Os Deuses,os loucos,e um casamento no final.

Esteban criara seus dois filhos trabalhando na sua loja de baterias automotivas.

Com o tempo seu primogênito veio ajudá-lo no serviço para aprender os meandros da atividade.

Sua caçula desde cedo percebeu que aquilo não era para ela e foi estudar psicologia.

Mas isso tudo é passado.Vamos ao que interessa:

Naquela manhã de segunda-feira o comerciante abriu seu estabelecimento mais cedo para atender um dos seus melhores clientes .

As sete e dez três carros importados estacionavam na calçada em frente a loja.O cliente de nome Ramiro saltou de um dos veículos enquanto dois seguranças permaneciam ao volante dos outros dois.

__Preciso de baterias novas para meus três carros amigo!__disse Ramiro___Vou fazer uma viagem no fim de semana tipo caravana familiar e não quero ficar na estrada

Esteban sorriu.Aquele era o cliente perfeito.Ao invés de usar a bateria até arriar como a maioria das pessoas fazia,o empresário as trocava ao menor sinal de perda de carga.

___Vamos colocar de setenta ampéres nos três?__perguntou o comerciante,que já sabia a resposta

___Positivo!

Foi aí que Esteban olhou para o lado e lembrou que Ruan não havia chegado ainda."Aonde é que se metera aquele garoto?"Bem,garoto era força de expressão;seu filho mais velho já passara dos trinta,embora aparentasse ter dez anos a menos,graças a genética e a vida de solteiro bem vivida na casa dos pais.

__Ruan!__gritou.

Silêncio.Como deixar cliente esperando não era de seu feitio,trocou as baterias e recebeu o pagamento pelo serviço junto com uma boa gorjeta.

Novamente sozinho na loja,ligou para casa:

__Marta?O Ruan já acordou?

__Já__sua esposa respondeu__Ele saiu cedo.Disse que tinha que resolver um problema na cidade.

__É...Ele e seus problemas__Esteban deu um soco na mesa,o suficiente para que uma caneta caísse no chão__Acabou me deixando na mão aqui com um freguês.

__Deixa de exagerar homem!O garoto tem que ter a vida dele.

__Também acho;o que não pode é atrapalhar a minha.Depois a gente se fala...__ e desligou.

Segundos depois o telefone toca.

__Baterias Irmãos Valente,bom dia.

__Bom dia.Eu queria saber até que horas o senhor fica aberto aí.

__Meu filho;A LOJA fica aberta até as seis.__acostumado com os trotes,Esteban não dava mole.

__Quanto está a bateria de trinta ampéres?

Ele deu o valor e o cliente prometeu ir na loja mais tarde.Minutos depois,nova ligação:

__Baterias irmãos valente ,bom dia.

__Pai?É o Ruan.

__Finalmernte!Quando vossa senhoria vai dar o ar da graça?

__Eu chego no início da tarde.Estou aqui tentando tirar a segunda via da identidade.

__Mas você já não tinha visto isso?

__Não,não tinha..Olha;Depois eu quero contar uma coisa para o senhor...

__O que foi agora?Você arrumou outra confusão?Brigou com alguém?fez alguma dívida?

__Nada disso.É que eu ...Eu..Eu

__Fala logo meu filho,o telefone da loja não pode ficar ocupado

__Bem ..Bem..Lá vai...Eu vou ser pai;e o senhor vai ser avô.

Ele sentiu as pernas tremerem.

___Pai?Mas você não está nem namorando que eu saiba?!A Fátima não terminou o namoro com você?

__Terminou.Foi uma pessoa que eu conheci na balada há pouco tempo.

__Sei,sei,na balada...E o que você pretende fazer agora?

__Vou assumir o filho

__AH!AH!AH!Essa foi muito boa meu filho.Conta outra!

__Não entendi a risada.

__Não entendeu?Então eu vou explicar:A última coisa que você assumiu foi aquele financiamento dos móveis do seu quarto nas casas Bahia,lembra?

__Eu...Eu me lembro vagamente do financiamento...

__E você lembra quem acabou de pagar a dívida?Não precisa forçar a memória que eu respondo.Foi euzinho aqui!

__Foi um caso diferente.Naquela época eu ainda não trabalhava com o senhor e fui despedido....

__E gastou o dinheiro do seguro desemprego saindo na noite com seus amigos descansados ao invés de vir logo aqui pegar no pesado.

__Mas eu andava estressado,precisava de umas férias e .....Olha,eu vou desligar.Não dá para conversar com o senhor.

__Engano seu.Nós vamos conversar bastante quando você chegar.Não demore__e desligou.

Atordoado com a novidade,Esteban foi até a pequena geladeira da loja e abriu uma latinha de caracu.Não costumava beber durante a semana e muito menos de manhã mas,devido as circunstâncias,o álcool faria com que se sentisse melhor.

