Ô passeiozinho!

O rapaz que estava na direção da celebração naquela noite avisou no final:

- Semana que vem vamos falar sobre "o crente no lugar errado".

Aí, eu, minha irmã e meu cunhado saímos da igreja e fomos pra casa. Detalhe: meu cunhado é um dos "três patetas na Amazônia" (o texto).

Na "semana que vem", em um domingo, meu cunhado, à tarde, teve uma ideia:

- Vamos levar a Amiga para um passeio na estrada?

- Vamos! OBAAAAA!  

"Amiga" era uma amiga da minha irmã e do meu cunhado. