Floripa, seus casos e ocasos raros.
 
           O Ilhéu tem uma perspicácia em colocar apelidos, alcunhas, cognomes que vestem como luvas às pessoas. Apenas para inticar, espezinhar, atazanar, azucrinar, implicar, provocar, tirar um sarro, caçoar.

            Naquele mesmo entardecer, daquele sábado
, no município de Bagé, Rio Grande do Sul, Da Silva e Galdêncio continuavam a prosear. 
            Check-in da bagagem. Última verificação necessária antes de uma partida segura. Passagens, documentos e hospedagem.
            Da Silva tomou a frente.

            - Galdêncio! Lembra daquela história da Batalha do Calçadão? Da “Novembrada”?
            - Como esquecer daquela peleia? Daquele entrevero? Daquele trompaço?
            Deram com os burros n’água e ficaram mais perdidos do que cego em tiroteiro.
            Creido pai! Tu não vai de mate?      

            - Não tenho querência. Prefiro um cafezinho com açucre. Docinho.  Amanhã, estaremos em Floripa. Vais ficar no antigo Hotel Lux, bem no miolo. Aposto que em menos de 48 horas te darão um apelido.
            - Sou guapo e barriga-verde algum vai me botar apelido. Gaúcho macho não come mel, mastiga abelha!
            - É mesmo! Acredito!  Si tu dix!
            - Acredite! Gaúcho macho e grosso não come carne, roi osso!
            - Carica! Tô abestado. Vais é ser adomado. Faz assim ó! Tu ficas no hoteli dosh diash. Não vai sair do quarto nem p’ra tomar cafézinho no Chiquinho. Posso jurar que sairás de lá com um apelido e ainda pago tua conta.
            - Fechado. Quando se pega na rabiça do arado, deve-se ir até o fim do rego.

               No outro dia, com os primeiros raios do Sol, partiram e chegaram ao Rita Maria. Era uma segunda-feira estanhada, cinzenta, sem Sol, mormacenta e quente.
 
          - Galdêncio o hoteli é logo ali.
          - Táxis, táxis!
          - Não precisa...
          - Não precisa tchê?
          - Não! Ca de quê o hoteli é logo ali... Vamos andar de a pé! No carcanho, vem! Estás pronto?
          - Mais afiado do que navalha de barbeiro.
          -Tranqüilo?
          - Calmo que nem água de poço.
          - Mesmo?
          - Firme que nem prego em polenta.

            Da Silva de mochila. Galdêncio de mochila nas costas e mala sem rodinha na mão. Partiram. Atravessaram a passarela sobre a Paulo Fontes. Acessaram as proximidades do Mercado Público e a Conselheiro Mafra.

            - Falta muito Da Silva?
            - Nadica di nada. É logo ali. Vamos camba as direita e andar de a pé mais um bocadinho.

          Entraram na Álvaro de Carvalho e por fim o Calçadão da Felipa.

            - Galdêncio é logo ali....
            - Gran Puta! Teu ali não chega nunca?  É mais demorado que enterro de rico. Tu és mais enrolado do que lingüiça de venda.
            - Assucega, assucega! É logo ali, naquela muvuca de gente, na esquina.

            Galdêncio, mais desconfiado do que um cego que tem amante, quase atropelou um guri, raspou a mala numa guria e continuou resmungando.

            - Está mais difícil andar aqui do que nadar de poncho. Estou mais perdido do que cusco em procissão. Não veja a hora de me aboleta...

            - Pronti chegamos. É aqui.

            No meio daquela multidão que vai e vem, naquela esquina da Trajano com a Felipa, Galdêncio perguntou.

            - É este o botega? O bolicho de que tanto falaste?
            - Simmm! E, aqui é o hoteli.

            Entraram.
            Galdêncio, mais branco do que perna de freira, largou a mala e livrou-se da mochila. Dirigiu-se à recepção. Anunciou sua reserva, que foi confirmada para o último andar, com janela de frente para a Felipa.  Preencheu a Ficha.
            Ouviu as orientações e as palavras de boas vindas, como rezam as normas do Programa “Bem receber”, de iniciativa do Ministério do Turismo, SEBRAE e do Instituto de Hospitalidade. 
            Despediu-se do Da Silva.

            - Buena, até mais ver tchê!
            - Da janela do hoteli vais sempre ver a povança aqui em baixo.
            - Quem gosta de aglomerado é mosca em bicheira!
            - Vais ficar sozinho no quarto durante dosh diash.
            -  Carência afetiva na campanha é falta de homem!
            - Aforavante isso, estás ferrado.
            - Pensas que vou ficar embretado?
            - Imagina....


