me assustando!
-Você ainda não me perdoou! Você ainda sente mágoas de mim por ter te deixado! Eu sabia!... Eu já disse que não sei o que aconteceu!
-Eu te perdoei sim! Para com isso! Cadê você?
- Jura que me perdoou? Me perdoaria de novo?
-Perdoei, meu amor. E te perdoaria! Te amo muito! Cadê você, hein!
-Ah, que bom que me perdoaria de novo! Tchau! – encerrou a menina desligando em seguida o telefone.
Ícaro ainda tentou contato, mas ao notar que ela havia desligado desistiu. Jogou o celular sobre a cama, deu uma última conferida na rua, e voltou para perto da porta de seu quarto. Estava exausto.
- Mãe? A senhora ainda está aí? – perguntou dando três batidas na porta.
Não houve resposta.
Chamou novamente e outra vez ninguém o respondeu. Preocupado, abriu a porta lentamente, e ao final do corredor, pôde ouvir os latidos de Guga ao longe.
- Mãe? Cadê a senhora?- perguntava ele enquanto andava no breu que sua casa havia se transformado.
Sentiu alguém passar por ele e se virou. Não tinha ninguém. Sentiu-se louco e que começava a ter alucinações. Continuou andando até a sala, e já perto, os latidos de Guga se calaram. Isso fez Ícaro ficar aflito.
Apressou os passos até a sala, e lá viu sua mãe caída no chão.
Imediatamente correu para socorrê-la, ela estava com o rosto colado no carpete, e ao virá-la, se desesperou ao notar sua garganta cortada. Largou o corpo ensanguentado no chão de qualquer maneira e se levantou. Não sabia para onde correr, não sabia a quem recorrer. Ouviu um apito na cozinha e foi até lá lentamente. Ao entrar, viu a luz de seu micro-ondas acesa. Aproximou-se do aparelho em passos curtos. Não tinha pressa. Provavelmente sua mãe havia deixado algo esquentando ali. Foi caminhando com sua mão esquerda erguida na direção da porta. Abriu-a de supetão e um jato de vômito saiu de sua boca instantaneamente. Dentro do eletrodoméstico, encontrou seu cãozinho Guga, completamente queimado e morto.
-Ícaro... – disse uma voz rouca que imediatamente ele reconheceu como de sua mãe.
Correu de volta para a sala.
Dona Evenilda estava tentando se levantar, enquanto segurava seu pescoço com uma das mãos, tentando estancar o sangue que jorrava.
-Mãe, calma! Não se mexa... O que aconteceu? – perguntava Ícaro caindo no choro.
- Vá embora! Eu te amo, vá embora... – repetia ela. – Eu te amo, meu filho. Desculpa por tudo que fiz. Eu não... Eu não devia ter me metido nessa história... Fuja agora!
-Mãe, calma! Eu também te amo, e sei que a senhora não fez por mal. Só queria meu bem... quem fez isso?
-Filho, eu... - tentava falar, mas o ar lhe faltava. – Eu mexi com coisas do diabo. Eu pedi às entidades que afastassem... Vocês dois...
Ícaro deu um passo para trás. Sua mãe parecia sufocar com a crise de tosse.
- Como assim, mãe?
Ela fazia força para falar, mas não conseguia. Respirou fundo.
-Eu procurei uma mãe... Um pai... Enfim, procurei um cara com cara de mulher, que prometia fazer um feitiço para afastar casais. Por isso arranquei cabelo dela. Eu precisava... Dos fios para a simpatia... Ah, como estou... Como estou enver...Gonhada...
Ícaro se lembrou de que o papel de Pai Maria-João fora encontrado justamente em sua porta, o que não poderia significar nada, se sua mãe não tivesse dito aquilo. Provavelmente Daniela ter mudado do dia para a noite com ele, querendo até mesmo o término de um namoro que, apesar dos problemas, ia bem, só poderia mesmo ser coisa de feitiço.
Levantou-se e ficou observando sua mãe agora morta. De repente, se sentiu observado. Virou-se lentamente, e outra vez levou um susto ao ver Daniela limpando uma faca cheia de sangue em seu próprio vestido.
- Que vaca! Essa macumbeira armou pra gente, amor! – disse indo na direção de Ícaro, muito tranquila.
-Ei! Vo... Você quem fez isso, Dani? Você matou a minha mãe?... Você... Tu cozinhou o meu cachorro?
-Ela era contra nosso amor! Ela mereceu! Ela acabou de confessar que fez macumba pra gente, Ícaro! Ela envolveu magia negra na história, amor!
O rapaz pensou em correr, mas viu que, por reflexo, ela o impediria.
-Pensa pelo lado bom, Ícaro. Agora somos só nós dois! A casa é nossa!
-Como... Como assim só nós dois? Eu não vou namorar uma assassina! Vou contar pro seus pais...
-Não perca seu tempo! Matei os dois também. Não queriam me deixar sair na rua há essa hora, falaram que os crackudos iam me estuprar! Agora você vê...
Ela realmente estava falando sério sobre isso. Minutos antes da última ligação para Ícaro, matou seus pais por serem contra o namoro dela com Ícaro. Muito por culpa de dona Evenilda, que vivia espalhando pelo bairro que a filha do casal tinha uma nova forma de sífilis, que era transmitida pelo olhar. Matou os dois enquanto faziam amor em seu quarto, e tentavam a posição mais perigosa do Kama Sutra, o “Topo”, na qual o casal fica parecendo uma dupla de escorpiões africanos albinos brigando por uma centopeia bípede da savana africana. Esfaqueou-os friamente, e ainda os cobriu para que morressem quentinhos.
- Você é louca! Vou te entregar na polícia, sua maluca! Você matou minha mãe... Você assou meu cachorro! Tadinho do Guga!
-A gente compra outro! Ei! Agora que caiu a ficha! Como assim não vai namorar uma assassina? Tá pensando em me deixar? Eu fiz isso por você, seu idiota!
-Eu estou te deixando! Você não é a Dani pela qual me apaixonei! Pela qual sofri para ter de volta! Você está louca! Você deve estar possuída por algum orixá brabo...
Daniela foi se aproximando do rapaz com a faca presa entre os dentes.
-Fique longe de mim! Saia daqui da minha casa!- gritava ele.
Assim que ela ficou mais perto, Ícaro tomou coragem e reagiu com um soco no rosto de Daniela. Ela caiu por cima da mesinha de centro, desacordada. O rapaz aproveitou, deu um último beijo na testa de sua falecida mãe, e assim, saiu de casa. A doida Dani estava com um dos olhos abertos, e pôde perceber todos os movimentos de seu amado. Deu um sorrisinho tranquilo e se levantou. Espanou a poeira de seu vestido, amarrou seu cabelo com uma presilha retirada dos cabelos de dona Evenilda, e saiu pela janela, num salto tão alto que nenhum humano normal conseguiria imitar.
- Você não vai me deixar Ícarooooo!!!! – disse gritando pelo nome do namorado.
Ícaro pôde ouvi-la gritar ao longe. Já estava na esquina, e pretendia ir até a casa de seu amigo Júnior. E foi.
Por dois dias não se ouviu falar de Daniela. A polícia fez buscas pelo bairro, nos bairros vizinhos, mas nada da menina. Alguns relatavam terem visto uma jovem bonita, porém louca, gritando aos quatro-ventos que era apaixonada pelo magrelo do Ícaro. Outros, diziam que ela havia criado asas, chifres e que sobrevoava o bairro após à meia noite, raptando moças virgens e bebês que não tivesse sido batizados ainda. E tinham aqueles que diziam que se você falasse três vezes, na frente de um espelho, com as luzes apagadas as palavras “Louca-Dani”, a tal louca-Dani aparecia e te levava para dentro do espelho.
O enterro de Dona Evenilda fora emocionante. Em parte porque apenas Ícaro, seu amigo Júnior, e por incrível que pareça, pai Maria-João compareceram. Ícaro ficou calado durante toda a cerimônia. Estava se sentindo culpado pela morte da mãe.
- Cara, você precisa sair da cidade, do estado! Essa mina vai voltar para te matar! – disse Júnior, muito incomodado com a presença de Pai Maria-João ali próximo, com aquela cara de traveco holandês que acabou de comer um bolo de maconha.
