COMENTAIRÔNICOS XVIII

COMENTAIRÔNICOS XVIII

Como elas falam, todas a um só tempo!

Eu nem entendo como elas se entendem...

E nem sequer suspeito se compreendem

umas às outras, nesse contratempo...

Talvez nem seja, nessa gritaria,

escutar umas às outras importante.

Apenas falam por lhes ser interessante

a própria voz que o próprio ouvido ouvia...

E sempre tive dúvida, afinal,

se elas mesmas, nesse carnaval,

do que disseram têm qualquer noção...

É como se o importante gritar fosse

e cada qual maior esforço esboce

para vencer em tal competição!...

COMENTAIRÔNICOS XIX

Recordo bem as palavras de meu pai.

Teria sido uma vida bem bonita,

se suas ações tivessem igual dita

qual sua oratória, que na mente me recai

e escorre ao coração e depois vai

mais fundo ainda e meu agir incita...

Mas eu me sinto contrário a tanta grita,

e se não creio, minha oração não sai.

Mas sempre fiz o que fazer me comandava,

mesmo quando ele próprio não o fizesse.

"Faz o que eu digo e não faz o que eu faço",

quantas vezes claramente declarava...

E assim me porto qual se Deus não esquecesse,

mesmo sem ter esperança desse abraço.

COMENTAIRÔNICOS XX

Dizem que, no sepulcro, Jesus Cristo

desceu ao Hades, para o povo misto

que estava encarcerado, libertar:

foi pregar aos espíritos em prisão!...

Será preciso, pois, estar-se morto?

Eu já me sinto preso neste corpo.

Ninguém me busca desencarcerar:

crucificado estou em minha paixão!...

Esta é a parte mais estranha desses credos:

que o Deus Filho se arqueasse contra a lança,

que vertesse água e sangue de Seu lado,

para afastar os mais antigos medos

e fosse à multidão que a morte alcança,

sem que meu vivo coração tenha lembrado...

KASIPHIA I

é tarde para um sonho. a madrugada

enjambra a pouco e pouco o dealbar.

a noite sai da praia para o mar,

como a maré do sono, em disparada.

é a hora em que, final, a derrocada

me leva para o sono, em baixamar.

já está mais perto da noite terminar

que dos momentos em que pertenço à fada.

as horas vãs do sono eu repudio:

se pudesse, nem ao menos deitaria,

quisera um dia de cento e tantas horas,

em que fizesse mais do que já crio

e em que meu corpo ao porto levaria

que compensasse o sono das auroras.

KASIPHIA II

eu dou aval ao vento que repasse

meus sonhos para as contas de outra gente:

depósitos de mágoa, indiferente,

depósitos de luz que me espalhasse.

eu dou aval à chuva, que marcasse

em outras vidas, a mesma brotação

que já viveu em mim, fecundação

inseminada no sonho que me alçasse.

e busco a vida qual receptáculo

em que enjaule esse mares de ilusão,

em que me vista das cores do arco-íris

e me dedico a dedilhar tal espetáculo,

em que não vivo, porém faço tradução

da expressão do olhar com que me mires.

KASIPHIA III

não há foguetes marcando o meu caminho:

perlustro devagar o plenilúnio,

sem esperar reunir qualquer pecúnio,

que a vida exige muito mais que alinho.

pois quanto mais me esforço, em comezinho

labutar sob a luz do plenissólio,

tanto mais em despesas me desfolho:

melhor vivera o meu viver sozinho...

mas hoje em dia, contudo, é impossível

o viver do estagirita ou do ermitão,

pois nem sequer existem mais desertos.

exceto onde o alimento não é possível,

bem pouco duraria essa ilusão,

com a mente e o peito inteiramente abertos.

KASIPHIA IV

Há pouco a descrever. Falei de tudo,

nos milhares de versos anteriores,

de amor e ódio, certezas e temores.

O mundo é vasto e nele, não me iludo,

as coisas se repetem, neste estudo.

E até microcircuitos interiores,

os chamados "canônicos", seus labores

no cérebro repetem. E, contudo,

por mais padronizada, a mente humana

sempre produz algo de surpreendente

e a mim mesmo eu espanto, com frequência,

em meu jeito de agir, que não me engana,

no qual procuro ser independente,

sem me entregar ao domínio da indolência.

KASIPHIA V

Não é fácil assumir responsabilidade

por uma vida inteira de fracassos,

por permitirmos que falsos abraços

nos levassem a viver em falsidade.

É bem mais fácil lançar culpabilidade

àqueles que orientaram nossos passos

e nos pearam com outros tantos laços,

para que lhes cumpríssemos vontade.

Talvez não seja fácil, mas real

é tal constatação. O treinamento

que nos deram podia ser rompido

e, se antes não o foi, e o véu do mal

prevaleceu em tal comportamento,

fomos nós que merecemos ter sofrido.

DONS GRATUITOS I

Existe algum motivo que os deuses adorados

Pelos humanos fossem, se a vida fosse eterna?

Por que madura o óvulo no ventre de uma terna

Donzela adolescente, senão por consagrados

Ideais reprodutivos, que a deusa Biologia

Um só espermatozóide escolhe preservar,

Enquanto a multidão condena a ressecar,

Por que somente num se funde e, em sintonia,

Produzem nova vida, estuante de esperança?

Enquanto a mesma vida recamam de estertores

Esses deuses solertes, por nos atribularem

Com pragas e desditas, rigor que não descansa...

Os deuses são sagazes: pois só nos dão as dores

Para lhes sermos gratos, depois que nos passarem.

DONS GRATUITOS II

Tomo o crânio entre as mãos. Órbitas vejo

Que me contemplam, vazias e sem mente.

Tiveram antes um hóspede presente

E contemplaram da vida inteira o ensejo.

Quem sabe se esses dentes para o beijo

Não serviram de apoio bem frequente

Ou se os forames laterais da gente

Escutaram o som de ardor ou pejo,

Estimulando os neurônios e a esperança...?

Quanto aspiraram tais fossas nasais!

Tantos odores que o mundo já esqueceu...

Mas que importância tem, se já descansa

Para sempre esse crânio no jamais...?

Apenas sei que outro crânio ainda é o meu.

DONS GRATUITOS III

Se duvidas da vida, pensa em água:

Ela se infiltra em todos os buracos,

Consome as bolsas, pinga pelos sacos

E acaba superando a própria frágua.

Se duvidas da vida, lembra a raiz:

Também ela se infiltra em cada fenda

E, qual o tempo, por longa seja a senda,

A rocha racha, como sempre quis.

Se a água mole e a raiz tão delicada,

Cedo ou tarde conseguem o que querem,

Cabe a nós insistir, sem força bruta...

É a paciência que causa a derrocada

Dos piores obstáculos que esperem,

À nossa frente, nessa eterna luta...

DONS GRATUITOS IV

Se os bens da Terra dons gratuitos fossem

E a todos dessem só o trabalho de colher

E se passasse em jogos, banquetes e prazer,

Em que os malefícios só levemente rocem,

Se tudo fosse fácil, gentil e agradável

E os frutos nos viessem, só de estender a mão,

Jamais construiríamos esta civilização

Que com todas as antigas é incomparável.

Eu só me espanto quando escuto a gente

Dizer que deveríamos à vida natural,

Retroagir, que mais afirmam ser saudável...

E, contudo, basta olhar sem grande mente,

Para os selvagens de nosso mundo atual,

E perceber quão sua vida é vulnerável.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 04/09/2011
Código do texto: T3200979
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