LAGARTIA - REBELIÃO: CAPÍTULO 1
A salvação da humanidade estava em um hamster.
Parecia até simples, quando o cientista explicava. Queriam energia. Energia suficiente para fazer o que diabos quisessem. Alimentar qualquer maquina – ou série de maquinas. Naves, canhões de plasma, torradeiras.. Tudo o que pudesse contribuir para o extermínio de uma superpotência alienígena formada por lagartos humanóides sádicos e cruéis.
E o sistema de MLH serviria para isso, e seria inaugurado na reunião da rebelião daquele dia, assim que a maioria dos participantes estivesse presente e devidamente drogada.
A Rebelião era o mesmo conceito manjado de sempre, como mostrado nas grandes histórias envolvendo pessoas mal vestidas contra forças opressoras. Bandanas nas testas, coletes, botas, esconderijos subterrâneos, bebidas, sexo.. Exceto que não tinha muito disso.
Essa rebelião era formada pela elite intelectual do que restava da sociedade humana. Ou ao menos era isso que eles se consideravam.
Pessoas de boina (algo que havia saído da moda e reentrado novamente em média a cada setenta anos), gírias estrangeiras(de outros planetas e dimensões), roupas de fibra LCD com animações de figuras cultuadas de outras gerações, como:
- Wagnus Wagner, aclamado criador de uma das primeiras obras experimentais envolvendo administração jogos virtuais como forma de copular com fêmeas (algo muito popular na primeira grande era da humanidade, um pouco antes da invenção do bom senso).
- Von Kelptus, autor do filme “Eu tinha milhões de peixes e nenhum deles era uma pomada”, que relatava a história de um homem caminhando durante sete horas seguidas pelas estradas abandonadas de uma cidade no interior, vez ou outra dando alguns movimentos de sapateado aleatórios, com a participação especial de um negro de chapéu.
Ganhou dezenas de prêmios e foi eleita a maior obra cinematográfica daquele século (coincidentemente, foi no mesmo século em que o cinema foi extinto) e é tido como um grande exemplo de como qualquer coisa podia ser aclamada por um nicho do público, se inventassem uma boa desculpa para isso.
- Che Guevara, tido como um dos primeiros homens com cavanhaque e cabelo comprido a não serem considerados homossexuais, segundo historiadores (antes da profissão ter sido banida pelos Lagartos, que transformaram todos em autores de novela) um dos responsáveis pelo grande ascensão do metrossexualismo no século 20, movimento que dificultou bastante a identificação da sexualidade de um homem e causou a Grande Revolta dos Pais Indignados em 2151, ano também marcado pelas guerra Pseudosexual, onde foi definido novamente que o aceito pela lei seria apenas a união entre um homem, uma mulher e, as vezes, um ornitorrinco, se todos estivessem de acordo.
De qualquer forma, os habitantes de Matematthykka, um dos poucos lugares do universo conhecido (Na verdade, existiam pelo menos oitenta e nove universos conhecidos, cada um com seu mapeamento de planetas e galáxias, mas um não sabendo da existência do outro) onde os lagartos não haviam destruído qualquer obra cultural que não fosse produção própria, eram os responsáveis pela rebelião.
Lagartos nunca entenderam muito bem os malditos numerozinhos que envolviam um cálculo, mas sabiam da importância do dinheiro, portanto deixaram para os habitantes desse planeta os problemas com números e equações, e davam um tanto a mais de liberdade para eles, se comparados com os outros lugares na galáxia onde humanos viviam.
Claro, os moços e moças inteligentes dali ainda tinham que trabalhar como escravos para manter tudo em ordem, e vez ou outra algum grupo de pessoas morria para servir de exemplo, mas contanto que o dinheiro continuasse entrando para os lagartos, a maioria dos humanos do planeta ficaria bem, ou pelo menos viva.
Mas esse seleto grupo, essa rebelião de pessoas que se consideravam superiores, não estava satisfeita com a situação. O domínio Lagártico não era algo agradável, e sentiam saudade da época em que podiam adquirir obras culturais que não envolvessem lagartos fazendo lagartisses, com as piadas ruins e, o pior de tudo, aquela câmera horrível, comum nesse tipo de produção, com ângulos desleixados e cortes amadores. Isso os irritava profundamente.