-Como ela ficou louca, cara! Minha mãe morreu de graça nessa história. Eu devia tê-la ouvido, me afastado. No fundo ela era uma ótima mãe. Quem mais daria mesada para seu filho até os vinte anos? Quem não o obrigaria à trabalhar? Agora eu tô ferrado! Não tenho mais família! – disse Ícaro quebrando seu silêncio.
Maria-João se aproximou dele, afastando automaticamente Júnior, que disfarçou e foi para o outro lado, longe do pai de santo.
- Eu sabia que tinha algo de ruim nessa história, hum! Senti vibração ruim, mas fui obrigado a fazer o trabalho. Os orixás devem ter ficado fulos, dois serviços na mesma pessoa. Agora isso! A moça tá louca, e duvido que eles subam fácil, hum!
-Maria-João, mas e agora? Como vão parar essa louca? Ela está possuída?
-Ah, provavelmente, né? Pra matar essa maldição, só matando o cavalo.
Júnior se intrometeu.
-Mais um animal morto nessa história? O IBAMA não vai cur...
-Cavalo é o nome do corpo que recebe o espírito, Júnior. – explicou Ícaro.
Maria-João continuou.
-O Amor de ocês foi mexido. Sua mãe pediu uma coisa, por telefone. Eu disse que fazia serviços por telefone? Breve farei pela internet...
-Continue, por favor! Há uma louca obsessiva solta por aí, Maria-João.
-Hum! Aí ocê vai e pede o contrário, que a moça ame tu. Os orixás não gostaram, e agora tão de pirraça. Num vão sossegar até que ou tu, mi fio, ou a moça vá viver perto deles.
Ícaro ficou pensativo. Seu devaneio foi quebrado por um avião comercial que cortou o céu nublado sobre o cemitério, com uma faixa estendida, anunciando que faltava um dia para o dia dos namorados.
- Ela com certeza virá atrás de mim. O dia dos namorados está aí. Preciso me esconder.
Maria-João segurou os ombros de Ícaro. Júnior não gostou daquilo, e se afastou ainda mais, fingindo se esticar para ver mais um pouco do avião.
-Tenha fé. Cê é um bom rapaz. Só precisa se livrar desses encostos, hum! A culpa disso é de sua mãe. O feitiço dela foi pesado. Os orixás gostaram. Ocê precisa matar essa menina, hum! Matar ela logo, antes que ela mate ocê. Isso seria ruim para ocês.
-Ruim pra mim que vou estar morto, né? – Questionou Ícaro.
-Não senhor, mi fio, ruim pros dois! Se ela te mata primeiro, aí ocê vai viver é pra toda eternidade ao lado dessa pessoa. Seu espírito vai ficar preso com ela é pra sempre, hum!
Aquele detalhe deixou Ícaro ainda mais nervoso do que estava. Não teria coragem de matar Daniela... Sabia que teve coragem para lhe dar um murro muito do bem dado no meio de sua fuça, mas matar... Bem, aí seria diferente.
-Infelizmente eu num posso mais mexer com essa história, hum! Já me envolvi demais com esse trabalho, e preciso voltar pros meus outro clientes. Eu quero que ocê seja iluminado pelos orixás, e que iansã te proteja.
-Você num poderia me dar uma guia de proteção, Maria-João? – Pediu ele roendo as unhas, mas não sendo respondido.
Maria-João foi embora sentindo que algo de muito ruim estava para acontecer, mas deu de ombros, acendeu um charuto, e entrou no primeiro Mc Donald, pois estava com uma vontade louca de comer um Quarteirão com queijo, só que sem picles.
No fundo, no fundo, ele nunca fora muito com a cara de Daniela. Primeiro porque num carnaval, ela se negou a lhe dar um beijo, e segundo, porque ele achava que Ícaro, por mais esquisito que fosse, merecia alguém que lhe desse o valor merecido.
Cansou de ver seu amigo sofrer por ciúmes. Sofrer calado, e consentindo com as atitudes de Daniela. Cansou de vê-la reclamar das meninas que ele adicionava no Facebook, porém, ela mesma adicionava homens bombados e curtia tudo o que esses postavam. E, acima de tudo, ele sempre sentiu ciúmes de seu melhor amigo. Gostava muito da companhia de Ícaro, mas com a chegada e a volta de Dani, ele o perdeu novamente.
Chegaram à rua em que moravam e foram direto para a lanchonete do Seu Torto. Sentaram-se à mesa do lado de fora do estabelecimento, e ali, ficaram em silêncio.
- Dois dias que minha mãe se foi. E só hoje enterram ela. Cê viu como o rosto dela estava calmo? Nunca vi sua cara tão tranquila, Júnior. – comentou Ícaro quebrando aquele silêncio incômodo.
-A morte é mesmo engraçada! Mas sério, cara. Você precisa ver o que vai fazer da vida. Cê num pode ficar dando bobeira aqui na rua não. Essa maluca pode aparecer à qualquer momento e te matar. Você acha mesmo que essa ronda da PM vai adiantar de alguma coisa?
-Claro que não! Eles não conseguem prender bandidos da Vila Vadia, vão conseguir prender uma mulher com o diabo no corpo? Se alguém tem que tomar providência, esse alguém sou eu mesmo!
-Ícaro, até agora eu não acredito que você e sua mãe se envolveram com macumba! Precisava disso, cara? Brother, o que mais tem nesse bairro é mulherzinha. Você é inteligente, elas gostam disso! Não entra na minha cabeça! Você devia ter me contado! Eu te levava pro baile funk, e você podia se dar bem, véi!
O rapaz estava envergonhado. No fundo seu melhor amigo tinha razão, não precisava ter chegado à tamanho desespero. Mas entendia seu lado, pois estava cego de amor.
-Júnior, você não entende. Ninguém vai entender. Eu achava que a Dani era a mulher da minha vida, cara. Sabe o que é isso? Você pensar numa pessoa vinte e quatro horas, querer saber o que ela come, se está pensando em você... Isso é amor!
-Isso é obsessão! – interrompeu o dono da lanchonete, o seu Torto, que para surpresa de todos, estava falando mais ou menos normal.
-Ué, seu Torto. O senhor sabe falar? -perguntou Ícaro.
-Claro que sei! Mas às vezes minha língua embola. – revelou ele, sentando-se na mesma mesa que os rapazes. – Ícaro, sinto muito pela sua mãe. Ela era uma senhora respeitável, e te amava muito.
-Eu sei, seu Torto. O senhor não sabe como estou arrependido...
-No dia em que ela fez macumba pra você... Você sabe disso, né? Que ela fez feitiço pra tu largar...
-Sim, eu sei. Ela me contou antes de morrer.
-Ah, menos mal! Odeio ser fofoqueiro!... Bem, no dia em que ela fez o feitiço, ela veio aqui na lanchonete e me contou. Éramos muito amigos, mas não deixávamos transparecer, pois os vizinhos falam. Aliás, fui eu quem indicou o pai de santo à ela. O tal da Maria-João. Há anos me consulto ali, e sou católico, sabe? Há muito hipo... Hipo... Muita... Hipocrisia... Porra, saiu!... Muita hipocrisia nesse bairro! Um monte de gente aqui do bairro frequenta rodas de macumba, mas têm vergonha de assumir isso! Mas eu te digo, não se envergonhe disso. Tudo vale quando se tem fé.
-Eu estou envergonhado sim! Mas nem é por ter feito isso, é por ter apelado. Eu praticamente forcei a Dani à se apaixonar por mim novamente. Eu fui um idiota, incapaz...
-Ícaro, aprenda uma coisa, pior que ser cego dos olhos, é ser cego do coração. Se nosso coração não enxerga, fazemos coisas quais depois a gente se arrepende profundamente. Seu coração estava cego, não enxergou pois o amor o cegou. Você não tem culpa.
-... “Pior que ser cego dos olhos, é ser cego do coração!”, nossa, Seu Torto, pra quem não falava até poucos dias atrás, até que o senhor tá falando bem pra caramba, hein! Vou até postar isso no Face. – disse Júnior sacando seu celular de dentro do bolso e transcrevendo o que acabara de ouvir.
Seu torto se levantou da mesa.