Posicionou sua cadeira de alumínio em frente a loja e sentou-se nela,como fazia todas as manhãs de verão para aproveitar a sombra que o prédio vizinho,mas alto que o seu, fazia na calçada.

"Pai!Ora essa!Só pode ser brincadeira"__ pensou

Enquanto tentava,sem sucesso,desviar seus pensamentos para outro assunto,uma voz meio rouca o surpreendeu:

__Fala homem de Deus!

Esteban levantou os olhos e encarou três homens barbados que,apesar do calor,vestiam camisas de mangas longas,pesadas calças jeans e sapatos fechados.Dava calor só de olhar.Sem paciência nenhuma para perder tempo com eles,o comerciante levantou-se rapidamente e foi levando a cadeira para dentro da loja enquanto dizia:

__Vocês me desculpem,mas eu tenho que entrar para dar um telefonema urgente.Com licença.

Ao dar as costas para o grupo ouviu de novo a voz rouca:

__Só se for um telefonema para o inferno,seu maldito!

Mais surpreso do que irritado ele virou-se para encarar o detrator,mas foi golpeado com um direto no rosto e caiu no chão.

Inconsciente,foi carregado para dentro da loja pelo trio.

Ao acordar,viu-se amarrado a sua cadeira de alumínio por cordas de sisal.A região do supercílio direito latejava e ele constatou,aflito,que sua camisa branca tinha gotas de sangue.

__Você ficará aí até confessar!__a voz rouca mais uma vez,carregada de raiva.

__Confessar o quê?__balbuciou Esteban,ainda meio tonto.

__Você sabe!Você sabe!__o ódio estava perigosamente infiltrado naquela voz.

A pergunta e a resposta,ambas enigmáticas,deixaram o comerciante atônito.Ele saberia o que fazer no caso de um assalto,pois já tinha vivido a situação algumas vezes,mas aquilo não parecia um assalto.

__O de casa!Esteban?

Era galinho,o dono da serralheria ao lado,entrando fagueiro na loja de baterias para bater um papo como fazia quase todas as manhãs.

"POU"

Esse foi o barulho da pancada que um dos

estranhos deu na cabeça dele.

Esteban viu o amigo cair grogue no chão e depois ser amarrado a cadeira giratória do escritório.Ao recobrar totalmente a consciência,o serralheiro,aterrorizado,perguntou baixinho:

__Mas o que é isso Esteban?Quem são esses caras?

__Não conheço,nunca vi,e nem desconfio quem sejam.

__Calem a boca!__berrou a voz rouca__Se continuarem tagarelando invocarei Viracocha para punir vocês!!

__O quê?__Disse Esteban olhando para o vizinho,que lhe devolveu o olhar de incredulidade.

__É isso mesmo que você ouviu!O Deus Viracocha punirá os dois.

__Esteban!Esteban!

Era a voz de Ramiro,o cliente vip.Alguma coisa deveria estar errada com uma das baterias,pensou Esteban.

___Fechem a porta da loja antes que mais algum infiel entre!__ordenou a voz rouca__Vamos começar logo o ritual do sacrifício!

Os dois comandados foram até a entrada da loja e,ignorando Ramiro e os seguranças,arriaram a porta de aço.Esteban,mais nervoso desde que ouvira a palavra sacrifício,gritou de sua cadeira-prisão:

__Socorro Ramiro!Eu e o galinho estamos presos aqui!Chame a polícia!

"PFFPAFT"

Um tapa foi a punição de Esteban pela ousadia.Enfurecido,o comerciante esqueceu o medo e berrou:

__Mas que porra é essa!!!?!!!!Vocês estão malucos???

O líder encarou Esteban com um olhar vermelho e falou:

__Quando acordei hoje eu sabia que finalmente encontraria os infiéis!Com a morte de vocês vamos livrar o planeta terra do apocalipse!

Esteban não sabia de que biboca aqueles três haviam saído,mas a partir daquele momento teve a certeza de eles eram completamente pirados.Tentou uma outra abordagem:

__Não seria melhor vocês se acalmarem?Na geladeira tem um suquinho de maracujá.Vocês tomam....

__Peguem o punhal do sacrifício!__ordenou o líder,ignorando o apelo de Esteban

O segundo em comando tirou da mochila que carregava uma faca de dar inveja ao Rambo.

__Ai meu Deus!Nós vamos morrer Esteban!__gritou galinho,constatando o óbvio.

__Já que você falou vai ser o primeiro.Tragam ele!__ordenou o líder,encarando galinho.

Os dois comandados limparam a mesa do escritório e a transformaram numa mesa de sacrifício.Galinho foi arrastado até o móvel e colocado de barriga para cima,com os braços imobilizados pelos cúmplices,posicionados um de cada lado do futuro mártir.