Sentiam saudades dos neurofilmes clássicos, onde geralmente só haviam 3 dimensões e nenhum sentido, mas tudo tinha algum motivo por trás(geralmente inventado por eles próprios) e sempre se divertiam zombando os que não entenderam.
Céus, até das odortransmissões eles sentiam falta, onde cheiros
contavam histórias e peidos eram tidos como obra de tarde.
Mas o humano Comofas não era como a maioria dos outros membros dessa Rebelião.
Ele era sério. Considerado chato, desinteressante.
Vestia-se de maneira comum, arrumada. Não gostava das besteiras antigas que os outros cultuavam. Achava os roteiros uma tremenda merda. Mas ele na verdade não gostava de muita coisa mesmo, então não se importava com isso.
Aquelas pessoas da rebelião compartilhavam com ele o ódio pelo império lagártico. Comofas simplesmente não suportava a idéia de toda a sua raça ser subjugada por uma cultura alienígena tão burra e simplória.
Isso ofendia seu ser profundamente e, todos os dias, de uma forma ou de outra, era lembrado que todo o trabalho que fazia com números e que todos os impostos que pagava eram para o bem de um líder verde e estúpido.
Fosse outra pessoa, não necessariamente humana ou bondosa, mas ao menos inteligente, ele não se importaria tanto. Poderia até ser um velho mesquinho e corrupto que dominasse a humanidade, já o deixaria satisfeito. Ao menos não seria alguém que não sabe a diferença entre diretrizes de nexo compacto e um chipanzé, algo que Comofas havia aprendido desde cedo.
“Diretrizes de nexo compacto não podem tentar te matar.” – Concluiu ele, rifle fumegante em braços, peito ofegante, feridas pelo corpo e sabendo que agora tudo estava bem, e o resgate viria.
Foi uma viagem bem estranha ao NeoBrazil a que fez com a sua família naquelas férias.
Mas isso tudo era passado, e agora sua vida, após os anos de estudo naquele planeta, outrora o maior centro de conhecimento numérico da galáxia, era fazer cálculos para os lagartos. Inteligências Artificiais serviriam para realizar esse tipo de trabalho, mas de alguma forma supersticiosa, os invasores não confiavam nelas. Aliás, não costumavam confiar em nada que não fosse verde, não tivesse cauda, nem dentes afiados ou um senso de humor que não considerasse a palavra “orangotango” engraçada.
Comofas saiu do seu trabalho entediante uma hora mais cedo, colocando uma breve seqüência de códigos numéricos no sistema que serviriam como prova matemática de que, na verdade, ainda estaria trabalhando e, inclusive, faria hora extra naquele dia.
Sempre fora bom os números, e enganar maquinas era algo que fazia com perfeição. Uma vez, quando uma estudante Borgtrônica fez intercambio em sua escola, conseguiu convencê-la a fazer sexo com um amontoado de “0” e “1” escritos num pequeno monitor colocado estrategicamente na frente do seu globo ocular direito, com a ajuda de um martelo, um anão e um pouco de imaginação. Foram os melhores 5 minutos de sua vida, e nunca mais o chamariam de virgem.
Assim que saiu do grande prédio onde trabalhava, atravessou algumas quadras com a ajuda dos tubos de teleporte que se encontravam na esquina de cada uma delas.
Nunca havia entendido muito o sentido daquelas coisas, que praticamente serviam apenas para que a pessoa não tivesse que atravessar a rua, e não levavam mais do que alguns metros de distancia. A verdade é que ninguém dirigia no chão já fazia muito tempo, e as naves cobriam o céu na grande metrópole do planeta de Mathematthykka, onde todos os cientistas e pensadores eram enviados para trabalhar em prol do Império Lagártico.
Chegou finalmente na porta de uma casa, sem nada que chamasse a atenção a não ser um holograma colocado ao lado da entrada, com um lagarto sorridente que dançava de um lado para o outro enquanto movia seus braços e pernas de uma maneira abestalhada.
Comofas tirou do bolso dimensional do seu casaco caro um sanduíche de atum e deu algumas mordidas. Talvez tivesse chego cedo demais.
Talvez não. Mas sentiu vontade de morder um sanduíche de atum, e assim o fez. Guardou-o de volta no bolso e então finalmente deu três batidas na porta de metal.