-Faça o que tiver que ser feito, Ícaro. Não creio que a curimba seja a solução dessa vez. Às vezes os santos, orixás, deuses, que seja, às vezes eles deixam que nós resolvamos os problemas por conta própria, por aprendizagem. Veja eu! Há anos me consulto na macumba, vou à igreja católica, e só esses dias recuperei minha fala totalmente. E olha, estou falando muito bem! Tudo tem seu tempo, não adianta a gente querer colocar o burro na frente da carroça...
- Hahahahaha!... Burro... – repetiu Júnior conferindo se alguém já havia curtido seu post no Facebook.
Seu Torto se levantou e voltou para dentro da lanchonete. Ícaro ficou pensativo e estudando tudo que havia escutado.
-Preciso fazer alguma coisa...- disse ele.
-Ih, Ícaro! Doze pessoas já curtiram a frase do Seu Torto que postei, olha! Vamos ver quem...
Os dois se aproximaram e conforme Júnior ia lendo os nomes das pessoas, seu amigo acompanhava com os olhos. Ao final da lista, levaram um susto ao ver a foto de Daniela. E mais assustados ainda ficaram quando apareceu, embaixo da frase de Júnior, o comentário da maluca que dizia: “Vou te mata, Júnior!”.
Júnior se levantou e largou o celular sobre a mesa.
-Ícaro, ela está nos observando! – disse olhando ao redor.
-Claro que não, cara. Foi só um comentário! – tentou acalmar ele. – Ela pode estar em qualquer lan house por aí, ou usando o Facebook do celular. Será que entidades sabem usar celular?
-Essa garota é maluca! Melhor a gente se esconder. Vamos!
Ícaro ficou parado.
-Vamos, Ícaro. Ela pode estar vindo.
-Cara, o dia dos namorados é amanhã, com certeza ela virá até mim e eu preciso terminar com isso!
Júnior sabia que não teria como dobrar a decisão do amigo. Apenas o abraçou e pediu para que qualquer coisa, o ligasse, ou deixasse recado na internet. Os dois se abraçaram novamente, e Júnior desceu as escadas da lanchonete, porém, ao atravessar a rua, fora atingido por um táxi em alta velocidade, que o jogou à metros do chão, caindo perto dos pés de Ícaro, morto, e com sua cabeça decepada rolando para longe do resto do corpo e parando aos pés do amigo.
De dentro do táxi, uma pessoa toda vestida de preto e com uma toca ninja saiu com um revólver em punho, mas antes, atirou na cabeça do taxista que fizera de refém e que se casaria no dia seguinte ao dia dos namorados, dia treze de junho, dia de seu santo devoto, Santo Antônio. Foi se aproximando de Ícaro com a arma apontada para ele. As pessoas na rua corriam para todos os cantos possíveis. Seu Torto, desceu a grade da lanchonete e fechou a loja, e ali, na rua, não sobrou nem ao menos os crackudos, somente Ícaro e aquela pessoa toda de preto.
-É você, não é, Daniela? – perguntou enquanto fechava os olhos do cadáver de seu amigo. – Você agora matou meu melhor amigo, não foi?
A pessoa foi se aproximando lentamente, e ao chegar perto de Ícaro, tirou a toca. Era mesmo Daniela, mas com uma fisionomia totalmente diferente daquela menina qual Ícaro sofreu por amar.
-Vamos ver se você vai ou não, passar esses dias dos namorados comigo, Ícaro Roberto!
- Em que você se transformou, Dani? – perguntou Ícaro.
Ela foi se aproximando ainda mais do rapaz, e, de surpresa, lambeu seus lábios.
- Eu sou a mulher da sua vida! Temos que ficar juntos para sempre, meu amor. – anunciou ela abrindo a roupa preta pelo zíper, e revelando que usava apenas peças íntimas de cor vermelha.
Agora de calcinha e sutiã, Dani se afastou um pouco do amado.
- O dia dos namorados está aí! Já pensou no que vai me dar de presente?
– perguntou ela como se nada estivesse acontecido e se esfregando em Ícaro que apenas observava com asco.
- Não sou mais seu namorado, Dani! Não sei se você lembra, mas matou minha mãe, meu melhor amigo e meu cachorrinho, que não tinha nada a ver com a história...
-Ícaro, eu não estou te entendendo. Você ficou aí todo chororô porque te dei um pé na bunda, e agora tá nessa? Você não vai me largar assim!
Enquanto ela reclamava do comportamento dele, Ícaro pensava numa maneira de fugir dali, e ganhar tempo para acabar de uma vez por todas com a maldição em qual tinha se envolvido. Não conseguia pensar em nada, apenas não tirava os olhos da arma que ela carregava na mão direita.
-... Agora que voltei, e estou loucamente apaixonada por você, tu quer ficar de doce? Faça-me um favor! Estou começando a achar que sua mãe não era o único problema entre nós, viu?
-Dani... Desculpa, você está certa! – disse ele se aproximando. – Eu não sei o que está acontecendo! Olhe a nossa volta, estamos sós! Não tem mais Júnior me dando conselhos, nem minha mãe se intrometendo entre a gente.
-E nem o Guga... - completou ela.
-Isso! E nem o Guga latindo quando estamos transando. Somos só eu e você! Olha que maravilha!- proclamava ele se aproximando cada vez mais.
– Me diz, vai! Onde você quer passar o dia dos namorados?
Daniela ficou pensativa. Sorriu exibindo seus dentes amarelos, resultado de dois dias andando a esmo pelas ruas, comendo lixo, animais mortos e vomitando sucos gástricos podres! Sim é nojento! Dá nojo, e você não faz ideia da cena dela devorando um pequeno urubu, ferido num lixão ali próximo. E sim, eu faço muita questão de dar detalhes sobre isso.
-Ah, num sei amor, podíamos ir a um rodizio de pizzas, ou então alugar uns filmes, comer uma farofa com galinha preta, adoro essas coisas românticas e rústicas! – respondeu.
Ele então a abraçou e começou a beijar seu pescoço coberto por limo e sujeira, tentando disfarçar ao máximo a ânsia de vômito que aquele sabor azedo lhe proporcionava, imaginando se tratar de uma posta de bacalhau muito saborosa.
-Achei ótimo, mas ainda tenho uma ideia melhor!- anunciou ele ao pé do ouvido de Daniela.
Ela se arrepiou toda. Virou-se de costas para ele e assim ficou abraçada. Gostava de ser abraçada por trás, e se sentia uma vadia por isso, o que, naquele momento, era justamente como ela queria se sentir.
-Fala então! Aonde você quer passar o dia dos namorados comigo, Ícaro Roberto.
Sorrateiramente o rapaz foi posicionando sua mão próxima a mão que ela segurava o revólver, e, num ato de coragem e rapidez, pegou a arma para si, engatilho ela e disse arcando uma das sobrancelhas no melhor estilo Schwarzenegger.
- No inferno! Mas só você vai!
Apertou o gatilho e a bala acertou o pescoço dela, furando bem na traqueia. Um guincho animalesco foi emitido da boca da moça, e que ecoou por toda a rua, assustando cães que começaram a latir curiosos.
Sufocada, Daniela começou a se debater de pé, e assim foi cambaleando para trás até chegar perto ao medidor de gás da lanchonete de Seu Torto. Ícaro caminhou na sua direção apontando a arma para a cabeça de Dani que, nesse momento, já estava sentada no chão estrebuchando.
-Ícaro, me ajuda! – pedia ela com uma voz totalmente diferente da de minutos antes. – Ícaro o que aconteceu? Me ajuda...
O rapaz foi se aproximando, parecia que o que quer que estivesse no corpo de sua antiga paixão, havia o deixado. Foi chegando próximo dela, e seu coração foi amolecendo. Ali podia ver sua Daniela. Lembrou-se dos momentos que passaram juntos, dos dois dias dos namorados que aproveitaram sob a companhia um do outro. Lembrou-se de quando a pediu em namoro pela primeira vez, usando recortes de jornais formando frases. Lembrou-se de quando foram assaltados juntos na Quinta da Boavista. E acima de tudo, lembrou-se de como era apaixonado por ela.
Num surto de heroísmo, ele segurou as mãos de Dani e a puxou para seu colo.
