O Julgamento do Ladrão


Josias, o meu amigo advogado, era um cabra safado, mas danado de esperto. Nunca soube de uma causa que tivesse perdido, aqui na Justiça de São Luís do Maranhão. Apesar disso, estróina, cachaceiro e frequentador habitual de puteiros, vivia sempre às voltas com dívidas e dificuldades financeiras. Por isso, não se dava ao luxo de dispensar qualquer causa que pudesse lhe render um dinheirinho.
Eu, jovem estudante da Faculdade de Direito, por ser amigo unha-e-carne de Josias e por interesse do aprendizado jurídico, estava quase diariamente no que ele pomposamente chamava de "seu escritório”: um pequeno quartinho mal iluminado da sua casa de subúrbio.
Um dia cheguei lá e encontrei um sujeito moreno, magrela, muito nervoso, quase chorando, implorando para o Josias:
- Dr. Josias, pelo amor de Deus, me livre dessa!
Josias virou-se para mim e falou:
- Sabes quem é esta figura, Antonio? É o Veludo, o maior gatuno desta paróquia. Já o tirei várias vezes da cadeia, mas o sujeito não se emenda. Agora se meteu numa encrenca séria: aplicou um conto do vigário na esposa de um figurão local, que está pressionando o juiz para mandá-lo para a Penitenciária. O juiz julgará o caso amanhã.
- Vais defendê-lo?
- Sim, talvez eu salve a pele desse filho da mãe. Ele já me deve bastante. Se for para a Penitenciária, fico no prejuízo; solto, ele poderá bater a carteira de alguém e me pagar!
E deu uma sonora gargalhada. Era assim o meu amigo, o Dr. Josias...
No dia seguinte, fui ao Tribunal assistir à audiência. O juiz era um senhor baixinho, de óculos, com um ar severo. Uma dama de aspecto distinto, mas de cara amarrada, acompanhada de outras pessoas bem vestidas, estava lá, e não tive dificuldade em reconhecê-la como a vítima do golpe aplicado por Veludo.
Depois que o juiz abriu a audiência e acabou de fazer a leitura do processo, tomou a palavra o promotor público, que foi curto e grosso na sua acusação: para ele, entre tantas outras coisas ruins, o acusado era um perigoso e reincidente ladrão, e deveria, por isso, merecer um castigo exemplar da Lei. A seguir, o juiz chamou o advogado do réu, o Josias, para apresentar a defesa do acusado. Justamente nesse momento, entraram na sala uma senhora morena, trazendo sete crianças: três meninos e quatro meninas, todas sujas, maltrapilhas e descalças. A mulher soluçava convulsivamente e as crianças berravam:
- Papai! Papai! Não levem o papai! Não levem!
O escândalo sobressaltou os presentes e irritou o juiz, que gritou para o Josias:
- O que é isso, doutor advogado?
Josias retrucou, calmo, sereno, com voz emocionada:
- Meritíssimo juiz, nobre colega promotor, meus senhores, minhas senhoras. Estamos prestes a comprovar que a Justiça é cega e que os homens que a fazem não têm coração, contrariando a máxima de Rui Barbosa: “Não há Justiça onde não há Deus”. O homem que está sob a iminência de ser encarcerado por anos, talvez, é um pai de família; tem mulher e sete filhos. Prendendo-o, a Justiça não o pune, mas sim pune a estes inocentes cujo único crime consiste em serem dependentes de um infrator. Quem vai dar casa e comida para estes pobrezinhos, enquanto o acusado mofa e embrutece numa cela de prisão? Quem?
Fez uma pausa dramática e, passeando os olhos por todos os presentes, repetiu, enfático, quase raivoso:
- Quem? Quem?
Os meninos aumentaram o berreiro. A distinta dama encolheu-se num canto, já quase envergonhada de ter dado queixa de Veludo, e outras pessoas choravam. O juiz pigarreou e limpou os óculos.
Veludo foi condenado a um ano de prisão, mas com direito a sursis, isto é, continuava livre, devendo apresentar-se ao juiz de vez em quando.
Lá fora, depois dos abraços e comemorações, Josias falou:
- Veludo, passe para cá a grana do pessoal.
O ladrão meteu a mão no bolso, tirou umas cédulas, entregou-as a Josias e foi embora. A mulher e as crianças estavam encostadas na parede da entrada do Tribunal. Josias foi até lá e entregou o dinheiro à mulher. Sem nem mesmo olhar para trás, a mulher afastou-se rapidamente do local. Estranhei a situação:
- Josias, o Veludo não vai levar a mulher e os filhos?
- Cara, que mulher, que filhos?
- O pessoal que estava chorando lá na audiência, ora!
- Cara, esse cabra safado não tem nem mulher nem filho.
- Mas...
- A mulher e os filhos foram figurantes, cara! Figurantes que eu contratei para a cena do julgamento! Acabei de pagá-los. Nunca viram o Veludo mais gordo!...
E deu uma sonora gargalhada. Era assim o meu amigo, o Dr. Josias...


Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 16/01/2007
Reeditado em 06/11/2011
Código do texto: T348669
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