Cada um tem o Inferno que merece - Capítulo 2

CAPÍTULO II – Encontros inesperados e um pub nada comum

Após a chapação com meus novos amigos, Caim me convida para darmos um volta no grande centro infernal, lá onde fica o enorme palco. Janis Joplin e sua galera ficaram por lá mesmo bebendo, cantando e fumando maconha.

Ao sair do Albergue, chegamos à rua por aonde viemos. Ao virar a primeira esquerda, para irmos em direção ao centro, nos deparamos com algo que me deixou amedrontado. Demos de cara com um animal grande, quadrúpede e com estatura de um pequeno cavalo. Sua pele era preta e totalmente ressecada, como se fora carbonizada. Via-se lavas nas rachaduras. Em seu dorso, possuía espinhos grandes os suficientes para me atravessarem. Seu rosto mais parecia um dragão enfurecido e havia fogo no interior de sua boca e em seus olhos. Ele me fitou por alguns segundos e senti medo e um vazio em minha alma como nunca senti antes. Mesmo com medo, não conseguia parar de olhar para seus olhos em chamas, algo me hipnotizava. Começou a correr em nossa direção, deixando pegadas flamejantes por onde pisava. A cada passo que ele dava ao nosso encontro, a sensação de medo e vazio aumentava e não conseguia ouvir mais nada além do som da sua marcha. Sentia-se seu forte cheiro de enxofre. Era um Cão Infernal. Todos os meus sentidos estavam voltados para aquele ser. Fiquei nesse estado por alguns segundos, até a criatura nos alcançar. Quando estava prestes a nos tocar, Caim estendeu sua mão na minha frente e a criatura tombou ao chão, com sua barriga petrificada para cima. Caim começou a fazer carinho na criatura, que balançava seu rabo de lanças para todo o lado, como se estivesse alegre. Então Caim me surpreende:

-Esse é o Xuxo, o meu cão infernal. Pode fazer carinho nele, ele é mansinho.

-Xuxo? – perguntei.

-Sim, Xuxo – confirmou Caim.

Lamentável. Colocaram o nome do cão da Xuxa em um cão Infernal. É mole? No momento, me veio um clipe da Rainha dos Baixinhos intitulado Xuxo, que era relacionado a uma mensagem subliminar. Tentei encaixar os fatos, mas fiquei com preguiça.

Após alguns minutos de troca de carícias entre nós e a besta, seguimos nosso caminho. Questiono Caim se o tempo que passamos juntos não está prejudicando-o, pois parou de receber as novas almas, o que é a sua função. Ele responde que não é responsável por todos os novatos, apenas alguns. Existem outras almas experientes por aqui.

Chegamos ao centro do Inferno. O cenário ainda é o mesmo: muitas pessoas, muito calor e muita bebida.

No ponto em que estávamos, conseguia ver a entrada do Inferno, por aonde cheguei. Via-se muitos jovens chegando ao local, com aparências interessantes e semblante no rosto de “curioso”. Um estava com a uma camisa da banda Deicide. Enquanto analisava os novos cidadãos, que sentirão fome e calor comigo, vi uma cena muito curiosa. Chegara ao inferno um grupo de aproximadamente 15 pessoas, variando entre homens e mulheres, de idades variadas, menos crianças. Todos vestiam roupas e sapatos sociais, com exceção de um que vestia uma espécie de manto claro com tons dourados. Por causa do grande número de pessoas, perguntei ao Caim se sabia algo sobre eles. Caim respondeu:

-O teto de uma igreja desabou – respondeu calmamente. Aqui está lotado de pessoas religiosas – completou.

Era o pessoal do “vaticanismo-evangélico”, como gosto de chamar. Admito que não fiquei surpreso por pessoas que freqüentam igreja serem enviadas para esse lugar. Tem gente lá muito pior do que eu. Comentários maldosos vieram na minha cabeça como “Será que não pagaram o dízimo?” ironizei, mas guardei apenas para mim. Dessa vez, não sobrou nem para o pastor. Fixei o olhar no grupo até passarem por nós dois. Via-se a cara de surpreso e assustado da maioria. Enquanto passavam pela gente, ouviam-se seus gritos, no meio da multidão: “Tá queimado”, “Isso é uma prova divina” e até uma “Aleluia”. Repito o que eu disse antes: tem coisa que não muda nem no inferno. E minha mãe estava certa: igreja não é garantia de ida para o Céu.

Enquanto caminhávamos em meio à multidão agitada, Freddie Mercury com seus dentes de escavadeira se preparava para seu espetáculo no palco. Avistei um antigo senhor que conhecia, conhecido como Seu Francisco, que morreu uns dois anos antes de mim. Acidente de carro. Ele era um senhor honroso, muito solidário, aposentado pelo grupo Médicos Sem Fronteiras. Era enfermeiro. Claro que ele tinha seus defeitos, afinal, era um humano, não um anjo (se bem que os anjos não podem ser usados como referência de bons modos, a criação do Inferno é prova disso). Uma vez o flagrei “fazendo dedo” para uma vizinha que reclamou do rádio com som alto. Mas, mesmo assim, era uma das pessoas mais bondosas, gentis e caridosas que conheci, aquele estereótipo exato de velhinhos bonzinhos e sorridentes que passa na propaganda de respeito à terceira idade. Irrelevante. Seu destino para o Inferno já estava traçado há tempos, pois ele tinha um homem como cônjuge. Corrijo a frase da minha mãe: ser uma boa pessoa não é garantia de ida para o Céu.

