CHEGADA DE UM MALANDRO CARIOCA AO INFERNO

Não é segredo para ninguém que o malandro carioca é o rei da loquacidade, da conversa empolgante, cheia de maneirismo e civilidade, um ardil que derruba até os jumbos mais potentes.

Um dia morre um bom representante dessa boa estirpe. Mal fecha os olhos aqui, já os abre no Inferno.

Simpático e envolvente como sempre fora na Terra, vai logo tentar um colóquio animado com o Cão Mor, o chefe que detinha as chaves dos vários recintos infernais. Este era um gênio de pouca conversa, cara feia e fechada, e muito bem caracterizada segundo o imaginário coletivo da cristandade.

Apesar das dificuldades de acesso a ele, por causa dos meandros burocráticos e dos empecilhos postos por aqueles que são pagos só para dizer que seus chefes estão "em reunião", inobstante esses óbices, o carioca, que num ato automático sempre fazia menção de colocar a mão no bolso ao se deparar com algum impedimento mais resistente, foi conseguindo galgar todos os degraus de acesso a Sua Magestade Infernal.

Já na antecâmara, teve que enfrentar uma verdadeira sabatina com os áulicos que dificultavam de forma mais veemente e enérgica a entrada do malandro ao sacratíssimo gabinete do Santo Anaz. Mas, usando de todos os artefícios e expedientes de persuasão verbal, já que o fácil convencimento do bolso lhe era impossível, pois esse sensível órgão do corpo humano não nos acompanha na Eternidade, finalmente ele consegue seu desiderato: bater um papo com o Todo Poderoso Lúcifer!

O Diabo nesse dia estava com o Capeta no couro! Mal humorado e hostil a não mais poder. Porém, o esperto carioca logo conseguiu o meio adequado de angariar a simpatia do iracundo gênio do mal.

Inicialmente, monossilábico e muito irônico, dez minutos de conversa foram suficientes para que o clima do diálogo mudasse radicalmente: Se tornou amistoso, familiar e muito animado. De todo o prédio do Palácio Satânico se ouviam as gargalhadas oriundas da conversa trovejada no Gabinete do Chefe.

O bate papo durou duas horas e o carioca conseguiu o que jamais outro ser humano havia logrado desde o início dos séculos: Fazer o Rei Cão se levantar de seu trono para passear um pouco no entorno do Palácio.

O malandro, depois de cair nas graças do Chefão, consegue que este, sem nem olhar a Folha Corrida na Terra do sagaz carioca, dá a este o privilégio de escolher o local onde iria morar por toda a Eternidade.

O dois chegam na primeira porta e Lúcifer a abre e mostra como era lá dentro: Todo o mundo de cabeça para baixo, num solo cheio de espinhos, todo pedregoso e esburacado, sob um eterno sol de meio-dia, abrasador como o do mais quente deserto da Terra. O carioca chega a ter calafrios ao ver tanto sofrimento.

Numa segunda porta, o carioca encontra todo o mundo de cabeça para baixo, só que na sombra e no chão liso. Ele pensou: "Bom, aqui até que é suportável...", mas pediu ao amigo(?) que lhe mostrasse a terceira opção: era todo o mundo em posição ereta normal, de cabeça para cima, fumando, bebendo e conversando animadamente, mas com o corpo da cintura para baixo atolado em todos os tipos de estercos (de humanos, de gatos, de cachorros, etc.) e um forte odor de enxofre pairando na pesada atmosfera local. Ele tem uma reação súbita de repugnância, mas raciocina: "a gente, tal como na Terra, se acostuma fácil com as porcarias e imudícies. Aqui, pelo menos, ficamos em posição normal e podemos conversar e beber à vontade". O malandro aperta a mão do Poderoso Chefão e agradece a "gentileza" da atenção, pois resolve ficar naquele recinto fecal.

A porta é fechada. Dez minutos depois, uma retumbante e cavernosa voz é ouvida, com esta mensagem: "Bom, pessoal, o intervalo já acabou. Todos na posição normal (de cabeça para baixo!). Daqui a dois minutos passa a guilhotina gigante decepando os que não obedecerem a ordem."

Pedro Cordeiro
Enviado por Pedro Cordeiro em 01/06/2012
Reeditado em 30/05/2013
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