Depoimento franco de um controlador de acesso

Deixa eu me apresentar primeiro:meu nome é Terêncio e sou porteir...Não!Sou controlador de acesso de um prédio comercial localizado no subúrbo do Rio de janeiro.O endereço eu não digo para garantir o sigilo.

Na minha profissão existem duas regras de ouro:a primeira é manter sempre o seu nariz no trabalho;a segunda é manter o nariz dos outros fora do seu trabalho.

Nesses vinte anos de labuta já vi discussão,briga,assalto, assédio,incêndio criminoso,desvio de verbas,obras irregulares...parece até que sou funcionário público.

Semana passada,por exemplo,tive que dar uma chamada no pessoal do 507.Eles(dois garotões na faixa dos vinte e poucos anos) mexem com esse negócio de compra e venda de tíquete e vale transporte.É movimento o dia inteiro.De um mês para cá,sempre aos Sábados,os bobalhões começaram a chamar garotas de programa na sala deles.As gurias chegavam no início da tarde e ficavam lá com eles até quase nove horas da noite.Nove horas!A portaria do prédio fecha as oito e meia.Não sou escravo de ninguém!De ninguém!Falei sério com eles.Ou paravam com aquilo ou eu faria queixa ao síndico;o prédio não era um motel.Embrólio resolvido.Seu Nestor,nosso síndico,tem ligações muito perigosas com uma milícia aqui da área.Ninguém bate de frente com ele.

Outra coisa chata é obra.Cada prédio tem um regulamernto.O meu só permite quebra quebra de 18:00 às 24:00 durante a semana e de 13:00 às 22:00 aos Sábados.É um horário apertado,mas evita confusão.

Uma vez,entretanto,o DR. Jansen,advogado do 706, quis instalar uma câmera de vídeo em cima da porta da sala dele durante a hora do almoço.A cabeleireira do 705 não gostou do barulho da furadeira e me chamou para dar queixa:

__Não pode!Está fora do horário!Minhas clientes estão reclamando!

E para convencer o homem disso?O rábula disse que iria entrar com um mandado de segurança,que estava no seu direito e coisa e tal...Mas acabou concordando em adiar por algumas horas a empreitada.Também não queria "farofa" com nosso síndico.

Agora,não existe coisa mais nojenta do que pombo.Dizem que pombo é o rato de asas,mas eu prefiro enfrentar um exército de roedores do que apenas um desses penosos.De quinze em quinze dias tenho que desentupir a calha do prédio por causa do cocô deles.São umas fezes pegajosas,escuras.já ouvi dizer que passam uma doença que tem um nome esquisito:"não sei o quê ose".Uso sempre máscara e luva quando limpo a calha.O Fábio,arquiteto do 403, pensa igual a mim.Uma vez,ele estava para sair com o carro da garagem do prédio e tinha uma senhora dando milho aos pombos na calçada.Ela tem essa mania,diz que eles são seus filhos.Devia ter mais de quarenta pombos ciscando no cimento. O Fábio arrancou com o veículo e atropelou quase todos eles.A velhinha ficou ali,estática,com o milho na mão.Depois eu fui saber que ele quase perdera um irmão devido à tal doença dos pombos.Foi vingança.

Agora;ruim de aturar é 171.No 306 tinha um advogado que era foda!Pegava adiantamento do cliente e não dava entrada no processo,não fazia nada.O tempo ia passando;o caboclo vinha uma, duas, três,quatro vezes na sala do doutor ver como estava seu caso e batia com a cara na porta,que invariavelmente estava fechada;parecia até que o safado previa quando iria ser cobrado.Uma vez deu azar e esbarrou com um cliente no corredor.O cara estava furibundo e armado.Queria matar ele ali mesmo.Quando eu cheguei o advogado estava ajoelhado com o cano do revólver na boca e o dedo do cliente no gatilho coçando para apertar.Foi preciso mais de uma hora de negociação.Veio até a polícia.No fim ele acabou se safando.Depois disso o escroque foi para outro lugar.Já estava manjado na área.Graças à Deus!

O caso que me deu mais trabalho,porém,aconteceu tem uns dez anos.Eu trabalhava num outro prédio,este residencial.Tinha um morador,Túlio,que adorava fazer churrasco.Todos os domingos tinha alcatra na brasa na cobertura do sujeito.Como as churrasqueiras que ele comprava duravam pouco(menos de um ano),ele teve a idéia de comprar,junto com um amigo, um desses barris de chop enormes.O plano era levar o bruto para um ferreiro,onde ele seria cortado ao meio,e cada metade daria origem à uma churrasqueira super resistente ao fim da adaptação.

