Cada um tem o Inferno que merece - Capítulo 1

CAPÍTULO I – Inferno, bebidas e Sônia Abrão

Primeiramente, quero lhe informar que essa narrativa é designada às pessoas milionárias, bem de vida mesmo, ou “a toas” que querem nada com nada, que têm tempo o suficiente para desperdiçar com essa merda. Escrevi isso por que estou morto e após a morte o tempo é eterno, o que me dá um tempo livre. Chamo-me José Silva e, neste exato momento, estou em um lugar muito quente, com muitas pessoas e com odor fétido. Não, não estou na Índia, muito menos em Salvador. Estou no Inferno. Isso mesmo, esse mesmo Inferno anunciado no livro sagrado cristão, encarregado de receber pessoas ruins, não dignas de pisar em solo divino.

Como vim parar aqui? Simples, tudo aconteceu da seguinte maneira: estava em um bar com meus amigos, enchendo a cara, quando ouço tocar as sete trombetas, o prelúdio do apocalipse. Então, todas as luzes se apagaram, inclusive o Sol, que se punha por trás das montanhas. O silêncio absoluto veio em seguida. Algumas pessoas desapareceram, do nada mesmo, deixando apenas suas vestes. Quando meus olhos se adaptaram à falta de luz, eu vi um cavaleiro com roupas verde-água, portando um tridente, montado em um cavalo baio, como se estivesse em decomposição. O nome do cavaleiro era Morte e o Inferno o seguia de perto. No exato momento que o vi, exclamei “Porra, o último cavaleiro do apocalipse, estamos ferrados!”. Logo pensei na mulher loira montada no dragão, mas não vi isso. Ao redor, vejo pessoas conhecidas clamando histericamente por perdão a um homem que vem montado em uma nuvem. Quando o cavaleiro passa por nós, imediatamente nos traz aqui, ao Inferno, um lugar tomado pela dor, tristeza e medo.

Brincadeira. Tirando a parte que eu estava em um bar chapando, nada disso foi real. Acontece que, enquanto eu bebia com meus amigos, um aneurisma cerebral não diagnosticado se rompeu e eu enfiei a cara no pratinho de petiscos, com tudo. Morri ali mesmo, na mesma hora.

Bom, agora que já sabem como cheguei aqui, vou descrever um pouco desse lugar. Não se assustem com as diferenças entre o “meu” inferno e o inferno descrito na Bíblia. É apenas minha vivência. Acho importante compartilhar isso com vocês já que, provavelmente, este também será o lugar que você será encaminhado, ser vivo.

Ao ter consciência novamente, mas sem saber que estava morto, observei ao redor de mim um lugar fechado, como se fosse uma caverna de rochas avermelhadas, escorrendo lava. Logo à frente, me deparei com um portão enorme, enferrujado, com lanças flamejantes em suas laterais e um uma pessoa em combustão carregando uma lança. De dentro, ouvi várias vozes, como se estivesse lotado. Aproximei-me deste ser e perguntei:

-Tem rock aí?

Ele não respondeu, apenas começou a puxar uma corda que fez o portão se abrir ao meio. Nem tive que pagar nada.

Na entrada, me deparei com uma coisa curiosa. Um tapete de espinhos escrito “Seja bem-vindo ao Inferno”. Pensei “Uau, o rock aqui é doido hein!”. Tive que passar por cima dele, o que foi muito incômodo, mas agradeci a hospitalidade. Na minha frente, vi um lugar muito amplo com iluminação natural de tochas enormes, com muitas, mas muitas pessoas! Um cidadão, se assim posso chamá-lo, se aproximou de mim e se apresentou:

-Ei, beleza? Chamo-me Caim e sou responsável por receber as pessoas aqui no Inferno. Como se chama?

Quando ouvi essas palavras, minhas pernas tremeram como vara verde e tudo se apagou. Tinha desmaiado. Acordei em um quarto apertado, com esse tal de Caim me abanando. Sem pensar duas vezes, perguntei:

-Estou morto?

-Está sim, mas relaxa – respondeu ele.

-E estou no inferno??

-Sim, sim, fique calmo.

