HEMATOFAGIA - CONTO - HUMOR

HEMATOFAGIA

Ironi Lírio

Teobaldo chegou ao cemitério carregando consigo as ataduras que cobriam os ferimentos espalhados pelo seu corpo. Os ferimentos tinham sido resultado de uma noitada de bebedeiras, farras e, mais tarde, a direção do seu próprio carro em alta velocidade. Coisas que todo mundo sabe que não combinam.

Tinha apenas vinte e oito anos e estava na flor da idade.

No cemitério, recebeu uma recepção calorosa como acontece com todos os novatos. Uma fila de almas acolhedoras dava as boas vindas àquele rapaz tão simpático que, a partir daquele dia iria se juntar a eles no mundo dos esquecidos.

Passada a euforia do primeiro encontro, o rapaz foi apresentado a um homem que estava sentado atrás de uma mesinha escrevendo alguma coisa em um grande livro.

- Como vai, Teobaldo? - Disse o homem ao rapaz. Permita me apresentar a você. O meu nome é Exímio. De agora em diante serei o seu mestre na sua nova jornada. Fui designado por meus superiores para ajudá-lo a cumprir o restante de sua missão na Terra que você, por negligência, deixou inacabada. De acordo com os meus cálculos, você deveria viver mais trinta anos. Isso significa que, se morreu antes da hora, ainda deves esses trinta anos ao seu Criador. Como deseja cumpri-los?

O rapaz ficou olhando para aquele homem sem saber o que falar. Ainda estava com as lembranças do seu acidente na memória e tentava se encontrar naquele lugar estranho. Não havia se dado conta de que estava morto.

Percebendo a perplexidade do jovem hóspede e na intenção de encorajá-lo, o homem lhe disse que não tivesse pressa em responder a pergunta.

- Pense bastante, Teobaldo! Quando tiver a resposta venha me dizer para que possamos tomar todas as providências necessárias ao seu retorno.

O rapaz, que até então pensava tratar-se de um sonho, resolveu tirar vantagens da situação.

Enquanto caminhava pelas ruas do cemitério, começou a pensar em todas aquelas moças bonitas que via na televisão, nos filmes e achou ter encontrado uma brilhante idéia.

Correu até o Mestre e lhe respondeu rapidamente:

- Mestre, eu já sei como quero retornar. Quero voltar para a Terra como um ser hematófago.

- Tem certeza? – Perguntou o Mestre. - Não quer pensar mais um pouco? Não se pode tomar uma decisão tão importante como essa de qualquer maneira. Você precisa pensar para não escolher a opção errada. Acabou de chegar aqui, pense bem!

- Não Mestre; não preciso pensar mais. Já fiz a minha escolha. Quero retornar a Terra e cumprir os trinta anos que me restam como um ser hematófago. Mande-me de volta que eu não quero perder nem mais um minuto.

- Se é assim que deseja, é assim que será! Assine este livro e se despeça das almas, pois você irá retornar agora mesmo.

Mais que depressa, Teobaldo despediu-se do pessoal no cemitério e começou a sua viagem de volta.

Quando abriu os olhos e viu que estava na Terra, deu um suspiro aliviado:

- Nossa, que sonho maluco! - Disse a si mesmo. Vou me levantar e sair para tomar um ar fresco; está muito abafado aqui.

Quando se levantou, Teobaldo viu que não andava. Começou a bater umas asinhas minúsculas e a voar de um lado para outro. Só então percebeu, que aquilo tudo não tinha sido nenhum sonho. Ele realmente havia morrido e agora retornava a Terra na forma de um inseto. Desesperado, olhou a sua imagem refletida na água e gritou por socorro:

- Mestre! - Gritou o rapaz. - O que está acontecendo comigo? Você deve ter se enganado em alguma coisa; eu desejei ter retornado como um ser hematófago e não como um pernilongo!

- Teobaldo: - Disse o seu Mestre. - O pernilongo é um ser hematófago; vive de sugar sangue.

- Mas não é isso o que eu queria, Mestre! Quando eu pensei em hematofagia me referi a um belo vampiro loiro, como aqueles dos filmes que seduzem mulheres bonitas para levarem ao seu quarto e, depois de uma noite de amor ainda se alimentarem do seu sangue. E não este inseto horrível que eu me transformei. Quem irá querer alguma coisa comigo sendo feio desse jeito?

