DE SAIA JUSTA , NUM MODELITO "ART DÉCO"
As crônicas da vida aparecem quando a gente menos espera, e foi ali naquele recinto público que eu, inesperadamente, talvez tenha vivenciado a situação mais saia justa que já vivi na vida.
Eu passeava calmamente pela redondeza do parque quando senti um aroma a me despertar a vontade de tomar um café bem ali.
A cafeteria de esquina, elegantemente posicionada a nos convidar para um "happy hour" a qualquer hora do dia, destoava dos arredores do atual centro antigo de Sampa.
Tratava-se duma dessas aconchegantes lojas de café com um farto empório de secos e molhados no seu interior, finamente decorada aos moldes das "cafeteries" francesas, algo estilo "art déco" que lembrava o habitat dos antigos boêmios e intelectuais do início do século passado e que lá do seu interior, emanava ao olfato da praça indícios do seu saboroso "espresso" ao gosto do freguês, já com a oferta das notícias do dia que pontuavam Sampa, o Brasil e o mundo dito globalizado.
Eu, que não resisto a um lugarzinho como aquele, assim que lá entrei fui recepcionada por um charmoso garçom que me ofereceu a mesa e o "menu", e sem pensar muito pedi pelo trivial, um capuccino acompanhado dum pão de batata artística e politicamente recheado com "cream cheese light".
Claro, o "light" sempre é de efeito psicológico, qual o pagamento por uma indulgência a todos os pecados da gula que sempre cometemos dentro de tais recintos.
Assim que o sino do mosteiro soou senti que ao menos um dos meus rins havia acordado, talvez pela trepidação das dez horas que soavam bem forte de cima da torre, então, pedi ao garçom que me indicasse o "toilet" já que era primeira vez que visitava a casa.
Com toda gentileza do mundo, me acenou com a mão a direção para que eu subisse a primeira escadaria, à esquerda do mezanino, que me levaria ao andar de cima aonde o toilet se encontrava.
Assim o fiz.
Passei por quadros, esculturas engraçadas, afrescos, cerâmicas de acervo, lustres harmoniosos, cortinas pueris, guarnições de museus, gente elegante de todas as idades até encontrar a escada que me levaria ao sanitário sob o som duma clássica bossa ao piano do Tom.
Adorei o passeio cultural...
Lá em cima, procurei pelas sinalizações , não as encontrei muito nítidas, bati à porta, ninguém respondeu, girei a maçaneta e entrei.
Nossa...que nobre salão aquele banheiro.
Absolutamente nada de tão diferente a não ser pelo conforto do ambiente que parecia um fino salão de Versailles, pela limpeza impecável , pelos espelhos pias e metais elegantes e pelo perfume sofisticado demais para o tal ambiente.
Escolhi uma repartição sanitária, tranqulamente encostei a porta e obedeci às ordens da minha filtração renal.
Não tardei a perceber que alguém já entrava no nobre salão, talvez para usar um vaso bem ao lado do meu.
Com toda desenvoltura do mundo, sai do meu cantinho para higienicamente lavar as mãos, quando, na parede à minha frente deparei com um homem espichado, um rapaz de porte pra lá de atlético, fazendo exatamente o que eu naturalmente acabara de fazer.
Mas nem de longe eu o fizera com tanta arte!
Num reflexo rápido dei um passo para trás, olhei hermeticamente para o teto, aliás um teto dum serviço de gesso impecável, e ali me escondi por segundos atrás da porta a pensar " e agora, o que eu faço, grito, peço socorro, peço desculpas?".
Fiz o obviamente natural, o mais educado.
Sempre a olhar para o teto eu disse ao rapaz:" olha, o senhor me desculpe, mas acho que entrei no lugar errado".
Eu com a minha costumeira mania de "achar".
Ele sempre tranquilo, sem interromper nem por um segundo um milímetro sequer do seu "longo xixi" (senti pela acústica) me esclareceu educadamente": "ora, não há de quê, mas a senhora com toda a certeza está no lugar bem errado!".
Nem me lembro como desci as escadas e retornei à minha mesa.
O garçom, que me percebeu um tanto aflita, me perguntou: " algum problema lá em cima, senhora?"
Eu não poderia contar daquela minha saia para lá de justa, que enm de longe combinava com o ambiente um tanto tradicional.
"É..não, é que ...é que...acho que não encontrei o toalete feminino".
"É logo ali nas escadas, mas é à direita, senhora...".
Claro que já refeita do susto e da gafe, agora aqui posso relatar a crônica que a vida ali me pregara.
E cá entre nós, já que a questão ali também era artística, eu nunca pensei que um simples "xixi" pudesse ser assim, digamos, algo tão parabólicamente... "art déco".
De fato, tal fato se eternizará aqui e, claro, também na minha lembrança, na de alguém que aprecia a "arte" sob todas as suas mais inusitadas formas e locais de exposição.
Enquanto eu pensava em como aqui descrever minha crônica do dia, o sino do mosteiro já badalava mais onze sonorizações, a homenagear o humor nosso de todos os tempos.