Deus me livre de reencontrar minha avó aqui. Não quero ficar pensando o que de ruim ela fez para ser enviada pra cá. Prefiro ficar com a imagem de “Madre Teresa” que tenho dela. Enquanto pensei nisso, falei em voz baixa:

- Por que será que fui enviado pra cá?

- O que você disse? – perguntou Caim.

-Disse que queria saber as merdas que me trouxeram até aqui, no Inferno – respondi em voz alta.

- Ah sim. Isso eu posso te ajudar. A sala de arquivos do Julgamento Final está um pouco longe daqui, fica no Quintos dos Infernos, lá no Castelo Vermelho, abrigo das entidades com alto grau hierárquico. Mas eu consigo te levar até lá, se você quiser.

Fiquei surpreso pelo Quintos dos Infernos realmente existir, agradeci e aceitei a ajuda, nessa ordem. Enfim, continuamos a travessia até meu destino desconhecido. A voz de Freddie Mercury nos acompanha até um pub nomeado como “A Serpente”. Caim sugere:

-Vamos dar uma parada rápida aqui, pra gente conseguir umas bebidas para disfarçar a fome. Depois prosseguimos, pode ser?

-Claro, afinal, não preciso ter pressa mesmo – respondi.

A Serpente era um ambiente freqüentado por muitas pessoas interessantes. Da porta de entrada, via-se um extenso balcão de atendimento, com muitas bebidas na estante da parede, com cadeiras altas próximas ao balcão. Várias mesinhas de madeira escura no centro e, na parede oposta ao balcão, uma sequencia de sofás de couro negro, com mesas centrais. Um lugar de primeira, se comparado a todo o resto.

Aproximamos-nos do balcão para pedir uma dose de coragem:

-Senhor, nos sirva com duas doses duplas de uísque, por favor – solicitei.

-Não sou atendente, seu merda inerte adorador de cinema – respondeu o jovem senhor.

Era J. D. Salinger. Fiquei feliz em ser insultado por ele. E mais, queria estar com meu livro favorito dele aqui, só para pedir seu autógrafo. Imagino a simpatia que ele iria me tratar.

Caim, ao perceber a grosseria, se adiantou e pegou ele mesmo uma garrafa de uísque, só para nós dois e ficamos sentados ali junto ao balcão. Segui o Sr. Salinger com os olhos, com o intuito de beber umas, ganhar coragem e perguntá-lo qual sua opinião sobre o assassino de John Lennon usar seu único romance escrito como parte de sua defesa. Mas, ao ver a mesa que se sentou, fiquei desmotivado. Vi Nietzsche, Darwin, Epicuro, Freud, Thomas Jefferson e Mark Twain completando a mesa. Pensei “O papo ali deve ser sinistro” e tentei imaginar a conversa daquela mesa:

“Ainda me acusam de ter matado Deus, acredita?” – indagaria Darwin.

“Deus não está morto” – afirmaria Nietzsche.

“Agora também sei disso e fico feliz por não ser descendente de um peixe idiota” – completaria Charles.

“Ora, se eu acreditasse na Bíblia, como insistia minha mãe, eu não estaria aqui com vocês. Não tenho culpo se não gosto de fábulas” – lamentaria T. Jefferson.

“Para mim, Deus ainda é um preguiçoso que gosta de ver o circo pegar fogo” – defenderia Epicuro.

“Gente relaxa. O mundo é bi!” – Freud tentaria mudar o assunto.

“É, apesar de estar aqui, eu repito minha frase: prefiro o Paraíso pelo clima e o Inferno pelas companhias” – finalizaria Twain e todos ririam juntos.

Isso é o que se passava na minha imaginação. Então, como manda a ciência, criei uma hipótese, agora vou analisar os fatos para chegar a conclusão. E a melhor maneira é ouvindo a conversa deles. Depois de algumas doses, me aproximei da mesa deles, disfarçadamente, para tentar ouvir o papo cult. Aproximei-me receoso, com medo de ser expulso a palavras que nem conheço, mas fui assim mesmo. Ao me aproximar da mesa, percebi que estavam todos alcoolizados. Freud rodava uma garrafa de vodka no centro da mesa, que apontou o gargalo para Nietzsche:

- Verdade ou conseqüência? – perguntou Freud ao bigodudo.

- Verdade – respondeu Friedrich.

- É verdade que contraiu sífilis de um homem? – perguntou o fundador da psicanálise.

-Não, claro que não! – defendeu-se Nitz, falando embolado e cuspindo bastante. E todos riram da sua irritação.

Parece que Nietzsche perdeu seu horror ao álcool. Após constatar os fatos, dei uma volta até mais adiante, para disfarçar, e me deparei com um velho de cabelos brancos e bagunçados, riscando a parede rochosa com pedaços de vidros. Era Einstein, tentando provar que nós não envelhecemos no Inferno por ele está em uma dimensão que se passa na velocidade da luz, contando com a ajuda de Newton. Diz uma lenda que Newton confirmou a existência da gravidade do Inferno quando uma garrafa de rum caiu sobre sua cabeça.

Voltei ao balcão, ao lado de Caim e ele perguntou:

- Vamos andando?

- Sim, vamos sim – respondi.

E saí pela porta meio decepcionado, admito. A Serpente: um lugar freqüentado por pessoas que viveram muito tempo perto da Árvore do Conhecimento e nos incentivam a comer de seu fruto. Agora sei por que seu fruto é chamado de Proibido: o conhecimento pode te levar para o Inferno. Ao sair, minha imaginação agiu novamente “Nietzsche está morto”, disse Deus. Mas era só minha imaginação também. Então, seguimos nosso trajeto até a Sala de Arquivos do Julgamento.