          Galdêncio fez sinal para o Boy e foram engolidos pelo elevador.
             Chegaram no último andar. O Boy abriu a porta, colocou a mochila sobre uma mesinha e a mala ao lado.
            Enquanto isto, Galdêncio foi verificar os aposentos, armários e a janela.
            O Boy, mais reto do pau de sebo, empertigado estava no meio da balaustrada da porta.
            Galdêncio molhou a mão do rapaz com duas moedas de dois Reais e fechou a porta.
            Desfez a mochila e a mala. Guardou tudo no armário e gavetas. Tomou um baita de um banho e vestiu-se com:
          . Bombacha marrom de sarja lisa, cós largo sem alças, dois bolsos na lateral, com barra abotoada no tornozelo. Toda com favos, letras e enfeites de botões.
            . Camisa branca de tricoline, com um discreto riscado, mangas longas e gola social.
          . Faixa de algodão lisa na cor vermelha de uns 12 cm de largura.  

          . Par de botas de couro cru, cano até o joelho, sem tingimento, no tom marrom. 
            . Colete, num tom semelhante ao da bombacha, sem manga, nem gola, abotoado na frente. A costa do colete era de um tecido leve, ajustado com fivela, em marrom escuro e com o cumprimento até a altura da cintura.
            . Guaiaca e cinto de couro cru, de 7 cm de largura, com duas fivelas frontais. 

          .Paletó do mesmo tecido e na cor da bombacha.

          . Um lenço amarelo de uns 30 cm, com um passador de 35 cm.

            Só faltavam:

            . As esporas, que por certo não terá nenhuma utilidade aqui na Ilha da Magia, porque não há lide campeira e nem fará alguma representação coreográfica de suas danças tradicionais.
 
            . A faca, objeto pérfuro-cortante, embora não seja proibido o seu porte, Galdêncio preferiu não arriscar portando-a na bainha.

            . O pala, parecido com poncho GaLdério, indumentária, também, tradicional, com abertura na gola. Não fica bem e nem confortável no início de outono em Floripa. 
          De qualquer forma Galdêncio, com toda a honra e tradição gauchesca, estava pilchado.
             Ansioso em sua redoma hoteleira. Ficaria ali, por dias, ensebado, fazendo cera, enrolando o tempo. Imaginando a cara de tacho do lazarento do Da Silva ao findar o compromisso.
            Ligou para a recepção e pediu uma chaleira de água fervente.
            Abriu a Janela e ficou espreitado o povinho lá em baixo.
          Campainha toca. Galdêncio abre a porta.
            O mesmo Boy prestativo com o chaleiraço na mão e olhos esbugalhados para o Galdêncio.
 
          - Sua água Senhor!
          - Coloca sobre a mesa.

            Tornou a molhar a mão do rapaz com duas moedas de dois Reais. Partiu para um novo ritual.
            Tomou de uma garrafa térmica e a encheu com aquela água fumacenta.
            Abriu o saco da erva Flor Verde do ervateiro Ouro Azul. Pegou a bela cuia. A bomba de prata folheada a ouro. O aparador que trouxe uma tampa plástica lisa e um copo com água. E, foi cevar o mate.
            Cuidadosamente despejou a erva na cuia até cobrir o pescoço da mesma. Tapou-a com o aparador, inclinando-a uns 45 graus. Devagar retirou o aparador verificando se a erva ficou bem acomodada. Em seguida, foi derramando vagarosamente a água do copo, pela parede da cuia. Pegou a bomba, tapando o bocal com o polegar direito. Colocando a parte de trás da bomba contra a parede da erva, foi introduzindo-a até o fundo, girando-a uns 90 graus até ficar reta. Retirando, imediatamente, o polegar do bocal da bomba. Puxou o resíduo daquela primeira água e foi dar uma cuspidela na pia do banheiro. Em seguida despejou a água da térmica no vão da cuia e começou a degustar do seu mate.
            Sorvendo alguns goles curiosamente dirigiu-se à janela. Olhava para baixo e se admirava do intermitente ziguezaguear dos transeuntes.
            Retornou a sala e passou para outro ritual, também complexo e não menos plástico como o do preparo do mate. Era a vez do paiêro.
            Tempo de sobra ele teria. Talento também. Dedicação em demasia. Como não costuma prepará-lo em pé, aboletou-e na poltrona em frente à mesinha de centro.
            Pegou o inseparável canivete, abri-o e começou a passá-lo, de um lado e de outro, na perna da bombacha, entre o tornozelo e o joelho. Não era para afiá-lo, com certeza. Estava  limpando a lâmina de quaisquer resíduos indesejáveis e que pudesse colocar em risco a saúde ou a qualidade daquele paiêro.
            Afinal, com este canivete corta as unhas, descascava frutas e outras diversas aplicações no cotidiano.
            Com o canivete devidamente limpo, lustrado e reluzente, pega o recipiente com o fumo em corda. Daquele pedaço de fumo vai cortando finas lascas, sempre arredondando, como se estivesse apontando um lápis.
            Com as unhas começa a espicaçar ainda mais o fumo, aumentando consideravelmente o volume.
            Ato seguinte passa a fricção, com vigor, do fumo cortado, entre as palmas das mãos até fazer uma bolinha. Ela é colocada na palma da mão esquerda e inicia a expansão da mesma. Expande que expande. Num dado momento, deita o fumo cuidadosamente sobre a macia palha e passa a enrolá-la com destreza. Lambe a borda da palha, umedecendo-a com guspe e cola-a. Faz uma dobrinha numa das pontas para garantir que não desenrole.
            Saca o isqueiro Zippo de pavio e fluído. E, num vigoroso arrastar do dedo polegar faz vida à chama que acenderá o precioso paiêro. Mais fedorento do que arroto de corvo.
          Liga para a recepção. Pede água fervente.
            Campainha toca. Galdêncio abre a porta.
            O mesmo Boy prestativo com o chaleiraço na mão e olhos esbugalhados, arregalados e muito abertos. Estampava um leve sorriso disfarçado, safado e maroto.
 
