INFÂNCIA PORTÁTIL & MAIS
INFÂNCIA PORTÁTIL I (2006)
Foi de repente. A casa fez-se imensa
e eu caminhava quase rente ao chão.
Paredes muito altas, qual mansão,
em que vivesse fantasia intensa...
Eu andava curvado, a face tensa,
sem expressar nos lábios emoção.
Apenas meu olhar tinha expressão:
recoberta de pelos, mata densa
era minha carne toda e vi uma pata;
olhava para cima em minha surpresa
e via um vulto longo a me fitar...
Por um momento, eu encarnei na gata
e ela estava em mim, estranha empresa,
que pudéssemos por instante nos trocar!
INFÂNCIA PORTÁTIL II - 18 SET 11
E se estivesse a gata em meu lugar,
que estranha a impressão que sentiria?
Sobre meu ombro talvez que viajaria,
mais que em meu colo de seu acostumar.
Ou quem sabe, que em prateleira estaria,
ponto mais alto a que jamais fora alcançar,
(dentro da casa ao menos) ou pensar
que em novo telhado ascenderia...
Pelos meus olhos menos luz veria,
menos detalhes também a perceber:
como era fraco o cheiro desse olfato!
E agilidade muito menor teria,
neste meu corpo já cansado de mover
e revestido de roupas por recato!...
INFÂNCIA PORTÁTIL III
E eu, no corpo dela, a juventude
sentiria, de repente, retornar.
Bem poucos anos têm esse meu par
embora o cálculo que fazem até ajude:
Cada ano de um gato o tempo ilude
como sete de meus anos a passar.
Eu estaria ainda no limiar
de minha adolescência um tanto rude...
Desajeitado em meu trato social,
por ter sido educado em demasia
a um ponto de não ter senão temor
quando fora desse círculo natural
dos parentes e amigos em que cria,
havendo apenas inimigos no exterior.
INFÂNCIA PORTÁTIL IV
Melhor fora ter a gata só um ano,
o que seria o mesmo que meus sete!...
Uma criança que em todo lugar mete
o seu focinho e o bigode soberano...
Com o rabo peludo, um espanador,
que me serve de leme a meu pular
de um telhado a outro, em adejar,
sem sentir da escuridão qualquer temor.
Bem melhor que o menino que então fui
a quem tudo ou quase tudo proibiam,
que só podia ir aonde iam
e cujo coração ainda me influi
em situações um pouco inesperadas,
no despertar de lembranças angustiadas...
INFÂNCIA PORTÁTIL V
Pobre da gata dentro da minha pele!
completamente nua sem seus pelos,
assustada inteiramente em seus desvelos,
suas faces lisas a que o vento gele!...
Pobre da gata que o destino atrele
dentro de minha cabeça, os vagos selos
de seu cérebro incapazes de movê-los
se a ânsia de acionar membros a impele!
Pois nem sequer encontraria um rabo!
Bigode eu tenho, mas sem utilidade,
não mais do que apêndices do rosto...
Salvo um adorno de que ainda me gabo,
sem contribuírem em nada, é bem verdade,
já bem grisalhos para o meu desgosto!...
INFÂNCIA PORTÁTIL VI
Por sorte a sensação foi de um instante
e nem sei se a gatinha a partilhou...
Se por momentos sua mente deslocou
sob a influência da minha mais vibrante.
Falando seriamente, a delirante
sensação que tal soneto registrou
pertence a meu passado e desbotou:
não me foi em extremo impressionante.
Muitos rascunhos esquecidos no passado
me causam boa surpresa, com frequência,
que me parece até em sonambulismo
terem sido redigidos, escapado
de um sonho de pudor ou de indecência,
no feroz esplendor do romantismo!...
QUEDAS AZUIS I -- 16 SET 11
Esses degraus que sobem às montanhas
alguém está lavando com cuidado.
Não vá ter uma entidade escorregado
nos patamares de ascensões tamanhas.