__Segurem bem o infiel!__ordenou a voz rouca__Vamos livrar o planeta desses vermes! .

Esteban não sabia se continuava a acompanhar aquela cena dantesca ou se fechava os olhos para ver mentalmente o filme de toda sua vida que teimava em passar,colorido, dentro de seu cérebro.

Lembrou da esposa e dos filhos,artistas principais da película,e sentiu remorso por ter sido duro com Ruan.

Abriu os olhos e viu o voz rouca levantar a faca acima da cabeça com as duas mãos e preparar a estocada.Galinho tinha os olhos arregalados e uma saliva espessa saía de sua boca enquanto se debatia tentando livrar-se das mãos de ferro que o seguravam.Logo tudo estaria consumado e os dois não passariam de cadáveres frios à espera do enterro ou da cremação,pensou.

Antes que o punhal descesse,porém,os dois seguranças de Ramiro apareceram vindo dos fundos da loja.Armado de uma pistola,um deles ordenou:

__Solta a faca agora!

O voz rouca sorriu o sorriso dos loucos e desceu o punhal.Antes que a lãmina atingisse o peito do marreco,perdão,do galinho,um tiro jogou o maluco contra a parede oposta fazendo-o cair inconsciente no chão.Os outros dois,menos desequilibrados talvez,soltaram a vítima e renderam-se.

Meia hora depois a loja estava cercada de carros de polícia e uma ambulância prestava os primeiros socorros ao peru,digo,galinho,que tivera uma crise nervosa.

Ao sair do interior da loja deitado na maca,o serralheiro ainda teve de ouvir a chacota das crianças da rua que gritavam em coro:

"SEU GALINHO VIROU GALETO!SEU GALINHO VIROU GALETO!COMERAM SEU GALINHO DENTRO DA LOJA DE SEU ESTEBAN!ENFIARAM A FACA NELE!

Galinho ficaria por anos com fama de galeto fresco por causa do acontecido naquela manhâ.

Enquanto isso Esteban,mais inteiro do que Galinho apesar do corte no supercílio,conversava com os policiais dentro da loja.Ao revistarem a mochila do grupo os agentes da lei encontraram uma revista sobre mitologia das sociedades pré colombianas,o que explicava a adoração dos "lelés" ao Deus inca Viracocha.

O policiais apuraram que o bando passara um dia antes no açougue de seu Tibério__o último que resistia no bairro__E roubara a faca preferida dele,que havia pertencido ao seu avô,também açougueiro.O punhal do sacrifício não era tão puro assim.

Foi descoberto também que o trio fugira de uma instituição psiquiátrica mineira alguns meses antes e vagava sem rumo pelo país.

O voz rouca não morreu,apesar do tiro ter passado bem perto de seu coração,e os três voltaram ao confinamento no manicômio.

Chegamos quase ao final da aventura.Falta,entretanto,acompanhar a conversa entre Esteban e Ramiro,ocorrida minutos depois da entrada dos seguranças na loja:

__Ainda bem que você lembrou que a serralheria do galinho aqui do lado tem um muro que dá para escalar e pular no meu terreno__disse Esteban agradecido.

Ramiro,que estava com a fisionomia sombria,respondeu:

__Fiquei contente de te ajudar Esteban,mas eu voltei naquela hora para conversar contigo sobre um assunto bem desagradável.

__Olha,se uma das baterias estiver com defeito a gente troca sem problemas;você é um freguês antigo e eu...

__Seu filho engravidou minha filha mais velha Esteban!__interrompeu bruscamente Ramiro.

O silêncio na oficina era quase sólido.Chocado,Esteban balbuciou:

__Tem certeza?

__Minha esposa me ligou pouco tempo depois que eu saí daqui e me contou.Ele vai ter que assumir o filho Esteban!

__Ele vai fazer isso sim Ramiro,pode ficar tranquilo.__Esteban falava tentando convencer a si próprio de que aquilo pudesse acontecer.

Os dias que vieram logo depois foram de tempestade.Apesar daquele papo todo de assumir o filho,Ruan tentou fugir alistando-se na legião estrangeira francesa,mas seu plano foi descoberto por Esteban e ele teve de encarar o casório,marcado para dali há um mês,pois Ramiro não queria filha sua casando barriguda.

No dia do matrimônio,dentro da igreja e de um terno alugado,Esteban não parava de pensar no futuro daquela união.O filho só entraria com o bilau,o resto era por conta do sogro.Lembrou-se então do episódio dos malucos e decidiu que não sofreria por antecipação.Lavaria as mãos e curtiria a festa.

Ramiro,por sua vez,já pensava no emprego que daria ao genro na sua empresa de computadores.O safado começaria como boy para ralar bastante e valorizar o dinheiro.

Quem tem filho grande é elefante.

arqueiro
Enviado por arqueiro em 27/05/2012
Reeditado em 17/06/2012
Código do texto: T3691119
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.