COTAS DE VAGAS PARA NEGROS - ANEDOTÁRIO DA VIDA REAL
A mãe tinha cabelo pixaim e pele parda escura, seja lá o que for isso, "quase negra", como dizia insistentemente a sogra.
O pai era orgulhosamente descendente de portugueses, apesar da pele não muito clara, moreninha.
O filho sabia que era negro:
1. Por que não era branco, era mais escuro do que os chamados brancos.
2. Através das histórias que a mãe contava da trisavó negra, que fora a predileta do senhor de escravos a quem pertencera.
3. Por conta das histórias safadas que o pai contava de quando sua família viera de Portugal, daí ser misturada e Seu Jorge ser tão diferente dos avós branquinhos.
E - 4- também por algum mecanismo social que lhe dizia que pessoas como ele não eram consideradas lá muito bonitas, pouco apareciam como heróis nos filmes e novelas, abundavam nos noticiários, geralmente algemados, enchiam as prisões, quase nunca atuavam em propagandas de bancos e shoppings centers, e, quando apareciam, era para apresentar produtos voltados para cabelos afro, moda étnica, comida baiana, música alternativa.
Ricardo se candidatou a uma vaga para negros na Universidade Federal, de tanto ouvir que alunos de escolas públicas não conseguiam vencer os das particulares no vestibular, mas foi recusado.
A recusa foi baseada na foto que ele anexou ao formulário, onde aparecia em toda a glória de sua belíssima 'cor de jambo', mas sem os dreads por orientação da mãe (Que é que eles vão pensar desse cabelo assim?!), num corte de cabelo que não disfarçava a carapinha.
_Você não é negro, algum amigo argumentou depois, você não tem a gengiva roxa.
Outro:
_A pele não 'risca' quando você coça...
Mais outro:
_Você se bronzeia na praia, não se bronzeia? Negro não se bronzeia!
A piada da vida real acaba aqui.
É assim que a esposa de Ricardo conta.
Mas a história dele continua:
Teve que se conformar em disputar uma vaga normalmente com todos os outros estudantes de escolas particulares de alto nível, que haviam frequentado cursinhos preparatórios caríssimos.
Na sala de aula (pois ele passou no vestibular de Direito), o professor de Ética exclamou, ao vê-lo sacar o notebook que ainda estava pagando em 12 vezes de cento e poucos reais, em tom divertido e sarcástico:
_Como primeiro trabalho, vamos dissertar sobre as cotas para negros nas Universidades. É justo que um estudante perca a vaga para outro com nota menor, por causa da cor da pele? As cotas devem ou não ser apenas para alunos da escola pública, negros ou não? Não é a qualidade da escola pública que deve melhorar para alcançar o nível das particulares? Os negros são mesmo maioria na escola pública? Por que não oferecer preparatórios gratuitos a estes alunos? O quanto ainda os negros terão que esperar por esta melhora, até competirem de igual para igual com os outros? A sociedade tem ou não uma dívida com os descendentes dos africanos que foram alforriados e deixados à própria sorte, sem instrução nem emprego? O nível do ensino superior corre o risco de cair por causa das cotas? Pensem, debatam, leiam, escrevam!
Deste dia em diante, Ricardo perdeu as contas de quantas vezes lhe pediram para contar a história de como fora recusado nas cotas, pois a comissão da Universidade Federal não o reconhecera como negro.
E a maioria ria, pensando que era uma piada.
Alguns o hostilizavam, achando que ele era racista, que ele queria dizer com isso que não era negro.
Que ele burlara, sim, o sistema.
De vez em quando, algum professor o elogiava, de uma forma esquisita:
_Muito bem, Ricardo! Continue assim! Este país precisa de mais pessoas como você, que não se deixa abater pelos empecilhos!
Ou:
O Brasil precisa de mais advogados como você! Que conhecem o outro lado!
Que empecilhos? Que outro lado? - Pensava Ricardo. Mas ele sabia a resposta.
Neste ponto, a esposa de Ricardo fAz uma pausa para gargalhar, diz que a cara dele ao fazer estas perguntas era mesmo hilária.
Quando terminou o curso, prestou o exame da OAB, entrou para o Mestrado e saiu à cata de emprego.
Nenhum dos escritórios de advocacia o chamava, depois da primeira entrevista, apesar de todos eles elogiarem seu currículo impecável.
Tempos difíceis.
Acabou processando um dos entrevistadores por crime de racismo, ao ouvi-lo dizer que ele não se adequava ao perfil desejado pela firma, que lidava com empresas multinacionais, cujos representantes gringos 'não se davam bem' com advogados negros.
(Piada bônus):
Teve que representar a si mesmo, pois os colegas a quem pediu não acreditaram na causa: "O Tribunal pode não te considerar negro, com essa pele."
Ele sempre soubera que era negro.
A dúvida era das outras pessoas.
_Afinal - Perguntou, um dia, o professor Ricardo à sua turma do Primeiro Semestre de Advocacia na Universidade Federal em que estudara - o que é ser negro no Brasil?
E aí, Marisa, a esposa, se cala.
Já não tem mais graça.
Ah, e o processo ainda está rolando, ninguém sabe no que vai dar.