          - Sua água Senhor!
          - Coloque sobre a mesa.

            Tornou a molhar a mão do rapaz com duas moedas de dois Reais.

            Ao final do primeiro dia a estafe do hotel começou a estranhar a conduta do novo hospede. Aquele homenzarrão trancafiado naquele apartamento. E, de vez em quando pedia uma chaleira de água fervendo e ficava chimarreando e pitando o paiêro.
            Noutro dia, a mesma coisa. Querendo um pouco de ar fresco e muito curioso com a corriola daquela famosa esquina, volta e meia aparecia na janela, de lenço amarelo no pescoço, cuia de chimarrão e paiêro fumegando.
            Logo desper­tou a atenção de alguns “Senadores” e séquitos do Senadinho. O fuxico nas imediações do Ponto Chic estava feito. Em frente à Arapuá já havia uma aglomeração manjando o Galdêncio. Sacando. Querendo entender o que estava acontecendo.
            Dia seguinte, a mesma coisa. O zunzum foi geral e, logo, logo, do Senadinho chegou ao hall do Hotel.
            Na hora marcada o DA Silva apareceu e, como quem não quer nada, num canto ficou à espera do amigo.
         Galdêncio deu a última olhadela no vazio da janela, ainda com o lenço amarelo no pescoço. Apagou o paiêro na soleira.
            Pegou a mochila, pendurando-a no ombro. Segurou a mala e se dirigiu ao elevador.
            Chegou à recepção.



          -  Bom dia, o que o Senhor precisa?


            Pergunto o Recepcionista.

            - Estou de saída. Quero encerrar a conta.
            - Qual é o Apartamento?
            - 1001.
          - Um istantinho. Hiiiiiiiiiii! O papel da impressora embolou. Esta encrenca engripou outra vez. Péra! Péra! Péra! Consegui. Está aqui, ó!
          - Crédio pai! Estão cobrando as chaleiras?
            - Taxa de serviço Senhor.....
          - Gran Puta! Mais caro do que guria em zona nova.
            - É só pagar a conta e está liberado Senhor....
            - Pega! És mais folgado que cama de viúva.
            - O recibo Senhor.
 
          Ficou olhando o interior do Hall para ver se encontrava o Da Silva, para entregar o recibo e ser  ressarcido, enquanto pensava.

            (Mas bah, cadê esse homem que não chega tchê! Sou guapo e nenhum barriga-verde vai me botar apelido. Gaúcho macho não come mel, mastiga abelha... Gaucho macho e grosso não come carne, rói osso... Quando se pega na ribaça do arado, deve-se ir até o fim do rego... Acabou e não levei apelido algum. Só quero ver aquela cara do DaSilva, sempre mais enrolado do que namoro de cobra. Eita! Estou mais afiado do que navalha de barbeiro... Mais calmo que nem água de poço...Firme que nem prego em polenta...Bah tchê, como tem gente aqui dentro. Esta mais apertado do que bombacha de fresco...Quem gosta de aglomerado é mosca na bicheira... O que estão me olhando? Carência afetiva, é falta de homem...).

            Eis que avistou o Da Silva encolhido num canto do Hall.
            Chegou perto dele e disse.

            - Por que estás mais quieto que guri cagado? Pega o recibo e passe o dinheiro.


            Chamou o Boy.

            - Guri, pega minha bagagem.

            O mesmo Boy, sempre prestativo e solícito. D’olhos esbugalhados, arregalados, muito abertos e visivelmente brilhantes. Portava um largo e disfarçado sorriso. Safado e maroto respondeu num tom firme e alto.

           POIS NÃO, SEU CUCO!!!

            -
Bah, mas que barbaridade, tchê!

            Silêncio momentâneo entre Galdêncio e Da Silva.
           

            - CAPÁZ!
            - Ó-LHÓ-LHÓ!
           
Mané das Letras
Enviado por Mané das Letras em 06/01/2012
Reeditado em 02/12/2015
Código do texto: T3425674
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