Então, a ficha começou a cair. Pedi desculpas por ter desmaiado, ele logo disse que é comum se espantar no início.

Acalmei-me, respirei fundo e retomei meu controle. Logo, Caim me faz um convite:

-Vamos dar uma volta, te apresentar o pessoal daqui.

Minhas pernas voltaram a tremer e me veio pensamentos de tortura, como: chibatadas, banhos de lava, incineração, perfurações por lanças e horas do Especial do Rei Roberto Carlos.

Mas quebrei a cara, nada disso aconteceu.

Saindo do quarto, vi um corredor longo e sujo, com várias portas e pessoas dormindo por ali mesmo. Sigo Caim até sairmos desse “albergue”. No caminho, conversamos um pouco. Disse meu nome e minha última lembrança do plano terrestre. Questionei se, ao me convidar para dar um passeio, ele tinha a mesma intenção do convite que fizera a seu irmão há milhares de anos atrás. Mas estava com medo de quê? De ele me matar? Aproveitei o assunto e tirei uma dúvida:

-Caim, você não foi condenado a andar pela Terra eternamente, por ter matado seu irmão?

-Não, não. Logo quando cometi o primeiro assassinato do mundo, fui enviado para cá. Praticamente inaugurei o lugar. Isso é papo de roteiristas hollywoodianos e mestres de RPG – disse ele. Depois te conto mais detalhes – completou.

Chegamos num lugar que parecia o centro do Inferno, onde tudo acontecia. É como uma enorme sala, mas grande mesmo, com teto arredondado e rochoso com um enorme palco centralizado. E, como em todo lugar por aqui, estava lotado. Eis que, me aproximando do palco, ouço uma voz feminina, com timbre meio rouco, um tanto familiar. Amy Winehouse. Sim, essa mesma viciada que você conhece. Caim percebeu minha euforia ao vê-la e disse “Zé, você vai ver muita gente conhecida por aqui” e deu um sorriso animado. Não queria sair dali, mas Caim me apressou, provavelmente já enjoou desses shows. Enquanto caminhava pela multidão, vi que a maioria das pessoas portava bebidas alcoólicas nas mãos. Fiquei curioso, mas nem questionei isso. Outra coisa que não deu para ignorar foi o terrível odor de suor. Cruz.

Atravessamos toda a multidão e chegamos do lado oposto ao albergue. Não era nada demais. Apenas uma rua imunda e pouco iluminada, com milhares de outros albergues com iluminação avermelhada. Ao nos abeirarmos de um albergue em especial, Caim falou:

-Tenho que te apresentar uns amigos, tenho certeza que você vai gostar! Sem eles, o Inferno não seria o mesmo! – exclamou ele.

Chegamos à porta de um dos quartos, ambiente muito abafado com iluminação incandescente. Caim bate à porta. Uma voz rouca, como se a pessoa tivesse tumor nas cordas vocais, gritou “Já vai!”. No pequeno intervalo de silêncio, fiquei ansioso, comecei a suar mais. Pensei “Cilada, Bino”, mas não, mais uma vez me enganei. Abre a porta uma mulher com olhos claros e rosto muito feio:

-Caim, é você! Que bom te ver, to precisando mesmo falar com você – disse a moça.

-Haha. É, resolvi fazer uma visitinha, já que ninguém vai lá me ver- retrucou Caim.

-Mas também, ninguém manda morar no Quinto dos Infernos, né? – falou a mulher, dando uma risada que mais parecia uma hiena gripada. E esse aí, quem é? – completou ela.

-Um jovem que chegou recentemente. Aneurisma – explanou Caim

-Ah sim, triste isso - lamentou a mulher. Como você se chama?

Ao observar melhor a mulher, que tinha cabelos secos, olhos claros, rosto feio, voz rouca, vários adornos antigos, vestido riponga e gargalhada estranha, constatei empolgado:

-Puta que pariu! Janis Joplin é você?! – terminei a frase com um alto grito agudo e abraçando-a.

-Sou eu sim, haha - respondeu a diva.

