Empty Garden.

Era janeiro de 1983, à noitinha e eu estava sentado num dos bancos da praça da prefeitura em Araguacema, com meu cotovelo doendo depois de um tropeço “namoroso” (minha namorada me mandara catar cavacos). Estava eu ali, sentindo a brisa morna que sopra nesta época do ano, quieto no meu canto a observar a quietude da cidade, remoendo meus problemas. Elton John, através do som do seu Raimundo Dias, martelava Empty Garden em um piano, quando ouvi alguém assobiando uma canção, olhei pra o lado da esquina do seu Elias Bosaipo e vi o Edvaldo o Pomba, vindo em minha direção com seu jeito peculiar de andar; peito estufado parecendo um pombo (me ocorreu agora se o apelido dele era por isto), uma camiseta sobre os ombros desnudos e sob o sovaco, uma bola de pneu – assim que nós de Araguacema chamávamos as bolas de capotão - Ele me viu e veio até onde eu estava a cismar. Não sei se percebeu meu estado de espírito, mas resolveu puxar assunto com quem só queria ficar matutando.

- Manué, torrô ê ata!! - Gritou pra mim esta frase esquisita que nunca fiquei sabendo o que significa, penso que era algo na língua karajá.

- Chegou que dia, Aldir?

- Faz dias já

-Vai embora que dia?

- Sei não, tá chovendo muito e o Piranha não tá dando passagem.

...

Alguns momentos de silêncio:

- Quer apostar que eu faço quantas solinhas eu quiser com esta bola? (Solinha era o nome de embaixadinhas – Eita dialetozim esquisito aquele nosso!)

-Rum!

-Duvida?

- Quero apostar nada não.

- Então vou te mostrar assim mesmo.

E pegou a bola e começou a fazer embaixadas, curtinhas e rápidas alternando entre um pé e outro, ora jogando na coxa e voltando para os pés. Contei até umas 45 e perdi a conta. Já mais animado um pouco com aquela diversão continuei a observar a perícia dele até que ele deu um grito e parou depois de muitas e muitas embaixadas. Acho que se ele quisesse ficaria a noite toda naquela façanha.

Sentou sobre a bola na minha frente, apenas resfolegando um pouquinho e ficou um pouco quieto.

- Quer tentar?

- Rapaz, eu num consigo nem 10. Sou muito perna de pau.

- É fácil, basta saber. (dããaãã!)

-Pois é.

Um novo silêncio quebrado mais uma vez com outra pergunta:

- Sabia que além de embaixadinhas eu posso soltar quantos PUNS eu quiser?

- Hã?!?! Pum!?!?

-Pois é, se eu quiser solto uns quarenta.

- Ah!

-Quer ver?

-Eu não, tá doido!

Sem se fazer de rogado e mesmo sem minha anuência ele levantou-se deu umas duas batidas com a mão na lateral da barriga, sungou uma perna e começou a soltar “traques”. Peido mesmo, sabe? Incontáveis. Eu me afastei e comecei a dar risada daquela cena tão esquisita. Algum tempo depois, e é claro que não contei quantos traques ele queimou, ele parou.

Mais algum tempo de silêncio e sem aviso prévio ele mudou o rumo da prosa, uma prosa doida, diga-se:

-Quero ter um monte de filhos só pra botar neles os nomes que gosto. Tenho cada um mais bonito que o outro.

- É?

- É. Tem uns nomes que acho muito bonitos e ninguém vai ter igual.

- Por exemplo?

- Instituto.

- Instituto!?

- É. Ins-ti-tu-to. Bonito?

- Prefiro IPASGO que é mais completo. Já vem com nome e sobrenome. (Instituto de Previdência e Assistência Social de Goiás)

- Ipasgo é feio. Tem também Substituto que é muito bonito. Diferente.

- Substituto!?

- Isso. Subs-ti-tu-to.

- Diferente é mesmo, Pomba.

- Outro que gosto é Porangatu.

- Porangatu!?

-Só Porangatu ou Porangatu-Go?

- Só Porangatu mesmo. É mais bonito.

- E mais curto né?

- Rapaz, e Protocolo! Pense num nome bonito?

- Protocolo? (eu já estava parecendo surdo. Ele tinha que repetir todo nome).

- É, Pro-to-co-lo.

