GARAPA
Dentre as “figuras” da adolescência que povoam a minha memória, ela ganha um destaque especial pela sua proximidade quase que diária no caminho de retorno para casa, após o término de mais um dia de aula.
Estudante, nos inícios da década de 60, do Ginásio Salesiano São João Bosco, em Juazeiro do Norte, entrei em contato visual com esta “figura”, casualmente, ao descer a “ladeira do Salesiano”, barriga já encostando nas costelas, meio-dia, sol a pino, e suor ensopando o fardamento. Subindo a ladeira, uma mulher baixinha, em torno de quarenta anos, saia e blusa surradas, descalça, uma pequena trouxa na cabeça, algumas pedras nas mãos, passos apressados e atenção redobrada como se estivesse esperando um ataque vindo não sei de onde. Pára, olha pra trás, prossegue um pouco desconfiada, mas com os sentidos sempre em estado de alerta. Os “calças-azuis” não perdem um lance. Muitos permanecem parados, extáticos, à espera do desenrolar dos acontecimentos. Dante e eu também estávamos ali expectantes, um ao lado do outro.
De repente uma bicicleta surge na esquina do colégio, realiza a manobra e desce em sua direção. O menino pedala com um pouco mais de velocidade, aproxima-se e grita o apelido fatal:
- GARAAAPAAA!
Pedras cruzam a rua, rosário de palavrões, agitação, correria, gritos, imprecações, e agora o coro dos “calças-azuis”:
- GÊ-AGÁ, RÊ-ARÁ, PÊ-APÁ, GA-RA-PA!
Mais pedras, mais correria, um tropeça aqui, outro acolá... Enquanto o espetáculo é encerrado com a dispersão dos estudantes e a sua perda de vista ao entrar numa das ruelas transversais.
No dia seguinte pela manhã, antes do padre Gino Moratelli fazer a Oração do Bom-dia, não se falava em outra coisa no colégio. Turminhas formavam-se em cada canto para relembrar o fato do dia anterior, e o primeiro contato da turma com Garapa. Nesse bate-papo, não tardou o surgimento na cabeça privilegiada de Dante Alencar (nesse campo imbatível), de uma idéia – senão brilhante – bastante criativa. Combinados, e definida a calçada em que cada um de nós se posicionaria, esperamos inquietos o encerramento da última aula, rezando para que ela aparecesse na subida da ladeira.
A turma não sabia de nada. Desconfiou de alguma maracutaia quando nos viu cada um em um dos lados da rua. Aí criou-se uma expectativa geral. A expressão dos gestos denunciava o anseio que lhes vinha ao pensamento:
- Tem cheiro de presepada!
Iniciando-se a descida, lá embaixo ela surge. De longe logo se percebe que o número de pedras é maior. A trouxinha talvez tenha sido deixada para facilitar a sua ação repressiva, repelente e reprimente. Sobe pelo meio da rua. Atenta. Feição vingativa. Ar de revolta. Vem subindo. Aproxima-se. Dante e eu preparados. A turma calada, parada. Finalmente quando atinge a altura em que nos encontrávamos, o grito:
- Água!
Logo depois eu complementei:
- Açúcar!
A resposta (juntamente com as pedras na posição de ataque fulminante), não tardou a ser ouvida:
-Mistura filho -- ----!
Corre-corre e algazarra. Gritaria. Vaias. E lá ela se vai. Garapa se foi entre as vielas escondidas do tempo sem atirar nenhuma pedra.
- Ai, ai, ai! Ui! Furou minha cabeça!
- Quem mandou misturar?!
ALMacêdo