-Vou te levar ao hospital... Você está livre da amarração... – anunciou ele segurando com ambos os braços.
Ouviu-se um estampido seco. De repente, Ícaro sentiu seu umbigo começar a queimar. Seu sorriso foi se fechando enquanto seus olhos iam na direção de sua barriga. Suas mãos estavam molhadas, e agora, seus olhos pesavam. Com uma segunda arma, também conseguida após prestar favores sexuais aos bandidos da favela Vila Vadia, Daniela atirou contra seu namorado. E sorriu após fazer isso.
- O... Que você fez? –perguntou ele caindo ajoelhado, e puxando-a para o chão consigo.
-Agora estaremos juntos para sempre, Ícaro! PARA SEMPREEEE!- gritou ela, se virando na direção do medidor de gás, e mirando bem no cano de condução. – Juntos para sempre! E nem a morte vai nos separar!
Dito isso, Dani atirou contra a tubulação de gás, gerando uma enorme explosão na rua. Por sorte, Seu Torto havia saído pela porta dos fundos, e sobrevivera... Mas preferia ter morrido, afinal sua casa e seu trabalho haviam ido pelos ares.
O fogo ardia e queimava os corpos dos dois jovens. Daniela se abraçou à Ícaro, que sem forças, não se mexia, apenas sentindo a dor calado. Seus corpos foram se grudando conforme o fogo agia contra eles. A pele foi se unificando, e em alguns minutos, estavam totalmente grudados. Ícaro morrera ao lado daquela que sempre amou, e que por esse amor todo, agiu de forma impensada, que ocasionou uma das mortes mais trágicas no bairro onde morava.
Quando os bombeiros chegaram, já não existia mais lanchonete. Tudo já tinha vindo ao chão, sobrando apenas alguns pedaços de concreto e ferragens. Os corpos de Júnior, e do casal foram colocados na calçada até que o rabecão chegasse. Os moradores estavam chocados com aquela história trágica que ocorrera em tão pouco tempo e cercavam os cadáveres ainda expostos.
Jornalistas de todos os veículos foram chegando e tentando informações, através deles, pai Maria-João ficou sabendo do ocorrido, e imediatamente tomou um táxi fora até o local. Chegando lá, fez um ritual para Ícaro e pediu proteção pelo espírito do rapaz que só fez o que fizera porque amou demais. E tentou usando poderes sobrenaturais, resgatar o que tinha pedido.
Sobre os escombros da lanchonete, viu uma luz branca surgir. Levantou-se do banco de pedra onde estava sentava e foi na direção da luz. Olhando com mais atenção, pôde ver duas silhuetas de mãos dadas surgirem e virem na sua direção. Continuaram se aproximando e transpassaram pelo seu corpo exatamente com no filme Ghost- do outro lado da vida. Ao passarem por ele... Ela... Enfim, ao passarem por seu corpo, Maria-João sentiu algo limpo, lindo e verdadeiro. Sentiu amor. Amor na forma mais pura que pudesse existir. Os dois estavam livres finalmente de todos os infortúnios que se intrometiam no meio dos dois. Sejam físicos, sejam espirituais. Agora os dois passariam os dias dos namorados seguintes sempre juntos, deixando todas as tragédias de lado, e se amando por toda a eternidade. E não teve nem morte, nem orixás, e nem dona Evenilda que os separasse.
O pai de santo então voltou para casa, e prometeu a si mesmo tirar a expressão SE ARRASTANDO de seu folheto. Aquilo gerava desavenças, e ele só queria era atrair mais clientes. O se arrastando, na verdade, era com um amor maior, mais forte, e não se humilhando ou obsessivo, coisa que só aconteceu com Ícaro devido ao conflito de simpatias. Mas antes de fazer isso tudo, Maria-João pediu um Big Mac, mas sem picles, e pensou se havia alguma oração para que o tempo de espera até a entrega fosse menor.
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7
Duas semanas depois...
Ícaro foi levar Daniela em casa, após passarem um dia inteiro passeando no shopping. E a despedida nunca fora tão demorada. Ao voltar para casa, encontrou sua mãe sentada na poltrona com uma calcinha minúscula presa nos dedos.
- Então vocês voltaram? – perguntou ela com um tom autoritário. – Você e aquelazinha reataram esse namoro de vocês, não é?... Aquela janela quebrada... Como não reparei isso!
- Mãe, ela se arrependeu! Eu disse que ela me amava!
- Ama coisa nenhuma! Provavelmente ela se separou, curtiu tudo que não estava curtindo contigo, se esbaldou, e agora, que secou a sede, voltou para você! E o pior é que você a aceitou de volta, Ícaro Roberto!
- Mãe! Você devia estar feliz pela gente! Eu amo a Dani! A senhora tem que aprender a conviver com isso!
- Eu não quero essa garota dentro dessa casa! Respeite a alma de seu pai! A integridade dele!
- Integridade? A senhora é a primeira a lembrar que ele era um alcoólatra!
Dona Evenilda se calou.
- Não venha dar de santa agora, mãe. E é melhor se acostumar com a Dani. Se a senhora não a quer aqui dentro, ok, eu respeito. Mas meu namoro com ela vai continuar! E rumo ao altar!
- É só essa garota aparecer que você me destrata! Faça o que quiser da sua vida Ícaro Roberto, mas depois não diga que não avisei! Já fiz de tudo por você, já tentei abrir seus olhos, mas se quer teimar, que assim seja!
Ícaro, irritado, saiu da sala e foi para a rua novamente. Caminhou até a praça e lá permaneceu por algumas horas, conversando com Júnior, que finalmente revelou que fora sua prima quem dissera que Dani sentia falta dele.
Ao voltar para casa, encontrou sua mãe ao telefone.
- Incompetentes, Lúcia! Todos eles... – dizia ela irritada, mas ao notar a presença do filho, desligou. – Olha, seu celular tocou diversas vezes aí. Era número confidencial.
Ícaro não lhe deu muita atenção. Pegou seu celular sobre a cômoda, e foi para a cozinha. Levou um grande susto ao perceber que havia vinte ligações perdidas e todas de Daniela. Tomado pela curiosidade do motivo de tamanha insistência, imediatamente retornou.
- Oi amor, me ligou vinte vezes, é isso mesmo? –perguntou Ícaro carinhosamente.
- Liguei sim, seu Ícaro Roberto. Onde o senhor estava que não me atendeu, hein? Não ouviu o celular? É isso?
O tom de voz de Daniela intrigou seu namorado. Ela nunca havia falado daquele jeito, e nunca havia demonstrado ou feito cena por ciúmes. Parecia que as coisas realmente estavam dando certo.
-Calma, amor. Eu estava conversando com o Júnior. Te levei em casa, esqueci meu celular aqui. Jamais pensei que você fosse me ligar... Desculpa, tá? – desculpou-se ele fazendo voz chorosa.
Ela ficou calada por alguns segundos. Do outro lado da linha, se Ícaro visse a cena, com certeza estaria com medo. Sobre a mesinha do telefone, havia dezenas de canetas e lápis quebrados, todos à mão, e todos por Dani. Consumida pela raiva e desconfiança, começou a descontar sua raiva em objetos, e, que Deus o tenha, em seu periquito de estimação. Friamente, e imaginando que aquele fosse o pescoço de Ícaro, ela entortou o passarinho com a força dos dedos, enquanto escutava possessa, pela décima oitava vez, a secretária eletrônica do celular do namorado. Após isso, jogou-o morto dentro do vaso sanitário e deu descarga.
-Tudo bem, Ícaro. Eu te perdoo. Mas se eu souber que você tá mentindo para mim, eu não respondo por mim, entendeu?
- Eu não quero outra. Penei muito para te ter de volta, não te troco por ninguém!
-Acho bom! Muito bom! E que tal você vir aqui em casa agora, hein? Meus pais saíram, acho que só voltam de madrugada... o que acha?
Os olhos de Ícaro instintivamente se desviaram para o relógio de parede. Eram nove da noite, e se saísse naquela hora, e sua mãe soubesse que ia para a casa de Daniela, com certeza teria problemas.
- Poxa, Dani! Tá meio tarde... Minha mãe vai ficar falando no meu ouvido!... E tipo, eu tô cansadão!
