No final dos anos 70 eu tinha uma Brasília,não exatamente amarela,pois pendia mais para cor de gema batida e que,por ser mais usada que telefone de delegacia,de vez em quando dava uns probleminhas,poucos,mas,irritantes.
Foi assim naquela memorável noite em que, estando eu em São Paulo,templo brasileiro das artes,resolvi aproveitar o ensejo e tomar aquele banho de civilização,que o nordestino,povo mal educado e mal instruído,costuma tomar nessa sofisticada metrópole.Fui ao Teatro.
Na saída,chovia como Deus mandava,como é comum,nesta cidade.De saltos altos e roupa de festa não quis me arriscar a ficar ensopada.Procurei uma marquise que não havia.
A Brasília estava estacionada perto.Tirei os sapatos e destemidamente porque nordestina é mulher macho,sim sinhô,corri para o carro.
Entrei,respirei aliviada e liguei o motor.Que não funcionava.Virei a chave umas três vezes e...nada!Parecia marido sessentão pré-viagra.
É a ignição,pensei.E agora???A rua estava mais deserta que o Saara;esta hora todo mundo já tinha saído dos cinemas e teatros,procurando o conforto e o calor dos restaurantes e barzinhos.
Numa cidade onde ,a esta hora,até guarda noturno é assaltado,mal as casas de espetáculo fecham não se vê viv’alma nas ruas;e até morta’lmas,também,que defunto também foi gente.
Procurei uma saída. Sempre tem,não é só em filme americano.Numa boa hora me lembrei que era sócia do Touring Club.Abri a bolsa e tirei a carteirinha salvadora.Faz tempos que pagava e nunca precisei, apesar de viajar tanto de carro.
Desesperada, nesta era pré-histórica onde o celular ainda era ficção, corri dois quarteirões até achar um boteco imundo,daqueles que vendem esfia e suco de laranja com gosto de nada.
Perguntei:-Tem telefone?
O português mal encarado atrás do balcão e o empregado chinês que lavava o chão,mudos.Apenas me olhavam com curiosidade.
-Por favor,preciso chamar o Touring;problemas com o carro.
Um telefone materializou-se em cima do balcão saído do nada.
-Vai demorar?Perguntou o galego.
-Não ,é rápido.
Procurei no catálogo fedendo a gordura e com dificuldade achei o raio do número que,discado,não atendia.Normal!Mas,continuei tentando,que remédio!?
Depois de várias tentativas e nenhuma desistência e vários olhares de esguelha do dono do estabelecimento e alguns sorrisos amarelos,meus,alguém atendeu.O cara perguntou se eu tinha pago as parcelas regularmente,qual o número da inscrição,qual o defeito do carro,número da placa e outras coisas sem nenhuma importância;pediu licença,foi conferir os dados e deduziu que eu tinha,sim,direito a reboque.Mas,como meu carro não estava inscrito,teria que esperar o reboque chegar para conferir os documentos.
-Como meu carro não está inscrito?A dona sou eu!
-A senhora está inscrita,o carro,não;tem que esperar o socorro para mostrar os documentos do veículo.Disse assim mesmo,sofisticadamente – veículo-Porra!Que cidade civilizada sô!
Agradeci ao português,tomei uma água mineral, não aceitei troco e corri para o carro.Depois de quase duas horas de espera quando o prometido seria cerca de quarenta e cinco minutos,deixei o carro,furiosa,dizendo todos os palavrões que sabia na língua portuguesa e outros mais.
Procurei o paraíba ,porteiro do prédio mais próximo,dei-lhe um cala – boca e pedi-lhe que ligasse para meu número caso o reboque chegasse;um pequeno favor de conterrâneo para conterrâneo,pois,para paulista todo nordestino é baiano ou “paraiba”.
Peguei um taxi e fui prá casa esperar o telefonema do socorro.
Vítima da minha inocência ferrei no sono e fui acordada pelo toque do telefone,ouvindo uma voz antipática me dizer:
-Dona Miriam,o carro não pode ser rebocado.E,mordaz:
-A senhora deixou o carro trancado e nos deu informações erradas.
A porra bem-criada que soltei o cara não ouviu visto que já tinha desligado o telefone na minha cara.Xinguei deus e o mundo,a desorganização desse paíseto de merda onde tudo era difícil ou dificultado,onde o cidadão nunca tinha vez,só tinha voto.Agora ,com a ditadura,nem isso.Coisas assim jamais aconteceriam nos States.
Como não estava nos States,fiz café,apanhei um croissant e sentei para ler os jornais;ainda mais deprimida,aticei tudo longe e me deitei no sofá,quase chorando.Caymmi é que estava certo,ai que saudades tenho da Bahia!
Mais relaxada,às 8 da matina,liguei para meu amigo e compadre Luis Artur que me arranjou um reboque particular,de um conhecido.
Quando cheguei em frente ao teatro, o carro não estava lá.
-Foi ladrão,com certeza!Aquele paraíba safado deve ter dado as coordenadas e a quadrilha levou meu carro,gritei indignada.
O porteiro do dia,cheio de má vontade acordou o porteiro da noite que disse o nome de minha mãe ,assim que,fora de mim, o acusei de parceria com o crime.Depois de alguma discussão que já estava cheirando a peixeira e contando com a oportuna intervenção do meu compadre,o porteiro falou:
-Era quase sete horas quando um senhor chegou,abriu o carro e ligou o motor.Eu corri e disse a ele que o carro era seu,que me deixou tomando conta.Ele riu e me mostrou os documentos,gentilmente.O carro era dele mesmo,pô!
-Envergonhada e prevendo o pior –mais uma mancada das minhas –corri para a rua.Do outro lado da calçada,a poucos metros dali estava um carro,parecidin’ parecidin’ com a minha Brasília velha de guerra.Tão parecidinha que era a própria.Com as medidas do Bonfim e tudo!
Abatida,desculpei-me com o conterrâneo,agradeci ao compadre e fui prá casa.
Enquanto dirigia no trânsito já caótico àquela hora,pensei no meu pai,grande filósofo que dizia:
-Carro e mulher se troca de cinco em cinco anos...
Sábias palavras!