O cinema de seu Milico
O CINEMA DE “SEU” MILICO
Apareceu em Jicatinga de repente. Andava pausado, apoiado em uma bengala de cabo de prata. Caminhava devagar, pensativo e observador enquanto balançava a cabeça com gestos de sim e não. Mais sim do que não. Magro, cabelo escasso esticado com brilhantina. Tinha cavanhaque e usava óculos de aro sem haste pendurado na ponta do nariz. Como era desconhecido no local e ninguém notava sua presença, entrou no Bar do Gozório, dirigiu-se a ele e se apresentou:
- Meu nome é Milicário Quaresma, mas pode me chamar de “seu ”Milico”. Vim até Jicatinga para instalar aqui uma sala cinema moderno, uma diversão para o povo desta vila. Tenho experiência nisso. Há dois anos montei uma sala de projeção em Santana que foi um sucesso.
Manezinho sapateiro ouviu a conversa e foi perguntar a Altineu Caçapava o que era sala de projeção. Altineu estipulou: - isto é coisa do capeta. Vai trazê muita doença praqui. Vai mostrá muita safadeza, muita poca vergonha. Vai desencaminhá as donzela e as sinhora de respeito daqui.
Cumé que ocê sabe disso? – perguntou Manezinho.
- Porque um dia na reunião do nosso terrero desceu o esprito sem-vergonha de um indivíduo degenerado e me disse que isso era a maió novidade lá nos inferno. Havia sala de projeção pra todo lado pra mantê o pessoar ligado. Isso num presta! Eu num entro nisso de jeito ninhum. Vou tratá de levá minha muié e minhas trêis fia para o mais profundo dos ermo. Temo que tomá providença pra impedi isso. Entonce vem um sujeito estropiado denegri a image de nossa vila? E isso não é nem a terça metade do que pode acontecê. O padre Severo vai trepá nas tamanca! O que esse cidadão pensa que nóis somo? Vamo reagi. Vamo reuni o pessoar e expulsá este iscumungado.
Peraí Altineu, isplica mió. Ocê já viu essa tar sala? perguntou Manezinho.
- Eu num vi não, mas fiquei sabeno pelo cartero Midas. Ele me disse que a coisa funciona assim: sai uma tocha de luiz pur um buraco na parede e passa por riba da cabeça da gente carregando de um tudo: caminhão, artomovi, bicicreta e coisa fedorenta tamém. Aquilo tudo trafega de cambulhada pela luiz até um pano branco nos fundo da sala. Aquela imundiça toda viaja na tocha que sai do buraco e serve de istrada pra eis. Se a luz fartá aquilo perde a força e cai tudo im cima da gente. É um pirigo! Vamo morrê ismagado. Meu cumpadre Cambuta de 94 ano foi vê esta geringonça lá em Santana, a luz apagô e quando acendeu tinha uma rapariga sentada no colo dele. Ficô todo feliz, mais perdeu a função de zeladô da Igreja e teve que fazê muita penitença pra num sê iscumungado pelo padre Severo e ainda levô a maió surra da patroa dele, a Norata, que é mais brava e peçonhenta qui um surucucu-tapete! Já caiu até um pinico cheio di titica na testa de seu Anfilófio dentista. Aquela porquera penetrô nos ovido dele e deixô ele mais surdo que a véia Quinzinha. Coitado do Anfilófio, gastaro mais de 10 litro de criulina para limpá ele, afora o galo que ficô na testa dele e que cantava todo dia no amanhecê durante seis meis. Aconteceu que a isclerose do Anfilófio disregulô o relógio do galo que passô a anunciá o raiá do soli entre treis e quatro hora da manhã. O gogó do bicho era avantajado tão alto ele cantava coisa de se iscutá nos lonjal. Os vizinho num pudia mais dormi e até mudaro das redondeza. Teve um dia que um magote de cabeludo avançô no pano para participá daquele aranzele. Foi uma bagunça gerar. Veio até tropa de linha do tiro de guerra de Santana pra acarmá os ânimo da moçada. Demo queixa pru delegado Neca Socó que saiu da delegacia cuspindo marimbondo chumbim junto cum o cabo Peçanha impunhando um bacamarte da guerra de Canudo. Chamemo tamém o sargento Maristevaldo que isteve na Guerra do Paraguai, pra armá barricada. Aí começô a juntá gente municiada de pau e pedra prá ispulsá seu Milico da vila.
E foi assim que seu Milico saiu fugido da vila e Jicatinga continuou no seu atraso.