Casal Sarau
Estava cada um numa sala diferente. Marina com o homem na sala 1, e o Valter com a mulher na sala 2.
Marina estava numa sala toda branca, com apenas uma mesa, uma cadeira e um espelho, daqueles com o fundo falso. Se você algum dia estiver numa sala dessa não tire carne do dente, cutuque o nariz, esprema uma espinha, ou qualquer outra coisa dessas nojentas que nós costumamos fazer de frente ao espelho, por que provavelmente tem alguém do outro lado te assistindo.
Sala 1
- E aí como você conheceu ele?
- Como eu conheci. Nós estávamos num sarau. Lembra do sarau?
- Não!
- Como não? Do sarau, fechavam um barracão e o usavam pra dar a festa. Tinha uns que eram num espaço menor, aí cada um tinha que levar uma coisa, essa era mais conhecida como “festa americana”. Não sei por que esse nome, nunca vi um americano pedindo pra eu levar alguma coisa na casa dele...
- Atenha-se a pergunta.
- Ta, desculpa. Então, quando eu cheguei na festa nem notei ele. Mas aí ele começou a dançar.
- Dançar como?
- Como um idiota.
- Ãhm?!
- É, lembro que quando ele foi pra pista pela primeira vez, alguns minutos depois o DJ parou a musica e pediu, no microfone, pra alguém chamar uma ambulância por que tinha um homem tendo uma convulsão na pista. A festa inteira parou pra ver. Na verdade se tratava do Valter dançando.
Enquanto isso Valter estava na sala 2, dividindo a parede com a da Marina.
- Como você conheceu ela? – perguntou a loira arrumando o cabelo.
- Ela quem?
- Sua mulher.
- Minha mulher, que minha mulher? Eu não sou casado! – escondendo a aliança com a mão direita.
Assistindo a tudo por trás dos espelhos estavam três médicos especialistas em comportamento e relacionamento.
Sala 1
- Depois de ele explicar para os paramédicos que estava tudo bem, a festa continuou. Porém proibiram-no de dançar. Lembro até hoje da carinha dele, sentado sozinho num canto enquanto todos dançavam, “trás a caçamba, trás a caçamba.”.
- Já entendi, continua a história.
A mulher estava de costas para o Valter, gesticulando para o espelho, tentando se comunicar com os doutores do outro lado. Pela movimentação da mão ela estava pedindo ajuda.
Sala 2
- E aí, o que você vai fazer depois que sairmos daqui.
- Senhor, sua mulher está na sala ao lado.
- Ela consegue me ver?
- Não.
- Me ouvir?
- Não.
- Então.
Silêncio
Sala 1
- Onde eu parei mesmo?
- Nele sozinho num canto...
- Ah é. Ai, você tinha que ver a carinha dele. Ele consegue qualquer coisa de mim fazendo aquela carinha. E o desgraçado sabe disso.
- Senhora?!
- Oi
Silencio.
- Ah!
Sala 2
- Eu preciso saber da história de vocês?
- Pra que saber da minha história se a gente pode criar uma nova.
- Da para o senhor sentar?
- Ah, desculpa, é que eu me expresso melhor de pé.
- Como a conheceu?
- Tem que me ver dançando.
Sala 1
- Ele estava lá tomando uma tubaína. Eu como tenho um coração grande fui falar com ele.
- Certo.
- Caramba tubaína. Nunca mais vi tubaína, por que será que pararam de fabricar. Lembra que vinha numa garrafa de cerveja?!
O homem vira para o espelho e faz uma cara de desespero.
Na sala 2, de pé, valter dava os primeiros passos.
- Vem comigo.
- Senhor...
- Sua uma musica.
- E quem disse que pra dançar precisa de musica?
Pulando para um lado e para o outro fazendo a mulher recuar cada vez mais.
Sala 1
- Alô, mãe?... Pai, chama a mãe aí... Chama ela...
Esticou o dedo para o homem, fazendo um gesto que ia ser rapidinho, antes que ele começasse a reclamar.
Sala 2
- Vem é facinho.
A mulher faz não com a cabeça.
- Sabia que eu ganhei um premio como melhor dançarino no sarau? Eu era tão bom, que nem me deixaram entrar mais na pista pra não humilhar quem não sabia.
Sala 1
- Oh mãe, sabe por que não tem mais tubaína pra vender?... É aquelas que vinha numa garrafa de cerveja... O que? No bar que o pai vai tem... Não acredito... – sorri e estende o dedão como se fosse algo positivo para o homem. – Compra pra mim que eu vou jantar aí hoje! – tira o telefone da boca e o tampa com a mão. – vai demorar muito aqui? – o homem faz que não, desanimadamente, com a cabeça. – Pode comprar daqui a pouco to chegando aí.
Sala 2
Valter está caído no chão.
- Aí deu câimbra. Deu câimbra.
A mulher aperta o botão vermelho, fazendo com que a porta se abra.
- Eu devia ter alongado antes.
Entra uns homens na sala.
- Não, não preciso de ajuda não. É só fazer uma massagem. A moça ali resolve.
Os dois homens de branco olha para a mulher. Ela acena a cabeça, desesperadamente, falando que não. Nem pensar. Nunca. Nem morta.
Sala 1
- Não acredito que lá tem. Sabe quanto tempo faz que eu não via tubaína. Nossa o Valter vai ficar louco quando eu disser. Será que o Valter lembra, acho que ele nem lembra, do jeito que a cabeça dele nem lembra. Nossa eu to ficando velha mesmo. Sou do tempo da tubaína.
O homem levanta e aperta o botão vermelho, a porta abre-se, ele sai, dando por encerrada a sessão.
Marina e Valter encontram-se no corredor saindo da sala.
- E aí, como foi?
- Nada demais, me fizeram umas perguntas.
- Que perguntas?
- A varias né Marina, não vou lembrar de todas. E pra você?
- Pra mim ele só fez uma e nem deixou eu responder direito, ficava toda hora me interrompendo.
- É, pelo menos nos pagaram.
- É.
Silencio. Os dois vão andando, lado a lado, Valter mancando.
- Por que você está mancando?
- Não sei, acho que deu câimbra.
- E, ta ficando velho mesmo.
Os dois riem.
- Ah, vamos jantar lá na mamãe hoje.
- Ah Marina...
- Ela vai comprar tubaína.
- Caralho, tubaína, ainda existe?
Seguiram Marina falando e Valter mancando.
Na sala onde os médicos estavam.
- É, vamos ter que voltar a fazer os testes com os animais mesmo.