- Sinto muito, Teobaldo! Eu lhe avisei. Sabia que iria se arrepender de ter tomado uma decisão tão precipitada. Por isso o aconselhei a pensar mais um pouco. Saiba que os vampiros são seres lendários e só vivem para sempre nos filmes. Se a sua intenção era essa, se enganou completamente. Todos os seres hematófagos são seres vivos e também morrem. A minha função como seu Mestre é de apenas aconselhá-lo e não interferir na sua decisão. Se você tivesse esperado mais um pouco poderia pedir a opinião das outras almas que o receberam no cemitério e teria a chance de escolher outra coisa. Além do mais, você já assinou o livro das almas concordando com a sua atual condição. Agora, tudo o que eu posso fazer é pedir para você ouvir o meu conselho ao menos uma vez. Preste atenção:

- Arrume uma bonita pernilonga para ser a sua companheira, porque você tem uma longa jornada pela frente.

- Bonita? Já andei dando uma olhada por aí e elas são horríveis. Elas têm os olhos esbugalhados, pernas finas e aquele bico enorme; por favor, Mestre leve-me de volta ao cemitério!

- Não posso rapaz, você escolheu assim! Conforme-se com a sua condição, pois poderia ser muito pior. Você poderia voltar na forma de um horrível morcego cego ou de uma pulga e viver trinta anos morando nos pelos de um cachorro. Como um pernilongo você tem o privilégio de enxergar e possuir asas para voar aonde quiser. Nesses trinta anos que ficará na Terra como um inseto, poderá viajar e conhecer o mundo inteiro. Agora, deixe de choradeira que eu preciso trabalhar. Tem uma fila de almas esperando para falar comigo. Boa sorte, Teobaldo! Até daqui a trinta anos.

Depois de ouvir as explicações de seu Mestre, o pobre Teobaldo tratou de se conformar com a sua nova condição e começou uma jornada pelo mundo como sugador de sangue, sendo odiado pelas pessoas que até hoje os perseguem com inseticidas, repelentes, tapas e muitos xingamentos.

Saiu por aí desejando nunca ter desejado. O arrependimento que sentia dava raiva de si mesmo. Pensava em sua pressa, nos filmes de vampiros que assistiu na televisão e no seu desagradável aspecto físico.

Seu estômago de pernilongo roncava mais que um trator. Então, não viu outro jeito e saiu por aí a procura de alimento.

Olhava por todos os lados, mas seu modo enjoado de se alimentar o tinha acompanhado no mundo dos mortos. Quando era vivo, sua adorada mãezinha separava os caroços da melancia, fritava os ovos de maneira que ficassem com uma casquinha crocante e a gema molinha, mas não queimado. O feijão? Era só o caldinho suculento. Não comia verduras e a carne era sempre bem passada. Agora, estava prestes a provar o sangue como alimento.

Teobaldo já havia andado mais de meio dia sem ter nada no estômago. Como não tinha relógio baseava-se na posição do sol. Era tarde, e a essas alturas já estava com as perninhas bambas de fraqueza.

De repente, avistou no meio do mato um tatuzinho que corria em direção ao buraco. Não pensou duas vezes. Bateu asas em direção ao tatu e ferrou o bico no pescoço do bicho. Imediatamente sentiu seu estômago se encher e não podendo mais com o seu peso, caiu de cima do tatu que corria balançando a cabeça.

Ficou estirado no chão em transe por alguns minutos e depois voltou a recuperar a consciência. Saiu babando e numa cuspideira com nojo de seu bico.

- A que ponto eu cheguei. - Dizia para o vento. - Beber o sangue de um tatu! Este sangue pode estar contaminado. Posso estar com a doença do bicho barbeiro. Vou morrer!

Por um momento, Teobaldo havia se esquecido de que já estava morto. Quando se lembrou, não teve coragem para sair de onde estava caído, nem de voar. Estava deprimido.

Do além, o Mestre observava em silêncio as atitudes do pernilongo.

Debruçado sobre uma pedra, o pernilongo começou a pensar nos seus dias de vida como um Ser humano, na sua família, amigos, saúde e coisas que nunca se tinha dado conta da enorme importância.

Nunca tivera uma amiga ou alguém de que ele se importasse. Nas baladas, era companhia de muitas moças, sem ter na verdade nenhuma delas. Estava sozinho como sempre fora.

Então, desejou pela primeira vez uma companheira estável. Não queria passar os trinta anos como um pernilongo solitário. Levantou-se de onde estava e voou observando todos os insetos e animais do campo.