-Ícaro, você está dando desculpas para não me ver?
-Claro que não, amor. Claro que não... Mas você conhece minha mãe!
-Ah o problema é você sair? Então tá! Deixa a janela aberta que eu vou até aí! – intimou Daniela desligando o telefone logo em seguida.
Enquanto ia para seu quarto e tentava arrumar um jeito de sua mãe não perceber a presença de Dani, Ícaro ficou pensando nas palavras do Pai Maria-João. Será que realmente as coisas estariam diferentes e era daquele tipo de diferença que ele... Ela... Que Maria-João se referia?
Ficou encucado por algum tempo e após isso, sentou-se sobre sua cama esperando sua amada.
O que ele não contava, era que sua mãe resolveria pela primeira vez, se desculpar pelo que tinha falado. E ao vê-la surgindo receosa na porta de seu quarto, imediatamente bateu a porta contra sua cara. Mas dona Evenilda não desistiu.
-Filho, eu sei que você está chateado comigo, e sei que falei coisas ruins da sua namorada. Mas você precisa entender meu lado...
Ícaro foi se aproximando da porta de seu quarto, mas sem deixar de prestar a atenção na janela do mesmo. Sua mãe continuava...
- Não conheço os pais dessa menina; Nunca conversei com ela; e os vizinhos dizem que ela não é lá muito confiável. Mesmo sabendo desses boatos, nem ela e nem você chegaram até mim para dar satisfações. Como vou confiar em alguém que entra na minha casa e nem bom dia dá?
Ícaro aproximou sua cabeça da porta, e encostou a testa nela.
-... Sei que errei agredindo-a, mas foi necessário! Eu estava irritada, e ela me olhava com aquele olhar debochado, sabe? Puxei mesmo o cabelo! Mas foi necessário! Só que eu andei pensando hoje, e vi que não vou conseguir mudar seu coração. Você está apaixonado... Não deu em nada nem mesmo depois de eu...
O telefone celular de Ícaro tocou nesse instante.
-Mãe, espera aê, que meu celular está tocando...- pediu ele indo até sua cama e conferindo que era Dani quem o ligava. –Oi amor, fala!
- Ícaro, você me ama? –perguntava Dani sussurrando. – Só me diz sim ou não.
Sem entender, o rapaz gaguejou por alguns milésimos de segundos.
- Ah, gaguejou? Você não me ama, Ícaro?
-Claro que te amo... Dani cadê você? Porque está sussurrando?
Ela não respondeu. Do lado de fora do quarto, dona Evenilda continuava seu discurso de desculpas.
-... Então filho, se é assim que você quer que seja sua vida, que seja ao lado dessa menina, faça como quiser. Só peço para que não a coloque aqui dentro de casa durante a noite...
Ícaro foi até a janela, insistindo em tentar algum contato com sua namorada pelo celular.
- Dani, responde! Cadê você?
-... Você me ama mais do que ama sua mãe?
- Que isso?! Que tipo de pergunta é essa, Daniela? São amores diferentes...
-Não foi isso que eu perguntei, porra! – reclamou a moça aumentando o tom da voz, mas logo voltando aos sussurros. – Você me ama mais do que ama a sua mãe?
-Dani, claro que não! Assim como você não me ama mais do que ama seus pais...
-Do que você está falando, Ícaro? Claro que te amo mais do que eles! Amo você mais do que a mim mesma! Você é que não me ama o suficiente!
-Dani, para com isso! Você está me assustando!
-Você ainda não me perdoou! Você ainda sente mágoas de mim por ter te deixado! Eu sabia!... Eu já disse que não sei o que aconteceu!
-Eu te perdoei sim! Para com isso! Cadê você?
- Jura que me perdoou? Me perdoaria de novo?
-Perdoei, meu amor. E te perdoaria! Te amo muito! Cadê você, hein!
-Ah, que bom que me perdoaria de novo! Tchau! – encerrou a menina desligando em seguida o telefone.
Ícaro ainda tentou contato, mas ao notar que ela havia desligado desistiu. Jogou o celular sobre a cama, deu uma última conferida na rua, e voltou para perto da porta de seu quarto. Estava exausto.
- Mãe? A senhora ainda está aí? – perguntou dando três batidas na porta.
Não houve resposta.
Chamou novamente e outra vez ninguém o respondeu. Preocupado, abriu a porta lentamente, e ao final do corredor, pôde ouvir os latidos de Guga ao longe.
- Mãe? Cadê a senhora?- perguntava ele enquanto andava no breu que sua casa havia se transformado.
Sentiu alguém passar por ele e se virou. Não tinha ninguém. Sentiu-se louco e que começava a ter alucinações. Continuou andando até a sala, e já perto, os latidos de Guga se calaram. Isso fez Ícaro ficar aflito.
Apressou os passos até a sala, e lá viu sua mãe caída no chão.
Imediatamente correu para socorrê-la, ela estava com o rosto colado no carpete, e ao virá-la, se desesperou ao notar sua garganta cortada. Largou o corpo ensanguentado no chão de qualquer maneira e se levantou. Não sabia para onde correr, não sabia a quem recorrer. Ouviu um apito na cozinha e foi até lá lentamente. Ao entrar, viu a luz de seu micro-ondas acesa. Aproximou-se do aparelho em passos curtos. Não tinha pressa. Provavelmente sua mãe havia deixado algo esquentando ali. Foi caminhando com sua mão esquerda erguida na direção da porta. Abriu-a de supetão e um jato de vômito saiu de sua boca instantaneamente. Dentro do eletrodoméstico, encontrou seu cãozinho Guga, completamente queimado e morto.
-Ícaro... – disse uma voz rouca que imediatamente ele reconheceu como de sua mãe.
Correu de volta para a sala.
Dona Evenilda estava tentando se levantar, enquanto segurava seu pescoço com uma das mãos, tentando estancar o sangue que jorrava.
-Mãe, calma! Não se mexa... O que aconteceu? – perguntava Ícaro caindo no choro.
- Vá embora! Eu te amo, vá embora... – repetia ela. – Eu te amo, meu filho. Desculpa por tudo que fiz. Eu não... Eu não devia ter me metido nessa história... Fuja agora!
-Mãe, calma! Eu também te amo, e sei que a senhora não fez por mal. Só queria meu bem... quem fez isso?
-Filho, eu... - tentava falar, mas o ar lhe faltava. – Eu mexi com coisas do diabo. Eu pedi às entidades que afastassem... Vocês dois...
Ícaro deu um passo para trás. Sua mãe parecia sufocar com a crise de tosse.
- Como assim, mãe?
Ela fazia força para falar, mas não conseguia. Respirou fundo.
-Eu procurei uma mãe... Um pai... Enfim, procurei um cara com cara de mulher, que prometia fazer um feitiço para afastar casais. Por isso arranquei cabelo dela. Eu precisava... Dos fios para a simpatia... Ah, como estou... Como estou enver...Gonhada...
Ícaro se lembrou de que o papel de Pai Maria-João fora encontrado justamente em sua porta, o que não poderia significar nada, se sua mãe não tivesse dito aquilo. Provavelmente Daniela ter mudado do dia para a noite com ele, querendo até mesmo o término de um namoro que, apesar dos problemas, ia bem, só poderia mesmo ser coisa de feitiço.
Levantou-se e ficou observando sua mãe agora morta. De repente, se sentiu observado. Virou-se lentamente, e outra vez levou um susto ao ver Daniela limpando uma faca cheia de sangue em seu próprio vestido.
- Que vaca! Essa macumbeira armou pra gente, amor! – disse indo na direção de Ícaro, muito tranquila.
-Ei! Vo... Você quem fez isso, Dani? Você matou a minha mãe?... Você... Tu cozinhou o meu cachorro?
-Ela era contra nosso amor! Ela mereceu! Ela acabou de confessar que fez macumba pra gente, Ícaro! Ela envolveu magia negra na história, amor!
O rapaz pensou em correr, mas viu que, por reflexo, ela o impediria.
-Pensa pelo lado bom, Ícaro. Agora somos só nós dois! A casa é nossa!
-Como... Como assim só nós dois? Eu não vou namorar uma assassina! Vou contar pro seus pais...