Passado a euforia, soltei-a, me apresentei devidamente, disse que era do Brasil e fui imediatamente interrompido com a frase “Nossa, você é do país da Sônia Abrão!”. Admito que me surpreendi. Fiz questão de citar que sou seu enorme fã, e ela nos convidou para entrar. Era um quarto simples, apenas com uma TV velha, colchonetes e várias garrafas espalhadas. Na cozinha, tinha mais pessoas sentadas à mesa. Um negro alto, descabelado, com bigode sutil e roupas coloridas; um homem com rosto muito bonito, barba rala, olhos azuis, cabelos longos loiros vestindo uma camiseta xadrez; e um senhor mais velho, de cabelos grisalhos, rosto esticado de plástica, usando óculos e vestindo uma roupa social. Janis então fez as formalidades:

-Pessoal, esse é o Zé Silva, diretamente do Brasil - disse Janis.

-Nossa, que massa. Você deve conhecer a Sônia Abrão né?! – falou o loiro

Janis o interrompe e conclui a apresentação:

-Ele é o novo amigo do Caim e agora nosso também. Zé Silva, esse é Jimi Hendrix, Kurt Cobain e Clodovil Hernandes.

-Prazer, prazer, prazer - respondeu os três e ficaram olhando para minha cara de tonto, esperando uma resposta.

Pasmem. Da pra acreditar nisso? Sem continuar a formalidade, perguntei:

-Clodovil, o que você está fazendo aqui?

-Esqueceu que sou gay? Gay vem pro inferno mesmo – respondeu ele.

-Não aqui no inferno, digo, aqui no quarto deles – expliquei.

-Ah sim. Antes de ser velho e falido, já fui jovem e fã deles também – ressaltou Clodovil.

Passado o mal entendido, me apresentei formalmente a cada um e sentei-me entre Caim e Janis. Não conseguia prestar muita atenção na conversa, estava muito empolgado e surpreso para ter tal atenção, mas lembro que falavam sobre um evento grande, algo a ver com paz e amor e criticaram alguns novos sucessos terrestres. Ofereceram-me um copo de uísque, aceitei na hora.

Depois de muita conversa sobre Woodstock, músicas novas, legalização da maconha e evolução da consciência humana – sim, isso também é papo de bêbado por aqui- somado a uísque liberado, lembro que só dizia “Canta Kozmic Blues pra mim?” ou algo do tipo. Fui de cara à mesa, novamente. Não, não era outro aneurisma. Era muita cachaça mesmo. Enquanto estava debruçado na mesa, sonolento, lembro-me de quase nada. Apaguei. Tem coisa que não muda nem no Inferno.

Acordei com as luzes apagadas, deitado na beirada do colchonete, ao lado do Caim. Fiquei deitado até todos se levantarem.

Todos acordados. Procurei algo para comer, nada achei. Caim me alertou:

-O único castigo compartilhado aqui é a fome. Isso você vai sentir pela eternidade, mas seu corpo se manterá o mesmo, pelo menos.

Bom, achei justo, já que aqui deveríamos sofrer um pouco, como combinado. Mas Caim complementou a frase:

-Na falta de comida, tem bebida!

Sim, aqui tem bebida alcoólica. E muita! E não foram transformadas da água. Vou tentar explicar um pouco da trama pra vocês: mesmo com o Inferno contando com personalidades como plantadores de cana e cevada e até o John ‘Johnnie’ Walker, era difícil produzir as bebidas alcoólicas aqui, em grande escala. Pensando nisso e cansado dos manifestos “pró-álcool” que aconteciam por aqui, o governante do Inferno, o Lú, escalou alguns ex-anjos para negociar com os humanos o envio de milhões de litros de bebidas para cá. Em troca, facilitaria a vida do terráqueo, da maneira que o desejasse que, quase em todos os casos, era gerando dinheiro. Isso mesmo, no lugar de alma, bebidas! Mercado negro das bebidas. No Inferno. Outras mercadorias eram obtidas da mesma forma.

Começamos a beber ali mesmo. Enquanto tomava uns drinks, resolvi ligar a TV. Afinal, o que se pega no Inferno? Sky que provavelmente não deve ser, desculpe o trocadilho. Após conferir canal por canal, percebi que só passava programas com tragédias e sofrimento alheio, novela das sete e Backyardigans. Agora sei por que a Sônia Abrão é popular por aqui.