Como eles haviam pego o barril no sábado à noite e o ferreiro só abriria na segunda;Túlio,que tinha mais espaço,ficou com ele.

Mas o que ninguém sabia era que dentro do barril estavam escondidos centenas de papelotes de cocaína.O vendedor do artefato de alumínio na verdade atuava do setor de "narcóticos" e usava o negócio de chop como fachada.Provavelmente se confundira e acabou dando o barril errado ao cliente errado.

Pois na manhã daquele domingo mesmo eu estava limpando a portaria quando três homens armados com pistolas invadiram o prédio em busca do barril.Me renderam e tive que levá-los até a cobertura.Ao chegarmos lá,porta arrombada,pegamos o Túlio na cama com a esposa do síndico,dona Arlete.

Seu Ramon,o síndico na ocasião, não tinha ligações com a milícia como seu Nestor,mas tinha dois irmãos delegados de polícia.Túlio gostava de viver perigosamente.

Os meliantes pegaram os papelotes de dentro do barril e os colocaram numa grande bolsa preta.Depois trancaram o casal no banheiro e foram saíndo.Um deles pegou o papagaio baiano do Túlio com gaiola e tudo e levou.Disse que a mãe iria adorar o presente.Eu ia na frente do grupo como garantia,caso alguém aparecesse.E apareceu.

Giordano,policial civil que morava no 208,entrou no prédio com três amigos,também policiais, justamente na hora em que nós estavamos saindo do elevador.Ao verem os meliantes com as armas na cintura eles recuaram,alcançando a proteção da parede de concreto do hall de entrada,sacaram os seus revólveres e atiraram.Foi tiro para tudo que era lado.Encurralados,os bandidos subiram novamente até a cobertura e tentaram pular para o prédio vizinho.Ao ver que tal manobra seria impossível devido a grande distância entre as lajes vizinhas,o grupo decidiu abrir caminho a bala; me utilizando como escudo,logicamente.

Para evitar um massacre guiei-os através das escadas de incêndio até a área de garagem,de onde eles poderiam,com alguma sorte,pular o muro que delimitava os fundos do prédio e fugir pelo terreno baldio que existia logo atrás.

Ledo engano.Giordano e seus amigos estavam atocaiados atrás dos carros estacionados e nos surpreenderam.Balas voaram descontroladas.Me atirei no chão e rezei.Os policiais,com melhor pontaria e protegidos,acertaram logo dois dos três meliantes,que tombaram mortos.O outro me pegou pelo braço e colocou a arma na minha cabeça.Ou deixavam ele sair ou o pobre Terêncio iria encontrar-se com seus antepassados.

Mas aí aconteceu o impossível.Com o tiroteio,a gaiola do papagaio,da qual um dos meliantes não quis se desgrudar nem mesmo com os problemas da fuga,caiu no chão,abrindo a porta e libertando o louro.Não é que o pássaro voou direto no rosto do bandido e começou a bicá-lo com toda a força!?Graças ao ataque consegui me livrar e pulei atrás de um dos carros.O pilantra não teve nenhuma chance e tombou segundos depois.

O triste foi que meu salvador,o louro,também foi atingido.Eu cheguei a pegá-lo nas mãos e ouvi suas últimas palavras:"Pôe vaselina túlio!Pôe vaselina!!"

Não entendi por que ele disse isso.

Fui até a cobertura e abri a porta do banheiro para libertar o casal.Dona Arlete foi de toalha de banho para seu apartamento.

Poucos minutos depois, seu Ramon chegava feliz da sua pescaria dominical e se assustava com a confusão.

Logicamente tivemos,eu e Túlio, que combinar uma versão que excluísse a primeira dama do condomínio da história toda.Três mortes já eram suficientes.

Fiz questão de pagar um enterro decente para o louro num cemitério de animais.Foi uma cerimônia bonita.Todos os anos vou lá e deposito flores no túmulo,junto com um punhado de sementes de girassol.Túlio me falou que ele adorava semente de girassol,mas nunca me explicou direito a história da vaselina.

O ferreiro fez um bom trabalho e o barril transformou-se em duas lindas churrasqueiras.

Bom,deixa eu encerrar meu depoimento.Já escrevi demais e não quero cansar ninguém.

Agora vou descer lá na portaria e colocar o livro de ouro bem à vista dos condôminos.Muita gente contribui legal,mas também tem cada pão-duro....Bem, isso já é outro papo.

Um feliz natal para todos e um ano novo com muita saúde.

São os votos do portei...Não!São os votos do controlador de acesso Terêncio Arquimedes da Silva;seu criado.

arqueiro
Enviado por arqueiro em 26/12/2011
Código do texto: T3407530
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