-Não perca seu tempo! Matei os dois também. Não queriam me deixar sair na rua há essa hora, falaram que os crackudos iam me estuprar! Agora você vê...
Ela realmente estava falando sério sobre isso. Minutos antes da última ligação para Ícaro, matou seus pais por serem contra o namoro dela com Ícaro. Muito por culpa de dona Evenilda, que vivia espalhando pelo bairro que a filha do casal tinha uma nova forma de sífilis, que era transmitida pelo olhar. Matou os dois enquanto faziam amor em seu quarto, e tentavam a posição mais perigosa do Kama Sutra, o “Topo”, na qual o casal fica parecendo uma dupla de escorpiões africanos albinos brigando por uma centopeia bípede da savana africana. Esfaqueou-os friamente, e ainda os cobriu para que morressem quentinhos.
- Você é louca! Vou te entregar na polícia, sua maluca! Você matou minha mãe... Você assou meu cachorro! Tadinho do Guga!
-A gente compra outro! Ei! Agora que caiu a ficha! Como assim não vai namorar uma assassina? Tá pensando em me deixar? Eu fiz isso por você, seu idiota!
-Eu estou te deixando! Você não é a Dani pela qual me apaixonei! Pela qual sofri para ter de volta! Você está louca! Você deve estar possuída por algum orixá brabo...
Daniela foi se aproximando do rapaz com a faca presa entre os dentes.
-Fique longe de mim! Saia daqui da minha casa!- gritava ele.
Assim que ela ficou mais perto, Ícaro tomou coragem e reagiu com um soco no rosto de Daniela. Ela caiu por cima da mesinha de centro, desacordada. O rapaz aproveitou, deu um último beijo na testa de sua falecida mãe, e assim, saiu de casa. A doida Dani estava com um dos olhos abertos, e pôde perceber todos os movimentos de seu amado. Deu um sorrisinho tranquilo e se levantou. Espanou a poeira de seu vestido, amarrou seu cabelo com uma presilha retirada dos cabelos de dona Evenilda, e saiu pela janela, num salto tão alto que nenhum humano normal conseguiria imitar.
- Você não vai me deixar Ícarooooo!!!! – disse gritando pelo nome do namorado.
Ícaro pôde ouvi-la gritar ao longe. Já estava na esquina, e pretendia ir até a casa de seu amigo Júnior. E foi.
8
Por dois dias não se ouviu falar de Daniela. A polícia fez buscas pelo bairro, nos bairros vizinhos, mas nada da menina. Alguns relatavam terem visto uma jovem bonita, porém louca, gritando aos quatro-ventos que era apaixonada pelo magrelo do Ícaro. Outros, diziam que ela havia criado asas, chifres e que sobrevoava o bairro após à meia noite, raptando moças virgens e bebês que não tivesse sido batizados ainda. E tinham aqueles que diziam que se você falasse três vezes, na frente de um espelho, com as luzes apagadas as palavras “Louca-Dani”, a tal louca-Dani aparecia e te levava para dentro do espelho.
O enterro de Dona Evenilda fora emocionante. Em parte porque apenas Ícaro, seu amigo Júnior, e por incrível que pareça, pai Maria-João compareceram. Ícaro ficou calado durante toda a cerimônia. Estava se sentindo culpado pela morte da mãe.
- Cara, você precisa sair da cidade, do estado! Essa mina vai voltar para te matar! – disse Júnior, muito incomodado com a presença de Pai Maria-João ali próximo, com aquela cara de traveco holandês que acabou de comer um bolo de maconha.
-Como ela ficou louca, cara! Minha mãe morreu de graça nessa história. Eu devia tê-la ouvido, me afastado. No fundo ela era uma ótima mãe. Quem mais daria mesada para seu filho até os vinte anos? Quem não o obrigaria à trabalhar? Agora eu tô ferrado! Não tenho mais família! – disse Ícaro quebrando seu silêncio.
Maria-João se aproximou dele, afastando automaticamente Júnior, que disfarçou e foi para o outro lado, longe do pai de santo.
- Eu sabia que tinha algo de ruim nessa história, hum! Senti vibração ruim, mas fui obrigado a fazer o trabalho. Os orixás devem ter ficado fulos, dois serviços na mesma pessoa. Agora isso! A moça tá louca, e duvido que eles subam fácil, hum!
-Maria-João, mas e agora? Como vão parar essa louca? Ela está possuída?
-Ah, provavelmente, né? Pra matar essa maldição, só matando o cavalo.
Júnior se intrometeu.
-Mais um animal morto nessa história? O IBAMA não vai cur...
-Cavalo é o nome do corpo que recebe o espírito, Júnior. – explicou Ícaro.
Maria-João continuou.
-O Amor de ocês foi mexido. Sua mãe pediu uma coisa, por telefone. Eu disse que fazia serviços por telefone? Breve farei pela internet...
-Continue, por favor! Há uma louca obsessiva solta por aí, Maria-João.
-Hum! Aí ocê vai e pede o contrário, que a moça ame tu. Os orixás não gostaram, e agora tão de pirraça. Num vão sossegar até que ou tu, mi fio, ou a moça vá viver perto deles.
Ícaro ficou pensativo. Seu devaneio foi quebrado por um avião comercial que cortou o céu nublado sobre o cemitério, com uma faixa estendida, anunciando que faltava um dia para o dia dos namorados.
- Ela com certeza virá atrás de mim. O dia dos namorados está aí. Preciso me esconder.
Maria-João segurou os ombros de Ícaro. Júnior não gostou daquilo, e se afastou ainda mais, fingindo se esticar para ver mais um pouco do avião.
-Tenha fé. Cê é um bom rapaz. Só precisa se livrar desses encostos, hum! A culpa disso é de sua mãe. O feitiço dela foi pesado. Os orixás gostaram. Ocê precisa matar essa menina, hum! Matar ela logo, antes que ela mate ocê. Isso seria ruim para ocês.
-Ruim pra mim que vou estar morto, né? – Questionou Ícaro.
-Não senhor, mi fio, ruim pros dois! Se ela te mata primeiro, aí ocê vai viver é pra toda eternidade ao lado dessa pessoa. Seu espírito vai ficar preso com ela é pra sempre, hum!
Aquele detalhe deixou Ícaro ainda mais nervoso do que estava. Não teria coragem de matar Daniela... Sabia que teve coragem para lhe dar um murro muito do bem dado no meio de sua fuça, mas matar... Bem, aí seria diferente.
-Infelizmente eu num posso mais mexer com essa história, hum! Já me envolvi demais com esse trabalho, e preciso voltar pros meus outro clientes. Eu quero que ocê seja iluminado pelos orixás, e que iansã te proteja.
-Você num poderia me dar uma guia de proteção, Maria-João? – Pediu ele roendo as unhas, mas não sendo respondido.
Maria-João foi embora sentindo que algo de muito ruim estava para acontecer, mas deu de ombros, acendeu um charuto, e entrou no primeiro Mc Donald, pois estava com uma vontade louca de comer um Quarteirão com queijo, só que sem picles.
9
Ícaro e Júnior voltaram pra casa andando. Moravam consideravelmente perto do cemitério, e queria espairecer no caminho. Eram bons amigos, desde pequenos brincavam juntos, assistiam à filmes de terror juntos, e fizeram, aos dez anos, juramento de nunca faltar quando o outro precisasse. Por mais amedrontado que estivesse com aquela história toda, Júnior não queria deixar o amigo na mão justo quando mais ele estava precisando.No fundo, no fundo, ele nunca fora muito com a cara de Daniela. Primeiro porque num carnaval, ela se negou a lhe dar um beijo, e segundo, porque ele achava que Ícaro, por mais esquisito que fosse, merecia alguém que lhe desse o valor merecido.
Cansou de ver seu amigo sofrer por ciúmes. Sofrer calado, e consentindo com as atitudes de Daniela. Cansou de vê-la reclamar das meninas que ele adicionava no Facebook, porém, ela mesma adicionava homens bombados e curtia tudo o que esses postavam. E, acima de tudo, ele sempre sentiu ciúmes de seu melhor amigo. Gostava muito da companhia de Ícaro, mas com a chegada e a volta de Dani, ele o perdeu novamente.