“Olá! Seja bem vindo A Rebelião Humana Contra os Lagartos! No momento, estamos com vinte e dois membros no recinto. A lotação máxima da casa é de duzentas e dezessete pessoas! Você está autorizado a entrar se souber responder a pergunta que eu lhe fizer! Caso não saiba a resposta ou se recuse a respondê-la, será atingido por uma rajada de raios fatais!” – Disse uma voz animada e alta demais para o seu próprio bem, vindo de um transmissor que abriu-se imediatamente na sua frente.
“Tá bom, faça a pergunta.” – Disse Comofas, sentindo vergonha alheia daquela situação, olhando para os lados para ter certeza de que não havia ninguém por perto.
“Excelente! A pergunta é: Qual o melhor, embora menos conhecido, neurofilme do também escritor Jorras Desluxo?”
Comofas ponderou sobre o assunto durante alguns segundos.
A principio, só conseguia pensar no quão retardada era aquela pergunta, aquela situação, aquele lugares e as pessoas nele. Mas respirou fundo, e aceitou que aquela era sua única chance de contribuir para o fim do império que o ofendia de maneira tão íntima e pessoal.
“Certo.. Já vi alguém falando sobre isso.. Jorras Desluxo era um bigodudo qualquer que escrevia a respeito de temas polêmicos, como auto-aborto com a ajuda de dispositivos de viagem no tempo, clonagem para fins sexuais e a diferença entre bolachas e biscoitos..” – Dizia para si mesmo, tentando recordar da quantidade de conhecimento inútil que havia adquirido durante outras reuniões da Rebelião.
Lembrou-se da garota mais bonita desses encontros, que também era fã desse cara. Ela tinha um cabelo não muito comprido, mas que formava conjuntos de fios parecidos com tentáculos, que costumavam se mover, geralmente para coçar alguma parte do seu rosto, segurar um cigarro ou simplesmente assustar as pessoas próximas. Geralmente usava camisetas animadas de autores famosos, com um ou outro trocadilho, e uma saia feita, segundo ela, de lágrimas cristalizadas de dependentes químicos, o que considerava dar sorte.
A verdade é que ela, como a maioria dali, gostava de chocar e impressionar. E o mais irônico de tudo é que essa garota, como muitas outras dali, sentiam uma atração estranha por Comofas, que sequer fazia idéia disso.
Não que fosse bonito ou interessante.Talvez fosse porque ele era quem mais se destacava no lugar, com toda sua normalidade. Muitas até passavam horas discutindo se o jeito do rapaz e o seu estilo não eram parte de algo maior, uma campanha pessoal contra a normalidade, na forma da utilização de roupas e comportamentos considerados padrões justamente como forma de protesto irônico.
É claro que não era nada disso, mas ninguém sequer fazia idéia.
De qualquer forma, Comofas pensava na garota. Para ele, ela só o olhava com aquele jeito desinteressado, e jamais trocara uma palavra consigo.
Sentia-se meio deslocado naquele lugar, mas nem por isso inferior.
Achava-se mais inteligente que a maioria dali, mas considerava-os úteis por participarem de uma organização que iria ajudá-lo. E também gostava dos bolinhos que eram servidos, não podia negar.
O chá também não era de todo mal.
“Foda-se o chá e essa garota, eu preciso é da resposta!” – Disse ele.
“Resposta correta. Seja bem vindo.” – Respondeu a porta, abrindo-se imediatamente.
Comofas resolveu não pensar sobre o assunto, apenas entrou e deixou do lado de fora qualquer razão ou sentido.
Lá dentro não haveria lugar para isso.
E enquanto isso, na entrada secreta do local onde seria a reunião da Rebelião, ao lado da porta que Comofas acabara de atravessar, o holograma do lagarto dançava, obviamente também transmitindo tudo o que acontecia ao seu redor para os espiões Lagartos, que se sentiram extremamente desapontados com o acontecido.
Queriam que o homem errasse a resposta e fosse torrado pelos raios da porta, como havia acontecido com os últimos quatro que tentaram ir naquela reunião.
“Eu te digo, Hessssmussssss, esssssesss carassss vão acabar sssse dessssstruindo ssssem a nossssa ajuda.” - Comentou com o parceiro, ambos debruçados em frente ao projetor que emitia a transmissão em 360°.
“Podessss crer.” – Respondeu o outro, que havia ficado com uma súbita vontade de tomar chá.