Ficou algumas horas perguntando a si mesmo qual deles era também uma alma cumprindo os dias restantes. Aproximou-se das formigas, mas logo percebeu que elas eram realmente insetos, pois o repeliram rapidamente.

Tentou as abelhas, mas quando viu o ferrão vindo em sua direção saiu voando em disparada.

Por último, sem esperança, tentou as borboletas. Achava que nunca iria conhecer ninguém, mas ao se aproximar ouviu que elas conversavam entre si. Contente, o pernilongo começou a falar com elas feito uma matraca. E elas fugiram assustadas daquele maluco.

- Não fujam; eu sou humano também! - Gritava desesperado voando atrás das borboletas.

De repente, escutou alguém chamando por ele. Era um pássaro. Teobaldo olhou em cima de uma árvore e lá estava ele. Um passarinho que falava.

- Amigo: - Chamava o passarinho. - Por que está assim tão afoito? Aqui não adianta ter pressa. Você sabe que os pássaros comem insetos, não sabe?

O Teobaldo nem se mexeu. Olhou para o passarinho e respondeu com desdém:

- Sinta-se à vontade, amigo! Se você me devorar estará me fazendo um enorme favor.

- Nossa, que baixo astral! - Indagou surpreso o passarinho.

- Dê uma olhada, amigo! Veja que horrível figura. Eu era bonito quando vivia. Mas como todo jovem, nunca pensava que um dia pudesse envelhecer, ou ficar gordinho ou careca e até mesmo morrer. Trabalhava duro, mas gastava todo o meu salário com coisas inúteis, bebedeiras e rachas. Não pensava na minha família, nunca namorei uma garota, nunca gostei de ninguém. Era egoísta. Só pensava em mim mesmo. Não me preocupava com nada. Agora estou aqui. Morto, sozinho e arrependido. Como posso ficar feliz tendo que viver assim por trinta anos?

O passarinho soltou uma gargalhada.

- Quem te disse que são trinta anos? Um pernilongo só vive por vinte e quatro horas. E, no seu caso, só alguns segundos, pois vou devorá-lo agora mesmo.

Enquanto o Teobaldo ouvia as explicações do passarinho apareceu em sua frente uma pernilonga e o Mestre que sorria para ele.

- Mestre, o que faz aqui?

- Vim levá-lo de volta ao cemitério. Seu tempo de pernilongo está terminando.

- Mas e os trinta anos que me falou? Você mentiu, Mestre!

- Ora, Teobaldo! Menti com boa intenção e você mereceu. O Criador o sabe. Deveria acontecer com você exatamente o que aconteceu. Como um inseto, você deveria refletir sobre a sua vida desperdiçada na Terra e se arrepender. Felizmente você se arrependeu rápido, antes do prazo terminar. Algumas pessoas demoram muitos anos para se darem conta do mal que fizeram a si mesmas. Por sua sorte, você foi rápido. Veja Teobaldo, esta é Mirella! Está como pernilonga há quase um mês, pois as fêmeas vivem mais. Era tão desleixada com a própria vida quanto você. Mas agora, irá voltar ao cemitério. Este passarinho, nada mais é do que o meu auxiliar no cuidado com as almas. Ele viu o seu arrependimento e me avisou. Você, de agora em diante, irá trabalhar com ele. Irá viajar pelo mundo afora encontrando almas arrependidas para trazê-las de volta. Viverá como alma de humano e não como inseto. Porém, para conversar com as almas em forma de animais, terá que se transformar em muitos deles. Será uma ótima experiência para você. Vamos depressa. Vamos voltar ao cemitério.

Em questão de segundos, Teobaldo viu-se transformado em uma alma humana e cercado de amigos no cemitério. Viu também, aquela pernilonga transformar-se em uma linda alma de mulher. Assim como muitos seres humanos, Teobaldo precisou morrer para enxergar o valor da vida. Agora, estava contente e pronto para receber as orientações do Mestre na sua nova carreira, pois tinha aprendido a ser paciente, a pensar antes de agir e dar o devido valor às coisas que possui. Mesmo na sua nova condição de ser um humano morando no além para sempre. Agora, Teobaldo vive como um morto feliz.

Fim

Ironi Lirio
Enviado por Ironi Lirio em 04/11/2011
Reeditado em 08/11/2011
Código do texto: T3317025
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