ANTÕI DAS CABRA
Nunca tive o conhecimento da origem do seu apelido, mas tive a experiência de presenciar, de corpo inteiro, a sua metamorfose, quando os seus ouvidos sempre atentos captavam o som odiado e nauseante: Antõi das Cabra.
Morava à rua Pe. Cícero, vizinho à residência do ex-prefeito, José Monteiro, juntamente com duas irmãs e um irmão. Uma das irmãs, enfermeira diplomada, bastante conhecida e requisitada na área de saúde da cidade, era proprietária de um Ambulatório situado à rua São Francisco, nas imediações do inesquecível C.R.P (Centro Regional de Publicidade), de Darin (Dário Maia Coimbra). O irmão, professor, por sua vez, desfrutava de prestígio e admiração junto ao corpo docente e discente do Ginásio onde lecionava há vários anos. A outra irmã... foge-me à memória qualquer lembrança profissional que a ela diga respeito.
De meia idade, calvície acentuada, chapéu de massa durante o dia, cassetete debaixo do braço, camisa de manga por dentro da calça de xadrez, pernas cruzadas exibindo buracos nas meias avermelhadas, sapatos desgastados onde a graxa jamais morou, e sentado na cadeira de balanço de palhinha entrançada em frente ao Ambulatório de Soledade, seu Antonio deixava a vida passar, calmamente, e levá-lo pelos seus ventos até onde ela quisesse ir, desde que aquele apelido não fosse pronunciado.
Foi Maurício Almino que me chegou com a sua história. Éramos, à época, os verdadeiros caçadores de “presepadas”. Vivíamos maquinando “peças”. Até que a ocasião se fez propícia. Descíamos em direção à Praça para namorar, e ao dobrarmos a esquina da rua São Francisco, deparamos com ele sentado, cassetete sobre os braços da cadeira, balançando-se e cantarolando não me lembro o quê, e junto à cadeira pelo lado de dentro da calçada, adivinhe o quê.
Adivinhe! Não conseguiu? Um monte de pedras. P-e-d-r-a-s. P-e-d-r-a-s. Passamos adiante para harmonizar a estratégia. Tudo pronto. |Retornamos.
Havia decorrido uma meia hora. Ao nos aproximarmos, permanecia na mesma posição, cantarolando a dita cuja que não lembro. Maurício tomou a iniciativa:
- Boa noite, seu Antõi.
Ele já pegou no cassetete.
- Boa noite.
Eu entrei na jogada.
- Tudo bem por aqui?
- Mais ou menos. Tem um bando de menino mal educado que passa por aqui todo dia pra infernizar minha vida. Eu tô aqui queto, não mêxo com ninguém, e leles vem justamente aqui me tirar do sério. Aí depois que eu quebro a cabeça de uns três ou quatro, o pai vem correndo. O que é qui vocês qué mesmo?
- Seu Antõi, nós queremos prestar solidariedade à sua pessoa. Realmente estes pais não se preocupam em dar uma educação adequada aos seus filhos. Por isso eles desrespeitam pessoas de bem como o senhor – falou Maurício.
- Vocês estão com a razão. Se os pais se preocupassem mais com a educação, os filhos saberiam respeitar qualquer pessoa. Nem os pais são respeitados!
- Seu Antõi, nós ouvimos falar o que eles dizem.
De um salto ele estava de pé com o cassetete em posição de ataque.
- Se falarem eu quebro os dois em banda.
A situação começava a agravar-se porque uma pedra pontiaguda fazia nesse momento parte do contexto. Apressei-me a desfazer a tensão.
- Não é o que o senhor está pensando não. Nós somos gente de bem, não temos o intuito de tirar sua paz; muito pelo contrário, estamos do seu lado para o que der e vier.
Acreditou em minhas palavras e sentou-se novamente. O cassetete voltou a descansar nos braços da cadeira, a pedra voltou ao lugar de origem. Acendeu um cigarro BB. Aquietou-se. Maurício retomou.
- É seu Antõi, não tem mesmo quem possa com essa garotada. Quando eles descobrem o apelido de alguém, é fogo! E quanto mais a pessoa se incomoda, pior fica. Aí é que eles caem de pau. Graças a Deus que eu não tenho nenhum apelido, porque eu sei que eu não iria agüentar. Não é seu Antõi... das Cabra!
Os pés batiam na traseira enquanto pedras zuniam ao nosso redor. Palavrões, imprecações e impropérios eram detonados contra os tímpanos de quem estivesse por perto. Depois de uma distância segura, paramos. Coração saindo pela boca e “puxando” o ar, rimos até não querer mais pelo sucesso da nova presepada.
Se eu pudesse encontrar hoje com seu Antõi das Cabra, falaria a mesma coisa, porém não correria mais. Permaneceria sem medo, no mesmo lugar. Porque onde ele está só se atiram rosas.
- Ai seu Antõi, com espinho não!
ALMacêdo