Chegaram à rua em que moravam e foram direto para a lanchonete do Seu Torto. Sentaram-se à mesa do lado de fora do estabelecimento, e ali, ficaram em silêncio.
- Dois dias que minha mãe se foi. E só hoje enterram ela. Cê viu como o rosto dela estava calmo? Nunca vi sua cara tão tranquila, Júnior. – comentou Ícaro quebrando aquele silêncio incômodo.
-A morte é mesmo engraçada! Mas sério, cara. Você precisa ver o que vai fazer da vida. Cê num pode ficar dando bobeira aqui na rua não. Essa maluca pode aparecer à qualquer momento e te matar. Você acha mesmo que essa ronda da PM vai adiantar de alguma coisa?
-Claro que não! Eles não conseguem prender bandidos da Vila Vadia, vão conseguir prender uma mulher com o diabo no corpo? Se alguém tem que tomar providência, esse alguém sou eu mesmo!
-Ícaro, até agora eu não acredito que você e sua mãe se envolveram com macumba! Precisava disso, cara? Brother, o que mais tem nesse bairro é mulherzinha. Você é inteligente, elas gostam disso! Não entra na minha cabeça! Você devia ter me contado! Eu te levava pro baile funk, e você podia se dar bem, véi!
O rapaz estava envergonhado. No fundo seu melhor amigo tinha razão, não precisava ter chegado à tamanho desespero. Mas entendia seu lado, pois estava cego de amor.
-Júnior, você não entende. Ninguém vai entender. Eu achava que a Dani era a mulher da minha vida, cara. Sabe o que é isso? Você pensar numa pessoa vinte e quatro horas, querer saber o que ela come, se está pensando em você... Isso é amor!
-Isso é obsessão! – interrompeu o dono da lanchonete, o seu Torto, que para surpresa de todos, estava falando mais ou menos normal.
-Ué, seu Torto. O senhor sabe falar? -perguntou Ícaro.
-Claro que sei! Mas às vezes minha língua embola. – revelou ele, sentando-se na mesma mesa que os rapazes. – Ícaro, sinto muito pela sua mãe. Ela era uma senhora respeitável, e te amava muito.
-Eu sei, seu Torto. O senhor não sabe como estou arrependido...
-No dia em que ela fez macumba pra você... Você sabe disso, né? Que ela fez feitiço pra tu largar...
-Sim, eu sei. Ela me contou antes de morrer.
-Ah, menos mal! Odeio ser fofoqueiro!... Bem, no dia em que ela fez o feitiço, ela veio aqui na lanchonete e me contou. Éramos muito amigos, mas não deixávamos transparecer, pois os vizinhos falam. Aliás, fui eu quem indicou o pai de santo à ela. O tal da Maria-João. Há anos me consulto ali, e sou católico, sabe? Há muito hipo... Hipo... Muita... Hipocrisia... Porra, saiu!... Muita hipocrisia nesse bairro! Um monte de gente aqui do bairro frequenta rodas de macumba, mas têm vergonha de assumir isso! Mas eu te digo, não se envergonhe disso. Tudo vale quando se tem fé.
-Eu estou envergonhado sim! Mas nem é por ter feito isso, é por ter apelado. Eu praticamente forcei a Dani à se apaixonar por mim novamente. Eu fui um idiota, incapaz...
-Ícaro, aprenda uma coisa, pior que ser cego dos olhos, é ser cego do coração. Se nosso coração não enxerga, fazemos coisas quais depois a gente se arrepende profundamente. Seu coração estava cego, não enxergou pois o amor o cegou. Você não tem culpa.
-... “Pior que ser cego dos olhos, é ser cego do coração!”, nossa, Seu Torto, pra quem não falava até poucos dias atrás, até que o senhor tá falando bem pra caramba, hein! Vou até postar isso no Face. – disse Júnior sacando seu celular de dentro do bolso e transcrevendo o que acabara de ouvir.
Seu torto se levantou da mesa.
-Faça o que tiver que ser feito, Ícaro. Não creio que a curimba seja a solução dessa vez. Às vezes os santos, orixás, deuses, que seja, às vezes eles deixam que nós resolvamos os problemas por conta própria, por aprendizagem. Veja eu! Há anos me consulto na macumba, vou à igreja católica, e só esses dias recuperei minha fala totalmente. E olha, estou falando muito bem! Tudo tem seu tempo, não adianta a gente querer colocar o burro na frente da carroça...
- Hahahahaha!... Burro... – repetiu Júnior conferindo se alguém já havia curtido seu post no Facebook.
Seu Torto se levantou e voltou para dentro da lanchonete. Ícaro ficou pensativo e estudando tudo que havia escutado.
-Preciso fazer alguma coisa...- disse ele.
-Ih, Ícaro! Doze pessoas já curtiram a frase do Seu Torto que postei, olha! Vamos ver quem...
Os dois se aproximaram e conforme Júnior ia lendo os nomes das pessoas, seu amigo acompanhava com os olhos. Ao final da lista, levaram um susto ao ver a foto de Daniela. E mais assustados ainda ficaram quando apareceu, embaixo da frase de Júnior, o comentário da maluca que dizia: “Vou te mata, Júnior!”.
Júnior se levantou e largou o celular sobre a mesa.
-Ícaro, ela está nos observando! – disse olhando ao redor.
-Claro que não, cara. Foi só um comentário! – tentou acalmar ele. – Ela pode estar em qualquer lan house por aí, ou usando o Facebook do celular. Será que entidades sabem usar celular?
-Essa garota é maluca! Melhor a gente se esconder. Vamos!
Ícaro ficou parado.
-Vamos, Ícaro. Ela pode estar vindo.
-Cara, o dia dos namorados é amanhã, com certeza ela virá até mim e eu preciso terminar com isso!
Júnior sabia que não teria como dobrar a decisão do amigo. Apenas o abraçou e pediu para que qualquer coisa, o ligasse, ou deixasse recado na internet. Os dois se abraçaram novamente, e Júnior desceu as escadas da lanchonete, porém, ao atravessar a rua, fora atingido por um táxi em alta velocidade, que o jogou à metros do chão, caindo perto dos pés de Ícaro, morto, e com sua cabeça decepada rolando para longe do resto do corpo e parando aos pés do amigo.
De dentro do táxi, uma pessoa toda vestida de preto e com uma toca ninja saiu com um revólver em punho, mas antes, atirou na cabeça do taxista que fizera de refém e que se casaria no dia seguinte ao dia dos namorados, dia treze de junho, dia de seu santo devoto, Santo Antônio. Foi se aproximando de Ícaro com a arma apontada para ele. As pessoas na rua corriam para todos os cantos possíveis. Seu Torto, desceu a grade da lanchonete e fechou a loja, e ali, na rua, não sobrou nem ao menos os crackudos, somente Ícaro e aquela pessoa toda de preto.
-É você, não é, Daniela? – perguntou enquanto fechava os olhos do cadáver de seu amigo. – Você agora matou meu melhor amigo, não foi?
A pessoa foi se aproximando lentamente, e ao chegar perto de Ícaro, tirou a toca. Era mesmo Daniela, mas com uma fisionomia totalmente diferente daquela menina qual Ícaro sofreu por amar.
-Vamos ver se você vai ou não, passar esses dias dos namorados comigo, Ícaro Roberto!
10
Daniela estava com o rosto coberto por arranhões e manchas. Seus olhos estavam fundos e de aparência grotesca. Sua boca estava sangrando, e seus dentes amarelados. Além disso, suas mãos estavam dispostas em forma de garras, com unhas pontiagudas e sujas.- Em que você se transformou, Dani? – perguntou Ícaro.
Ela foi se aproximando ainda mais do rapaz, e, de surpresa, lambeu seus lábios.
- Eu sou a mulher da sua vida! Temos que ficar juntos para sempre, meu amor. – anunciou ela abrindo a roupa preta pelo zíper, e revelando que usava apenas peças íntimas de cor vermelha.
Agora de calcinha e sutiã, Dani se afastou um pouco do amado.
- O dia dos namorados está aí! Já pensou no que vai me dar de presente?
– perguntou ela como se nada estivesse acontecido e se esfregando em Ícaro que apenas observava com asco.
