UMA GRANDE CARREIRA
Uma grande Carreira
O sol nascia em Santana e sua luz aos poucos retirava as trevas daquela pequena vargem de suave aclive à margem direito do Rio Jacaré. Eu caminhava por aquelas ruas nua de gente, mas entulhada de lixo carnavalesco em direção a Matriz. Era Quarta-feira de Cinzas. Ia ouvir o sermão sempre moralista desta data para depois deitar na testa as cinzas abençoadas a apagar os pecados do reinado de Momo.
Subiam do calçamento vapores mal cheirosos num misto de cachaça, cerveja quente e urina humana. Após três noites de axé e outras musiquetas “balançadoiras” finalmente “o silêncio era ouvido”. O toc-toc de meu sapato quebrava o silêncio em meu caminhar “tagarela” de roupa de ver Deus e coração contrito para a inauguração da Quaresma.
No jardim público avistei um folião de bruços sobre a grama do jardim. Dormia o sono dos justos. Justamente porque bebeu. E constatei que a sabedoria popular mais uma vez dizia toda a verdade. “Cu de bêbado não tem dono”. Estava lá realmente a amostra.
Mais a frente outro folião junto a um cachorro que dava fim a seus resultados náuseos. Por pouco não lambia também sua cara. Era possível identificar, sem endoscopia, suas últimas refeições. Salvo o cachorro é lógico. O cachorro ele não havia comido.
Ao fim do jardim público encostados à parede de uma casa e outros assentados no meio fio topei com uma colundria de ébrios. Coincidindo com minha aproximação chegou outro da trupe com uma garrafa de cachaça para alegria de todos. Afinal queriam evitar a ressaca. Passando por eles notei que se esforçavam por abrir a garrafa muito bem arrolhada. Não tardou e começaram a danar com a rolha com toda sorte de palavrões que tinham em seu vocabulário. Lembrei de meu avô que em seu bom coração usava a rolha para qualificar as pessoas difíceis de lidar. E não é mesmo?!, a rolha tira qualquer um do sério, até mesmo uma trupe de cachaceiros.
Como não queriam correr o risco e perder a cachaça tentando arrancar a rolha por outros fins gritaram-me quando já ia distante deles. Afinal um sóbrio pode ter mais sucesso num desarrolhar do que os que já estão sobe o efeito daquela que tanto desejavam. Ao grito desesperado dos amantes da “Kátia-Cha” voltei-me quando um deles atarracado com a garrafa arrolhada fazia sinal para que voltasse e lhes desse uma ajuda no empreendimento.
No intuito de fazer uma boa ação e quem sabe aliviar o serviço das cinzas que ia receber, resolvi dar uma mão. No que me aproximei recebi um caloroso viva da turminha. Estava me sentindo o verdadeiro "Salvador da Pátria".
Tomei a garrafa nas mãos e olhei-a frente ao sol vendo o translucido conteúdo a 51% de volume de álcool. O cheiro era das boas, afinal também aprecio uma branquinha, embora àquelas horas da matina não tivesse apetite. Não sei se era para incentivar, mas um dos amigos do grupo afirmou-me: _A primeira dose é sua amigo, assim que retirar esta maldita rolha. Em vênia agradeci a honraria.
Dando início a missão que me incumbiam desci a garrafa até o chão, travei-a entre meus pés e com força, muita força. Com toda força que se pode empregar numa rolha meio encaixada no gargalo, puxei-a e ela desprendeu-se. Junto como o sonoro desprender de uma rolha ouvi as palmas de minha pequena platéia saudando-me pelo grande feito daquela manhã.
Empolgado puxei a garrafa pelo bico, esquecendo-me de empregar menos força que o necessário e ela veio que veio para o alto. Não consegui agarrá-la. Ela subiu e em força inversamente proporcional foi voltando. E de encontro ao calçamento beijou-o num beijo frio e mortal. Estilhaçou-se. A doce cachaça foi toda pro Santo que naquele dia não tinha Santo próprio. As palmas de alegria se converteram em palavrões de toda sorte. Palavrões antes dirigidos a rolha agora voltaram-se pra mim que para não tomar soro ao invés de cinzas saí em disparada pelas ruas com alguns ébrios tentando me pegar. Foi uma grande carreira. A maior da minha vida.
"Para ler e entreter ..."