A bicicleta
O ronco insuportável do marido, a mania de arrumação da mulher, os problemas financeiros, a incompatibilidade de gênios, a sogra que vai morar com o casal, o álcool ou o jogo, tudo isso e tantos outros problemas – reais ou imaginários, de fácil ou impossível solução, comuns ou inusitados – são causas de eternas discussões entre casais e podem, até mesmo, levar à separação definitiva.
No caso em questão, o pomo da discórdia foi uma simples bicicleta – simples para mim ou para qualquer outra pessoa, mas não para o dono, que a trataria a pão-de-ló, caso bicicleta se alimentasse, e que lhe confere tratamento igual ao dispensado a um membro da família.
Como dizia, trata-se de uma simples bicicleta: duas rodas envolvidas por pneus, dois pedais, um selim e um guidão, tudo isso montado sobre um quadro, cujo resultado final serve à locomoção mecânica de seres humanos que não querem usar os próprios pés na trivial caminhada ou não dispõem de veículo motorizado que vença as distâncias com maior eficiência e comodidade.
Ocorre que a bicicleta em questão morava (?), dormia (?), enfim, fora colocada na área de serviço do apartamento, ocupando substancial espaço, atrapalhando a passagem e dificultando a limpeza, o que irritava profundamente a dona da casa, mas não o marido, que não via nenhum problema no local encontrado para ancorar sua máquina.
A mulher alegava que o prédio dispunha de bicicletário, onde os demais moradores guardavam suas magrelas.
-Como? AQUELA bicicleta, num bicicletário, amontoada com todas aquelas máquinas sujas e enferrujadas? Não, isso nunca! – vociferava, ciumento, o dono da preciosidade.
- Então poderíamos pendurá-la no teto, num canto em que não atrapalhasse tanto – tentava argumentar a esposa, já pela enésima vez. E a resposta era sempre contra:
- Pendurar? Quer que amasse o quadro e entorte a roda? Nem pensar.
- Mas então vamos levá-la para a casa de praia, que terá mais utilidade do que aqui.
- Você quer que minha bicicleta seja completamente corroída pela maresia? De jeito nenhum.
Novas alternativas eram inventadas pela mulher, ou aproveitadas de opiniões formuladas por outras pessoas, para quem ela se queixava: vender, rifar, doar, levar para outro lugar. Nada disso era aceito pelo dono da preciosa máquina, que continuava alheia à problemática que causava, descansando no lugar que lhe fora reservado e recoberta por uma capa plástica, para não pegar poeira.
Um dia a mulher deu-lhe o ultimato:
- Ou a bicicleta ou eu. Vou sair e, quando voltar, quero saber sua decisão.
Não demorou muito e ela percebeu que subestimara a paixão do marido por sua rival. Quando voltou, encontrou a bicicleta sobre a cama do casal, no lugar que antes lhe pertencia.
Ele tinha tomado sua decisão.