- Não sou mais seu namorado, Dani! Não sei se você lembra, mas matou minha mãe, meu melhor amigo e meu cachorrinho, que não tinha nada a ver com a história...
-Ícaro, eu não estou te entendendo. Você ficou aí todo chororô porque te dei um pé na bunda, e agora tá nessa? Você não vai me largar assim!
Enquanto ela reclamava do comportamento dele, Ícaro pensava numa maneira de fugir dali, e ganhar tempo para acabar de uma vez por todas com a maldição em qual tinha se envolvido. Não conseguia pensar em nada, apenas não tirava os olhos da arma que ela carregava na mão direita.
-... Agora que voltei, e estou loucamente apaixonada por você, tu quer ficar de doce? Faça-me um favor! Estou começando a achar que sua mãe não era o único problema entre nós, viu?
-Dani... Desculpa, você está certa! – disse ele se aproximando. – Eu não sei o que está acontecendo! Olhe a nossa volta, estamos sós! Não tem mais Júnior me dando conselhos, nem minha mãe se intrometendo entre a gente.
-E nem o Guga... - completou ela.
-Isso! E nem o Guga latindo quando estamos transando. Somos só eu e você! Olha que maravilha!- proclamava ele se aproximando cada vez mais.
– Me diz, vai! Onde você quer passar o dia dos namorados?
Daniela ficou pensativa. Sorriu exibindo seus dentes amarelos, resultado de dois dias andando a esmo pelas ruas, comendo lixo, animais mortos e vomitando sucos gástricos podres! Sim é nojento! Dá nojo, e você não faz ideia da cena dela devorando um pequeno urubu, ferido num lixão ali próximo. E sim, eu faço muita questão de dar detalhes sobre isso.
-Ah, num sei amor, podíamos ir a um rodizio de pizzas, ou então alugar uns filmes, comer uma farofa com galinha preta, adoro essas coisas românticas e rústicas! – respondeu.
Ele então a abraçou e começou a beijar seu pescoço coberto por limo e sujeira, tentando disfarçar ao máximo a ânsia de vômito que aquele sabor azedo lhe proporcionava, imaginando se tratar de uma posta de bacalhau muito saborosa.
-Achei ótimo, mas ainda tenho uma ideia melhor!- anunciou ele ao pé do ouvido de Daniela.
Ela se arrepiou toda. Virou-se de costas para ele e assim ficou abraçada. Gostava de ser abraçada por trás, e se sentia uma vadia por isso, o que, naquele momento, era justamente como ela queria se sentir.
-Fala então! Aonde você quer passar o dia dos namorados comigo, Ícaro Roberto.
Sorrateiramente o rapaz foi posicionando sua mão próxima a mão que ela segurava o revólver, e, num ato de coragem e rapidez, pegou a arma para si, engatilho ela e disse arcando uma das sobrancelhas no melhor estilo Schwarzenegger.
- No inferno! Mas só você vai!
Apertou o gatilho e a bala acertou o pescoço dela, furando bem na traqueia. Um guincho animalesco foi emitido da boca da moça, e que ecoou por toda a rua, assustando cães que começaram a latir curiosos.
Sufocada, Daniela começou a se debater de pé, e assim foi cambaleando para trás até chegar perto ao medidor de gás da lanchonete de Seu Torto. Ícaro caminhou na sua direção apontando a arma para a cabeça de Dani que, nesse momento, já estava sentada no chão estrebuchando.
-Ícaro, me ajuda! – pedia ela com uma voz totalmente diferente da de minutos antes. – Ícaro o que aconteceu? Me ajuda...
O rapaz foi se aproximando, parecia que o que quer que estivesse no corpo de sua antiga paixão, havia o deixado. Foi chegando próximo dela, e seu coração foi amolecendo. Ali podia ver sua Daniela. Lembrou-se dos momentos que passaram juntos, dos dois dias dos namorados que aproveitaram sob a companhia um do outro. Lembrou-se de quando a pediu em namoro pela primeira vez, usando recortes de jornais formando frases. Lembrou-se de quando foram assaltados juntos na Quinta da Boavista. E acima de tudo, lembrou-se de como era apaixonado por ela.
Num surto de heroísmo, ele segurou as mãos de Dani e a puxou para seu colo.
-Vou te levar ao hospital... Você está livre da amarração... – anunciou ele segurando com ambos os braços.
Ouviu-se um estampido seco. De repente, Ícaro sentiu seu umbigo começar a queimar. Seu sorriso foi se fechando enquanto seus olhos iam na direção de sua barriga. Suas mãos estavam molhadas, e agora, seus olhos pesavam. Com uma segunda arma, também conseguida após prestar favores sexuais aos bandidos da favela Vila Vadia, Daniela atirou contra seu namorado. E sorriu após fazer isso.
- O... Que você fez? –perguntou ele caindo ajoelhado, e puxando-a para o chão consigo.
-Agora estaremos juntos para sempre, Ícaro! PARA SEMPREEEE!- gritou ela, se virando na direção do medidor de gás, e mirando bem no cano de condução. – Juntos para sempre! E nem a morte vai nos separar!
Dito isso, Dani atirou contra a tubulação de gás, gerando uma enorme explosão na rua. Por sorte, Seu Torto havia saído pela porta dos fundos, e sobrevivera... Mas preferia ter morrido, afinal sua casa e seu trabalho haviam ido pelos ares.
O fogo ardia e queimava os corpos dos dois jovens. Daniela se abraçou à Ícaro, que sem forças, não se mexia, apenas sentindo a dor calado. Seus corpos foram se grudando conforme o fogo agia contra eles. A pele foi se unificando, e em alguns minutos, estavam totalmente grudados. Ícaro morrera ao lado daquela que sempre amou, e que por esse amor todo, agiu de forma impensada, que ocasionou uma das mortes mais trágicas no bairro onde morava.
Quando os bombeiros chegaram, já não existia mais lanchonete. Tudo já tinha vindo ao chão, sobrando apenas alguns pedaços de concreto e ferragens. Os corpos de Júnior, e do casal foram colocados na calçada até que o rabecão chegasse. Os moradores estavam chocados com aquela história trágica que ocorrera em tão pouco tempo e cercavam os cadáveres ainda expostos.
Jornalistas de todos os veículos foram chegando e tentando informações, através deles, pai Maria-João ficou sabendo do ocorrido, e imediatamente tomou um táxi fora até o local. Chegando lá, fez um ritual para Ícaro e pediu proteção pelo espírito do rapaz que só fez o que fizera porque amou demais. E tentou usando poderes sobrenaturais, resgatar o que tinha pedido.
11
Quando a bagunça se acalmou no bairro, Maria-João ainda estava por lá. Observava tudo com total atenção, e somente perto da meia-noite, é que ele... Ela... Enfim, foi que encontrou o que procurava.Sobre os escombros da lanchonete, viu uma luz branca surgir. Levantou-se do banco de pedra onde estava sentava e foi na direção da luz. Olhando com mais atenção, pôde ver duas silhuetas de mãos dadas surgirem e virem na sua direção. Continuaram se aproximando e transpassaram pelo seu corpo exatamente com no filme Ghost- do outro lado da vida. Ao passarem por ele... Ela... Enfim, ao passarem por seu corpo, Maria-João sentiu algo limpo, lindo e verdadeiro. Sentiu amor. Amor na forma mais pura que pudesse existir. Os dois estavam livres finalmente de todos os infortúnios que se intrometiam no meio dos dois. Sejam físicos, sejam espirituais. Agora os dois passariam os dias dos namorados seguintes sempre juntos, deixando todas as tragédias de lado, e se amando por toda a eternidade. E não teve nem morte, nem orixás, e nem dona Evenilda que os separasse.
O pai de santo então voltou para casa, e prometeu a si mesmo tirar a expressão SE ARRASTANDO de seu folheto. Aquilo gerava desavenças, e ele só queria era atrair mais clientes. O se arrastando, na verdade, era com um amor maior, mais forte, e não se humilhando ou obsessivo, coisa que só aconteceu com Ícaro devido ao conflito de simpatias. Mas antes de fazer isso tudo, Maria-João pediu um Big Mac, mas sem picles, e pensou se havia alguma oração para que o tempo de espera até a entrega fosse menor.
FIM