Cada um tem o Inferno que merece - Cap. IV

CAPÍTULO IV – Castelo Vermelho: Primeiro Andar

Enfim, chegamos ao Quinto dos Infernos, um extenso local onde se localiza o Castelo Vermelho, lar dos diabões. Olhei nas laterais dos portões reais, procurando a numeração “666”, mas nada encontrei.

Ao entrarmos, somos abordados por 2 criaturas monstruosas, questionando nossa identidade e nosso objetivo ali. Caim cuidou deles e prosseguimos pelo cenário quase totalmente em chamas sob um céu avermelhado.

Caminhamos durante algum tempo, passando por lagos fervente, rios de lavas e muitos instrumentos de torturas abandonados pelo chão. Dava-se para ouvir o som e sentir o cheiro das rochas sendo derretidas:

- Era pro inferno inteiro ser assim. Totalmente desconfortável, calor insuportável com eternas sessões de torturas e banhos escaldantes. Isso durante todo o momento de nossa existência. Eu peguei um pouco desse período e realmente não é nada bom. Mas, com o passar das eras, esse local foi se enchendo de pessoas e a cada era o número de internos aumentava mais e mais, até não caber uma única alma a mais. Ninguém sabia que os humanos poderiam se tornar tão ruins, por isso, criou o Inferno menor que o Céu. Então, fizeram as novas instalações e não conseguiram manter o mesmo padrão, até, enfim, tudo sair de controle e ficar desse jeito atual, que é bem melhor para nós, né – esclareceu Caim.

Realmente, deveria ser horrível. Ter o corpo dilacerado e escaldado eternamente deve ser incômodo. Mas não tenho certeza se os humanos se tornaram tão ruins assim ou se todos eles, em toda a existência, tinham a mesma capacidade de serem ruins. Acho que sempre fomos assim. Acho que o que lotou o Inferno, não foi o aumento da maldade, mas sim o aumento da densidade demográfica. Mais pessoas, mais possibilidades e situações para se tornarem ruins. Cresceram na mesma proporção. De qualquer maneira, nesse momento agradeci por pensamento “Obrigado, cruel natureza humana. Sem você, eu estaria sendo torrado e fatiado agora. Obrigado também a Deus, por ter nos criado com essa natureza”.

Chegamos à enorme porta do Castelo Vermelho, um castelo em ruínas avermelhado de três andares. Caim empurra a porta e vejo uma enorme sala, coberta totalmente com um carpete vermelho, com algumas portas laterais e uma larga escada central. Parecia uma mansão. Entramos.

Como Caim não sabia onde exatamente se localizava a Sala de Arquivos do Julgamento, tivemos que utilizar um método infalível: o da eliminação. Tivemos que abrir porta por porta, até encontrar nossa bendita, quero dizer, Sala de arquivos. Começamos pelo lado direito.

Primeira porta: trancada.

Segunda porta: trancada

Me senti em um jogo do Resident Evil, ouvindo os barulhos das maçanetas trancadas. “The door is locked” – imaginei as legendas do jogo.

Terceira porta: “Reservada para Richard Dawkins e Stephen Hawking” – dizia uma placa - com direito a rampa de acesso e tudo. Acho Hawking interessante, sabe. Penso que ele deve ser umas das pessoas que mais surpreendeu a Deus, pois, em suas condições, a maioria das pessoas se renderia ao conforto intelectual e religioso, totalmente o oposto desse físico maluco.

Quarta porta: aberta. Ao entrarmos, nos deparamos com uma sala de paredes vermelhas, extremamente abafada e quente, com uma grande mesa e dois notebooks sobre ela e uma cadeira.

- Ah sim, a sala de vídeo conferência do Inferno. Aqui tem acesso a tudo que acontece no Céu e na Terra, tudo ao vivo – disse meu amigo Caim.

Ao saber dessa novidade, fiquei animado para ver como é o Céu. Queria ver se tinha cachorros lá.

- Posso dar uma olhada no Céu? – perguntei.

- Pode sim. Vamos lá que eu te ajudo a conectar.

Aproximamos-nos da mesa notei algo irônico: os notebooks eram da marca Apple. Essa mesma marca cuja logomarca é o suposto fruto proibido mordido:

- Eva deveria exigir seus direitos autorais ao Steve Jobs – brinquei e Caim riu.

Primeiro, acessei o computador que faria uma conexão direta com o Céu. Achei que a conexão seria lenta, que eles usariam internet discada, por que aquilo sim era coisa do capeta, mas queimei a língua. Internet de alta velocidade. Puro luxo.

