o cabo pimentel.
era o cabo mais legal da tropa.
alegre, brincalhão, solidário.
moreno, baixo, cheio de moral.
sempre pronto para ajudar.
um dia fizemos um hino em sua homenagem:
¨quando eu deixar esse meu quartel levarei saudades
do
cabo pimentel.
quando eu largar esse batalhão guardarei seu nome no meu coração.
pimentel, pimentel, acabou o papel.
não faz mal, não faz mal,
limpa com jornal.
o papel tá caro,
caro pra chuchu,
vamos usar jornal
pra limpar o ... ¨
era bonito ver a tropa marchando e cantando a canção.
jovens de todos os tipos e classes sociais, com suas calças verdes, camisetas brancas, coturnos pretos, sempre muito bem engrachados.
espingardas empinadas do lado esquerdo do peito.
e os cabelos, cortados ¨tipo reco-reco. ¨
ele gostava, ria, incentivava e até comentava:
¨vocês são recrutas bacanas. ¨
marchava na frente da bateria, comandando-a:
¨avante, soldados, cabeça erguida, barriga para dentro, peito para fora
e viva o brasil ! ¨
obedecíamos-no sem pestanejar.
a tropa percorria o quartel inteiro, que era imenso, ladeiras íngremes,
curvas sinuosas, corredores estreitos que de repente se alargavam e davam num enorme pátio.
depois fazíamos flexões, mais de quarenta.
meus braços ardiam, de exaustão.
uma hora depois, já fatigados, ouviamos a nova ordem tão esperada:
¨bateria, descansar ! ¨
havia uma certa ciumeira entre os outros cabos
mas nada que provocasse conflitos sérios.
afinal, ele era querido por todos, até pelos oficiais superiores.
a canção era uma paródia de uma música natalina mas aliviava a ansiedade que sentíamos por servirmos no numa época tão difícil da vida brasileira.
afinal eram ¨anos de chumbo. ¨
ocorriam acusações, torturas, prisões de pessoas inocentes.
e nós ali, sem nada poder fazer.
cantávamos para esquecer.
¨pimentel, pimentel, acabou o papel. ¨
na verdade, queríamos chorar, não cantar.
éramos quase meninos,
retirados dos seus lares para cumprirmos uma obrigação militar.
não tinhamos ideia do que estava acontecendo.
nem uma consciência política formada.
muitos de nos estudávamos ou trabalhávamos.
uns poucos seguiriam a vida militar, por vocação ou necessidade.
afinal, havia ali casa, comida, roupa lavada.
¨na verdade a comida era horrível, intragável, uma gororoba, mas enganava o estomago.¨
eu mesmo pensava:
¨que saudade da comida da mamãe. ¨
o próprio pimentel nos confessava:
¨alguém tem que ser cabo,
não é mesmo ? ¨
e a tropa seguia cantando:
¨quando eu deixar
esse meu quartel
levarei saudades ... ¨
um dia pensei:
¨preciso arrumar um jeito de sair daqui. ¨
algo me dizia que aquilo era uma furada.
principalmente, quando ouvia um grito na rua:
¨soldado que mata estudante. ¨
aproveitei que meu avô foi ¨coronel do sertão¨
e se comemoraria o centenário do seu nascimento.
comuniquei ao chefe:
¨tenho que ir, capitão,
toda a minha família vai. ¨
ele me surpreendeu:
¨porque não me disse antes que seu avô foi coronel ?
teriamos dispensado-o do exército. ¨
e concluiu:
¨vá, e traga-me uma garrafa de cachaça nordestina. ¨
concordei,
imediatamente:
¨combinado,
capitão. ¨
na verdade
foi uma armação.
acabei não comparecendo às festividades.
passei um mês indo à praia.
voltei vermelho como um camarão.
todos notaram.
o capitão olhou-me de cima à baixo e indagou, desconfiado:
¨cadê minha cachaça ? ¨
fiquei mais ruborizado do que já estava.
¨está em casa, capitão !
amanhã trago-a sem falta. ¨
chegando em casa peguei uma garrafa da cachaça mineira
da cidade de cláudio, interior de minas, que tinha guardado na cozinha.
retirei o rótulo.
peguei um outro papel.
escrevi na maquina de escrever:
¨cachaça nordestina ¨
e colei na garrafa.
no outro dia levei-a para o capitão:
¨aqui está sua cachaça. ¨
o capitão recebeu-a alegre:
¨obrigado, recruta. ¨
até hoje não sei se fez ¨vista grossa¨ ou não entendeu a fraude.
nunca voltei para perguntar.
pouco tempo depois dei baixa do exército.
ao sair deparei com o cabo pimentel.
nós despedimos e cantamos juntos a antiga canção:
¨ pimentel, pimentel, acabou o papel.
não faz mal,
não faz mal,
limpa com jornal.¨
dei-lhe um abraço.
duas lágrimas rolaram pela sua face triste.
disse-lhe adeus.
nunca mais o vi.