Não há chuva a descer em mansas manhas:
o detergente pinta a água de azulado
e elas descem por degrau já desgastado
nesses taludes de escadas tão estranhas.
Mas quando chegam na calçada, descoloram,
se tornam rosa, carmim e amarelas,
com filetes de brancor a meio delas,
essas águas de lixívia que ali choram,
restos de tinta talvez dessas janelas
abertas na mansão em que os deuses moram.
QUEDAS AZUIS II
São as quedas que percorre a Macareña,
com mais cores que o famoso tangará.
Corredeiras mais estranhas já não há:
correm mais brancas desde cada penha,
correm cinzentas quando se desenha
o reflexo das cidades, de onde já
descem os esgotos, a Deus-dará,
sem que preocupação qualquer se tenha
pela sorte dos que moram à vazante
ou pelos peixes que sobem à jusante,
para repor suas ovas nas nascentes.
Que tantos rios tem, de fato, detergentes,
derramados em descaso delirante
pela saúde das futuras gentes...
QUEDAS AZUIS III
Há outros rios de águas amarelas,
reluzindo douradas como o Sol.
Há mais correntes refletindo o arrebol,
vermelhas da ferrugem em arruelas.
Há outras águas que nenhum farol
consegue penetrar o negror delas.
São terras férteis que rasgaram elas,
e carregam sedimentos a seu gol.
E há rios verdes refletindo a mata,
entremeados por troncos mais marrom,
seus presentes conduzindo ao casamento
da praia com o oceano, em longa data.
cada um deles guardando o próprio tom
nessas correntes de eterno movimento.
QUEDAS AZUIS IV
Contudo, são azuis em cada mapa
geográfico, por antiga convenção.
Algumas vezes, riscos negros são,
mas em geral, é o azul que a terra encapa
pelas lisas superfícies dessa capa
com que as terras rodeia a imensidão.
Três quartos do planeta assim estão,
além das margens e praias que ainda empapa.
Mas estas quedas são, de fato, azuis,
e não somente refletem o firmamento.
Há minérios dissolvidos, nessa acesa
escavação de luz, saltos exuis,
que se refletem em colares de portento,
em sua estranha cachoeira azul-turquesa.
CASAS DE PEDRA BRUTA I -- 17 SET 11
Parecem ser bem velhas as moradas,
diante do fosso por onde escoa a chuva.
O espaço se aproveita como luva,
cada parede nas outras escoradas.
Algumas trazem ainda águas-furtadas,
com telhadinho que a janela escuda.
Aproveitam-se os sótãos. Não se iluda
que haja peças aqui desperdiçadas.
A luz do sol mal lambe o pavimento
perante o térreo da fila de sobrados,
mas é bem certo que existe escoamento,
pois canos verdes descem dos telhados,
recobertos de ardósia e encantamento,
em que os gnomos se escondem agachados.
CASAS DE PEDRA BRUTA II
Somente uma tem fachada rebocada,
todas as outras mostram a cantaria
e a cada pedra o rejunte afirmaria
por não estar contra as outras encaixada.
Foi uma obra bem aproveitada,
com as pedras da praia e maresia,
essas pedras que o mar rejeitaria,
que mão-de-obra recolheu apressurada.
E foram assim erguidas, pedra a pedra,
como se fossem tijolo e alvenaria,
com prumo e linha, bem exatamente.
E no beiral um tufo de erva medra,
escondida, a pensar que iludiria
o ser humano que a contempla complacente.
CASAS DE PEDRA BRUTA III
E nesse espaço exíguo, ainda encontraram
um nicho para expor Virgem Maria,
de manto azul e em veste luzidia,
e na cabeça sua coroa colocaram.
E perto dela uma bandeira hastearam
nas cores dessa França, em regalia,
por mais antiga que fosse a moradia:
os carolíngios ainda aqui reinaram.