Cliquei no ícone representado por um peixei e me conectei ao paraíso. Na tela inicial, havia várias opções de câmeras. Comecei com a visão panorâmica do Céu. Na tela, via-se um grande campo verde, com lagos exuberante, florestas fantásticas e um arco-íris de tirar o fôlego, uma cena típica dos documentários do Discovery Channel mesmo, perfeita. Tinha também vários grupos de pessoas reunidas, formando círculos, todas cantando felizes, mas nenhum sinal dos cães ou de algum outro animal. Percorri uma boa parte do paraíso não achei Deus. Queria ver como ele é. Sei que somos imagem e semelhança dele, mas queria saber se ele é de pele branca, preta ou vermelha, a cor de seus cabelos e se tem o olho puxado, ou então se é tudo isso misturado. “Imagem e semelhança”. Só queria saber de qual povo. Voltei à tela inicial. As outras câmeras pareciam todas iguais, várias pessoas sentadas em forma de roda e cantando. Como não estava a fim de percorrer todas, cliquei no campo de busca do Google Céu e digitei o nome da minha avozinha. Para minha felicidade e tranquilidade, a encontrei. Sabia que ela era uma santa. Continuei a passear pelas câmeras e parei em um testemunho que estava rolando lá. Uma pessoa com um curto bigode sobre a boca, cabelos negros e lisos e roupa social portava um microfone e contava seu testemunho para uma multidão sentada nas verdes gramas. Pensei: “Charles Chaplin era uma boa pessoa”. Aproximei a câmera e me assustei com a pessoa. Havia me esquecido que Chaplin era ateu. Era Hitler. O maldito está no Céu! Enfureci-me quando o vi feliz, relatando sua mudança de comportamento para a multidão. Queria ver a cara dos judeus que escutavam isso. Acontece que, ao contrário do que eu aprendi na escola, o ariano imbecil fugiu para a Argentina e teve uma vida tranqüila ao lado da sua esposa idiota, Eva. Ele, que sempre creu em Deus, teve tempo o suficiente para repensar seus atos e se arrependeu verdadeiramente de suas ações na última fase da vida e morreu de velhice. Afinal, todos sabem que qualquer pessoa comum ou qualquer genocida que realmente se arrependa dos seus pecados é perdoada. Vai ver por isso a igreja ao lado da minha antiga moradia tinha bastante “ex-pessoas ruins”.

Também encontrei por lá Sergio Vieira de Mello, Senna, Luther King, Oskar Schindler e outras personalidades mundiais. Já cansado do tédio, fechei a janela do Céu e cliquei em outro ícone.

Terra.

Bom, sobre a Terra não terei muito a acrescentar para vocês. Afinal, vocês ainda estão nesse mundinho mais ou menos. Com uma população bem superior ao Céu, tinha mais opções de câmeras também. Na maioria, via-se pessoas comuns, simples, arrumando suas casas, indo trabalhar, se divertindo e tirando um cochilo. Por um momento, senti até saudades de viver lá. Sabe, mesmo você sabendo que existem pessoas extremamente ruins e que você pode ir trabalhar e quando voltar encontrar sua família inteira assassinada ou viajar e um motorista bêbado te causar um acidente, tem coisas que valem a pena na Terra. Daria tudo para virar a noite com meus amigos e ver o nascer do sol ou assistir um bom filme. Ao mesmo tempo, vi várias câmeras registrando assaltos, assassinatos, homens bomba e tortura de animais. Isso tirou minha ilusão de “mundo bom” e fez diminuir a saudade. Uma coisa que nunca me conformei, foi a comodidade, boas refeições e assistência a saúde que os bandidos têm acesso nos presídios. Por que a legislação humana não é tão rigorosa quando a divina? Se alguém faz algo fora do “correto”, passa o resto da vida sofrendo e aprisionado em um local ruim com pessoas ruins. Isso pelo menos assusta quase dois bilhões de pessoas. Aproveitei a oportunidade e dei uma checada na minha cidade natal. Não sei quanto tempo estou aqui, mas parece que não muito, pois nada mudou por lá. Dei uma volta pela Prefeitura Municipal, cliquei em algumas pessoas e procurei “excluir” na tela, mas não encontrei. Para evitar mais nostalgias, fechei aquela merda toda e disse:

- Caim, acabei por aqui, vamos continuar nossa procura?

- Claro, vamos sim!

E saímos pela mesma porta que entramos.

Com aquele clima pesado e assustador, a qualquer ruído próximo eu já imaginava o Nêmesis quebrando a parede me matando de susto. Fiquei apreensivo, mas nada aconteceu. Fomos até a última porta deste andar e encontramos um enorme estoque de bebidas. Peguei uma garrafa de vinho para acompanhar minha nostalgia recente e Caim pegou uma vodka francesa. Saímos do local. Caim sugere:

- Vamos para o segundo andar, já acabamos de procurar por aqui.

_ Bora! – respondi.

E, acompanhados por nossas bebidas, subimos aquela larga escada central com estátua de gárgulas em suas laterais, rumo ao segundo andar.

Igor N
Enviado por Igor N em 24/05/2012
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