- Carimbado em uma ou duas vias?

- Como?

- Nada não, esquece.

Eu olhava pra ele pra ver algum resquício de brincadeira, mas ele evidentemente falava a sério, só eu me divertia, e com isto até eu comecei a considerar a possibilidade de um ser humano ostentar um nome destes.

Agora eu ouvia Wigwam do Bob Dylan vindo do seu Raimundo Dias.

Mais uns momentos de silêncio e lá vem ele de novo:

- Hospital também é muito bonito.

-Hospital?

- É, Hospital.

- É no mínimo raro.

-É. Ou pode ser também Hospício. E neste a gente pode por Hospício Simplício pra ficar mais chique. Simpósio também me agrada.

- Tá querendo ter quantos filhos?

- Sei lá!

- Será que no cartório eles vão aceitar esses nomes bonitos?

- Quem vai criar os meus filhos eu ou o Cartório?

-Acho que você.

-Falando nisso vc me deu uma idéia. Cartório também é um nome bonito. Posso colocar composto. Por exemplo: Cartório Protocolo, será que combina?

- Tem tudo a ver. Cartório e Protocolo nasceram um para o outro e fica até mais fácil no caso de vc querer carimbar alguma via.

Ele me olhou meio torto, talvez querendo saber se eu estava mangando dele.

Mais uma pequena pausa... E ele com um olhar distante:

- Vai ter um que vai ganhar um nome internacional.

Eu nessa hora gelei! Se os brasileiros já eram exóticos imaginem um internacional.

-Sério? Perguntei meio com medo da resposta.

-É...

Dei um tempo pra me preparar pra resposta e perguntei:

-E como vai se chamar esse, LAPD ou NYPD?

Ele me olhou sem entender.

- Êipidí? Pidí o que?

- Nada... Então, qual vai ser o nome?

Ele fez uma pausa pra criar suspense, juntou o indicador ao polegar formando um “O” e disse movimentando a mão ao som das sílabas, como um maestro:

- PETTYBON – PET-TY-BON.

- Pettybon? Pettybon é nome de biscoito rapá.

- Eu sei. Mas eu acho bonito. Assim meio internacional.

-Por que não coloca em outro, Claybon Cremoso? É internacional também.

-Isso é nome de margarina. Aí vão “mangar” do meu filho na escola: Vamo passar o Margarina no pau, digo, no pão!

- É verdade, há esse risco. E Pettybon?

-O quê que tem?

- Vai ser nome de menino ou menina?

-Menino

- Na escola vão mangar dele.

- Mangar que jeito?

Eu disse, meio cantando, imitando as crianças quando estão mangando das outras:

-Vamo comer o biscoito do Pettybon-on, vamo comer o biscoito do Pettybon-on! –

Ele ficou meio triste com a idéia.

- Será?

-Certeza.

-É mesmo... Não vai dar certo. E era o nome que eu mais achava bonito.

- Pena, né?

-É.

Mais um tempo pensativo e falou:

-Vou ter que achar outro nome internacional.

-Qual seria?

-Não sei ainda. Quando eu achar eu te digo.

- Pense na possibilidade de um nome alemão. Talvez, Achtung. É bem forte.

- Rum!

E ele, talvez percebendo que meu estado de espírito tinha melhorado, saiu andando rumo ao boteco do Jesuíno e, debaixo do pé de sete copas, deu um pulo com uma perna só, talvez pra queimar mais um traque, deu mais um grito com a enigmática frase:

- Manué, torrô ê ata!!

E eu, já mais animado, fiquei olhando ele se afastar e assim que sumiu do meu campo de visão fui pra casa dando risada e matutando como seriam pessoas com aqueles nomes.

Os anos se passaram eu o vi ainda por poucas vezes, mas ele nunca me disse qual seria o nome substituto (com minúscula mesmo), se é que ele achou outro tão bonito quanto Pettybon.

E há algum tempo atrás ele se foi definitivamente para o outro lado... Não sei se ele conseguiu realizar o desejo de ter filhos e se os teve, se teve a ousadia de batizar-lhes com tais nomes.

Assim era o Pomba. Bom de bola, galhofeiro, maluco, músico e poeta.

Aldir Lyra Zuma
Enviado por Aldir Lyra Zuma em 04/08/2011
Código do texto: T3138907
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