Mas as casas se abrigam contra a penha,
a disputar cada milímetro de espaço:
há canteirinhos em cada peitoril,
esperando essa bruma que lhes venha
depositar simples gotas ao regaço,
assopradas pelo vento senhoril...
INFÂNCIA PORTÁTIL I (2006)
Foi de repente. A casa fez-se imensa
e eu caminhava quase rente ao chão.
Paredes muito altas, qual mansão,
em que vivesse fantasia intensa...
Eu andava curvado, a face tensa,
sem expressar nos lábios emoção.
Apenas meu olhar tinha expressão:
recoberta de pelos, mata densa
era minha carne toda e vi uma pata;
olhava para cima em minha surpresa
e via um vulto longo a me fitar...
Por um momento, eu encarnei na gata
e ela estava em mim, estranha empresa,
que pudéssemos por instante nos trocar!
INFÂNCIA PORTÁTIL II - 18 SET 11
E se estivesse a gata em meu lugar,
que estranha a impressão que sentiria?
Sobre meu ombro talvez que viajaria,
mais que em meu colo de seu acostumar.
Ou quem sabe, que em prateleira estaria,
ponto mais alto a que jamais fora alcançar,
(dentro da casa ao menos) ou pensar
que em novo telhado ascenderia...
Pelos meus olhos menos luz veria,
menos detalhes também a perceber:
como era fraco o cheiro desse olfato!
E agilidade muito menor teria,
neste meu corpo já cansado de mover
e revestido de roupas por recato!...
INFÂNCIA PORTÁTIL III
E eu, no corpo dela, a juventude
sentiria, de repente, retornar.
Bem poucos anos têm esse meu par
embora o cálculo que fazem até ajude:
Cada ano de um gato o tempo ilude
como sete de meus anos a passar.
Eu estaria ainda no limiar
de minha adolescência um tanto rude...
Desajeitado em meu trato social,
por ter sido educado em demasia
a um ponto de não ter senão temor
quando fora desse círculo natural
dos parentes e amigos em que cria,
havendo apenas inimigos no exterior.
INFÂNCIA PORTÁTIL IV
Melhor fora ter a gata só um ano,
o que seria o mesmo que meus sete!...
Uma criança que em todo lugar mete
o seu focinho e o bigode soberano...
Com o rabo peludo, um espanador,
que me serve de leme a meu pular
de um telhado a outro, em adejar,
sem sentir da escuridão qualquer temor.
Bem melhor que o menino que então fui
a quem tudo ou quase tudo proibiam,
que só podia ir aonde iam
e cujo coração ainda me influi
em situações um pouco inesperadas,
no despertar de lembranças angustiadas...
INFÂNCIA PORTÁTIL V
Pobre da gata dentro da minha pele!
completamente nua sem seus pelos,
assustada inteiramente em seus desvelos,
suas faces lisas a que o vento gele!...
Pobre da gata que o destino atrele
dentro de minha cabeça, os vagos selos
de seu cérebro incapazes de movê-los
se a ânsia de acionar membros a impele!
Pois nem sequer encontraria um rabo!
Bigode eu tenho, mas sem utilidade,
não mais do que apêndices do rosto...
Salvo um adorno de que ainda me gabo,
sem contribuírem em nada, é bem verdade,
já bem grisalhos para o meu desgosto!...
INFÂNCIA PORTÁTIL VI
Por sorte a sensação foi de um instante
e nem sei se a gatinha a partilhou...
Se por momentos sua mente deslocou
sob a influência da minha mais vibrante.
Falando seriamente, a delirante
sensação que tal soneto registrou
pertence a meu passado e desbotou:
não me foi em extremo impressionante.
Muitos rascunhos esquecidos no passado
me causam boa surpresa, com frequência,
que me parece até em sonambulismo
terem sido redigidos, escapado
de um sonho de pudor ou de indecência,
no feroz esplendor do romantismo!...