Poltrona errada
Dentro do ônibus de viagem sempre torcemos para que ninguém sente do nosso lado. Cada pessoa que passa reto, não senta na poltrona vazia, é uma comemoração interna. Mas raramente conseguimos viajar sem alguém do lado. E parece que a vida faz uma sacanagem, por que quanto mais você torce para não sentar alguém do seu lado, mais chata é a pessoa que senta.
Os dois passageiros estão em silencio. O homem na 33, a mulher na 34. Ela da uma olhada pra ele, ergue as sobrancelhas o cumprimentando, ele repete o movimento dela. Ela da um suspiro, é a deixa pra ele começar a ler o livro antes que ela comece a falar, tarde demais, ela começa.
- Eu não sei porque, mas consigo dormir no ônibus de viagem.
- Ah! – responde e marca, com o dedo, a pagina que vai começar a ler.
- É muito desconfortável.
- Pois é.
- Eu deito e pensou: hoje eu vou dormir a viagem inteira. Então da cinco minutos eu viro pra um lado, mais cinco, para o outro, mais cinco, para o outro. Eu fico me revirando e não consigo achar a posição correta.
- Hum...
- Eu admiro quem consegue.
- Eu também.
- Também não consegue?
- Também admiro.
- Ah.
Silencio. Ele abre o livro onde o dedo estava marcando.
- Sabe, acho que na verdade não tem uma posição correta pra dormir.
Ele da uma olhada pra ela, mas dessa vez mantém o livro aberto.
- Não sei como as pessoas conseguem.
- Nem eu.
- Olha aquele dali, o ônibus nem saiu da rodoviária e ele já está dormindo.
Assente como se concordasse. Volta a olhar para o livro.
- Por que eu não sou como ele?
“pois é, porque você não é?” Pensa ele, mas não fala.
Silencio. Ela fica observando o cara dormindo. ele aproveita que ela parou de falar e começa a ler.
- Sabe de uma coisa.
Dessa vez ele não se da o trabalho nem de tirar os olhos do livro.
- Sempre que eu viajo eu tenho a impressão que o banco dos outros deita muito mais do que o meu. – força uma tosse tentando acordar o passageiro que está dormindo. Todos olham para o banco onde eles estão, menos o homem que continua dormindo. Enfia a cara dentro do livro.
- Senhor esse é o meu lugar.
- Claro que não!
- É senhor, está aqui no bilhete 33.
- Pois é eu sei, está no meu também.
- Não tem como estar no teu.
- Está.
- Então pega o bilhete pra eu ver.
- Porque?
- Porque eu quero que o senhor prove que não está no meu lugar.
- Eu não tenho que te provar nada.
- Como não?
- Não tendo. E outra olha o tanto de banco vago que tem.
- Mas eu não quero esses bancos vagos. Eu quero o meu banco. E outra, e se eu sento no lugar de alguém e essa pessoa chega.
- Você sai.
- Então sai o senhor.
- Porque?
- Porque o senhor está no meu banco.
Silencio.
- Senhor?
- Oi?
- Faz favor?
- Depende o que?
Ela fica parada com a mão na cintura olhando pra ele.
- Esse é o meu lugar.
- Como seu lugar?
- O senhor está na poltrona 33, certo?
- Sim.
- E aqui no meu bilhete está escrito: poltrona 33. – mostra pra ele.
- Certo.
- Então logo o senhor está sentado na minha poltrona.
- Não estou. Estou na minha.
- Senhor.
- Cade o seu bilhete.
- Na minha bolsa.
- Cade a sua bolsa?
- Aí em cima.
- Então pega ela.
- Não.
- Por que não?
- Vai se eu levanto pra pegar e alguém senta no meu lugar?!
Silencio. Ela fica parada olhando pra ele. Então pega a bolsa que está no compartimento acima da cabeça dela e joga pra ele, que tira o bilhete e mostra pra ela.
- Viu, poltrona 33.
- Como assim?
- Viu!
Finalmente o motorista aparece para intervir.
- O que está acontecendo aqui?
- Ele está no meu lugar. – fala e entrega o bilhete para o motorista que confere.
- Não estou não. – diz ele.
- Senhor? – diz o motorista olhando com cara de reprovação.
- Caramba parece que ninguém aqui confia em mim mesmo. O que será que tem de errado comigo?
Saca o bilhete, entrega para o motorista, que observa em silencio.
- E aí diz pra ela como eu não estou na poltrona errada.
- É realmente ele não está na poltrona errada.
Ele abre um sorriso de comemoração. Ela se põe a questionar.
- Mas como...
- Ele está no ônibus errado.
O sorriso dele some da cara. Enquanto o dela aparece.
- O seu é aquele do lado que já saindo, se o senhor não correr vai perder.
Ele junta as coisas e sai rapidamente. Ela senta vitoriosa.
Ele ainda está com o livro aberto na mesma pagina. Ela ainda não parou de falar.
- Eu acho que deveriam lançar um Kama-sutra, com posições para dormir no ônibus de viagem.
Ele só balança a cabeça.
- Cometa-sutra, é um bom nome. Cometa-sutra.
Um homem chega perto da poltrona deles e para. Ela fica em silencio. O homem confere o bilhete, o numero, o bilhete o numero.
- O senhor está na minha poltrona.
- Não.
- Está sim. 33, essa é a minha poltrona. E dessa vez eu tenho certeza. – argumenta o homem que a poucos minutos estava no ônibus errado.
O homem saca o bilhete do bolso e confere, ele realmente está no errado, o seu é o 36. Então ele fecha o livro e se encaminha para a poltrona correta, dando graças a Deus por estar errado. O outro homem senta, dessa vez no lugar certo. Silencio. A mulher que está na poltrona do lado, solta um suspiro.
- Eu não sei porque, mas consigo dormir no ônibus de viagem.