TRISTE LABUTA ROTINEIRA
Antes de começar, preciso especificar algumas coisas. Sou paulistana, mas desde meus 7 anos morei em Brasília. Lugar de muito sol, pistas largas. Trânsito nunca soube o que era. Resolvi, em 1994 ir embora para São Paulo. Morei no bairro de Santana, com a GRATA SENHORA, minha Nonna (Avó). Tinha um Fiat 147,ano 1978, com escapamento quebrado,sem rádio, até porque se pusesse o carro não ligaria ( uma questão de escolha imposta) a CAIXA DE FÓSFOROS, fazia faculdade na FMU de Santo Amaro e trabalhava na Saúde. Essa CATARSE , foi escrita num dos insuportáveis dias de trânsito saindo da casa de vovó e indo ao trabalho. AGORA SIM...
São 6:30 da manhã, tento abrir os olhos para mais uma aventura inigualável.
UM DIA É SEMPRE DIFERENTE DO OUTRO, MAS NESTA HORA, APENAS UM TERSOL DIFERE MEU ENXERGAR. SUAVE E DELICADO TERSOL!!!
Ainda existem aqueles 5 minutos de sono perene e curto.
A luz do quarto é acesa. GRATA SENHORA esta que me acorda. Bendita seja a luz.
Inicia o mal humor.
Vejo, não muito bem, não estou totalmente acordada, uma CAIXA DE FÓSFOROS verde. Um verde, verdade seja dita, meio cinza.
Tentativas. Que solidão temporária. O silêncio do escapamento me fere e me faz pensar que a manhã é um doce e brilhante presente.
Aonde estão os pássaros???
O motor se iguala ao de uma batedeira. Mais potente e veloz, diria eu sem ferir, é a batedeira.
A rampa aquece o motor. Que elegante descida!!!!!
Há um farol logo em frente. Meu companheiro de todas as horas morre e mais uma vez começam as suaves tentativas. Como gosto!!!
Chega a ser maravilhoso e normal o mal humor matinal. Como é doce vê-lo crescer e fluir em meu interior.
Oh! Doce e companheiro mal humor, não me deixe jamais pela manhã.
Penso em ser cantora de bares.Sinto-me apta a isso. Num trânsito ( raro em S.P esse fenômeno) a hora pára poeticamente para que eu possa apreciar a beleza da natureza paulistana. Apenas os ponteiros do relógio funcionam, inclusive os da empresa a que me dirijo.
Canto todo repertório de bandas que conheço, as que não conheço também para que não haja mágoas. Tento, o que raramente acontece, cantar "Core'Ingrato". Tão doce, tão verdadeira para aquele momento, tão suave , tão emocionante que me foge da memória. Parto para Legião Urbana. Continuo com o rádio desligado para não interferir no meu canto. Que decisão triunfal!!
Chega, com muita ansiedade, o pedaço do caminho que mais gosto. A minha doce, solene e congestionada 23 de maio. Congestionada de amor, calor humano e solidariedade . São 800 milhões de carros passando em três únicas vias, para assim ser mais rápido e simples o caminhar. Viaduto Pedroso. Ah !!!! Como me alegra. Mais uma via, que trará mais 100 mil condutores muito felizes (mesmo) por estarmos todos juntos, como uma enorme família compartilhando esse caminhar...Que alegria que aperta!!! Como é belo meu amanhecer!!!!
São buzinas, fechadas,faróis, batidas.....
Ah!!! Como sou feliz no meu amanhecer!!!!
Ah!!! Como sou feliz junto a esses habitantes pouco neuróticos!!!
Ah!!! Como pude viver sem esses 800 milhões e 100 mil "BOM DIA ", todos a uma só graciosa voz ????
Ah!!! Que.....Ainda não é hora de exaltar minha emoção. Falta um bom e longo caminho.
Cometo o mesmo erro todos os dias para assim não simplificar muito meu caminho e criar em meu peito a esperança de um dia estar vazia e solitária a minha doce 23.
Estou na pista da esquerda e minha escolhida por obrigação é à direita. Meus amigos de trânsito não permitem que eu passe. Eles temem por minha segurança. Como me são fiéis meus amigos....Como me são fiéis.
Me reencontro com velhos amigos na doce 23. Tão doce e gentil senhor me olha pelo vidro do seu carro 0. Abro a janela, sorrio para ele também. Que delicado sorriso do gentil senhor. Que verdadeiro sorriso do gentil senhor, com seu ar condicionado ligado. Que ser simplório!!!
Como poderia esquecer de falar dos guardiões das ruas?????
Belíssimos seres que nos protegem com seus estiletes, facas e revólveres.
Me surpreendo com suas habilidades manuais e velocidade em "amparar" um colar, anel, brincos ou até mesmo relógios que caem "espontaneamente" de seus donos. Como são generosos em "proteger e guardar" consigo objetos alheios!!!! Fenomenal !!! Arrepio de tão comovida...
Uma tristeza bate em meu peito. Deixo minha doce 23. Subo amargurada uma elevação. A mesma elevação que me guiará a minha simplificada e fácil ponte. A mesma ponte que me levará ao meu amoroso trabalho.
Assusto-me com a beleza da névoa gelada e cinza que me envolve e faz "chiar "o peito de tanta formosura e pureza. Sem querer estragar aquele quadro de ar puro, acendo um cigarro sem que ninguém perceba e me deixo envolver por aquele momento de "rara" névoa matinal.
Já estou atrasada, mas meus colegas, meus doces colegas continuam me guiando ao trabalho para que não me perca no caminho. Que amor!!
Domingos de Morais. Oh!! Doce e caloroso Domingos. Sinto-me na lua ao te tocar. Tão nobre e esburacado de amor é teu leito. Tão massageante é para minha coluna e para os amortecedores te sentir. Mais a frente está o buraquinho que me avisa que à esquerda devo entrar. Então, que faço eu à direita?? Que nobre indecisão!!!
À meu lado cai, em uma "pequenina vala" ( singelos sorrisos ), uma pobre moça. Seguida de seu amado que não viu a placa de "buracos na pista". Ela finalmente se levanta. Em sua calça preta, uma delicada lembrança daquele humilde buraquinho que lhe abraçou por alguns momentos. Oh !! Buraquinho. Conseguiste arrancar lágrimas de felicidades da pobre moça. Tão estúpida moça!!!!
Estou em frente ao meu caloroso serviço. A luz de temperatura se acende de tanta felicidade. O ponteiro do álcool se abaixa para saudar o local de trabalho. Como se gostam!!!
Vejo então a placa de "lotado" em frente da garagem. Placa essa que gentilmente quer dizer : "PONHA A CRIANÇA 8 HORAS NO SOL". Preocupados amigos de trabalho. Pensamento amigo!!!!
A distância de quase dois quarteirões não conseguia nos separar. Ofegante saudade. Como é triste vê-lo distanciar-se de mim. Porém, mesmo só, continuo meu pesar caminhar.
Com todos estes motivos para ser uma pessoa de plena felicidade e satisfação, às vezes me pergunto:
"QUE ( agora sim) PORCARIA EU TÔ FAZENDO AQUI ??????"
Escrita em 20.07.94