VIDA INTELIGENTE NA NET:
http://www.omalditoescritor.com/
A mãe tinha cabelo pixaim e pele parda escura, seja lá o que for isso, "quase negra", como dizia insistentemente a sogra.
O pai era orgulhosamente descendente de portugueses, apesar da pele não muito clara, moreninha.
O filho sabia que era negro:
1. Por que não era branco, era mais escuro do que os chamados brancos.
2. Através das histórias que a mãe contava da trisavó negra, que fora a predileta do senhor de escravos a quem pertencera.
3. Por conta das histórias safadas que o pai contava de quando sua família viera de Portugal, daí ser misturada e Seu Jorge ser tão diferente dos avós branquinhos.
E - 4- também por algum mecanismo social que lhe dizia que pessoas como ele não eram consideradas lá muito bonitas, pouco apareciam como heróis nos filmes e novelas, abundavam nos noticiários, geralmente algemados, enchiam as prisões, quase nunca atuavam em propagandas de bancos e shoppings centers, e, quando apareciam, era para apresentar produtos voltados para cabelos afro, moda étnica, comida baiana, música alternativa.
Ricardo se candidatou a uma vaga para negros na Universidade Federal, de tanto ouvir que alunos de escolas públicas não conseguiam vencer os das particulares no vestibular, mas foi recusado.
A recusa foi baseada na foto que ele anexou ao formulário, onde aparecia em toda a glória de sua belíssima 'cor de jambo', mas sem os dreads por orientação da mãe (Que é que eles vão pensar desse cabelo assim?!), num corte de cabelo que não disfarçava a carapinha.
_Você não é negro, algum amigo argumentou depois, você não tem a gengiva roxa.
Outro:
_A pele não 'risca' quando você coça...
Mais outro:
_Você se bronzeia na praia, não se bronzeia? Negro não se bronzeia!
A piada da vida real acaba aqui.
É assim que a esposa de Ricardo conta.
Mas a história dele continua:
Teve que se conformar em disputar uma vaga normalmente com todos os outros estudantes de escolas particulares de alto nível, que haviam frequentado cursinhos preparatórios caríssimos.
Na sala de aula (pois ele passou no vestibular de Direito), o professor de Ética exclamou, ao vê-lo sacar o notebook que ainda estava pagando em 12 vezes de cento e poucos reais, em tom divertido e sarcástico:
_Como primeiro trabalho, vamos dissertar sobre as cotas para negros nas Universidades. É justo que um estudante perca a vaga para outro com nota menor, por causa da cor da pele? As cotas devem ou não ser apenas para alunos da escola pública, negros ou não? Não é a qualidade da escola pública que deve melhorar para alcançar o nível das particulares? Os negros são mesmo maioria na escola pública? Por que não oferecer preparatórios gratuitos a estes alunos? O quanto ainda os negros terão que esperar por esta melhora, até competirem de igual para igual com os outros? A sociedade tem ou não uma dívida com os descendentes dos africanos que foram alforriados e deixados à própria sorte, sem instrução nem emprego? O nível do ensino superior corre o risco de cair por causa das cotas? Pensem, debatam, leiam, escrevam!
Deste dia em diante, Ricardo perdeu as contas de quantas vezes lhe pediram para contar a história de como fora recusado nas cotas, pois a comissão da Universidade Federal não o reconhecera como negro.
E a maioria ria, pensando que era uma piada.
Alguns o hostilizavam, achando que ele era racista, que ele queria dizer com isso que não era negro.
Que ele burlara, sim, o sistema.
De vez em quando, algum professor o elogiava, de uma forma esquisita:
_Muito bem, Ricardo! Continue assim! Este país precisa de mais pessoas como você, que não se deixa abater pelos empecilhos!
Ou:
O Brasil precisa de mais advogados como você! Que conhecem o outro lado!
Que empecilhos? Que outro lado? - Pensava Ricardo. Mas ele sabia a resposta.
Neste ponto, a esposa de Ricardo fAz uma pausa para gargalhar, diz que a cara dele ao fazer estas perguntas era mesmo hilária.
Quando terminou o curso, prestou o exame da OAB, entrou para o Mestrado e saiu à cata de emprego.
Nenhum dos escritórios de advocacia o chamava, depois da primeira entrevista, apesar de todos eles elogiarem seu currículo impecável.
Tempos difíceis.
Acabou processando um dos entrevistadores por crime de racismo, ao ouvi-lo dizer que ele não se adequava ao perfil desejado pela firma, que lidava com empresas multinacionais, cujos representantes gringos 'não se davam bem' com advogados negros.
(Piada bônus):
Teve que representar a si mesmo, pois os colegas a quem pediu não acreditaram na causa: "O Tribunal pode não te considerar negro, com essa pele."
Ele sempre soubera que era negro.
A dúvida era das outras pessoas.
_Afinal - Perguntou, um dia, o professor Ricardo à sua turma do Primeiro Semestre de Advocacia na Universidade Federal em que estudara - o que é ser negro no Brasil?
E aí, Marisa, a esposa, se cala.
Já não tem mais graça.
Ah, e o processo ainda está rolando, ninguém sabe no que vai dar.
VIDA INTELIGENTE NA NET:
http://www.omalditoescritor.com/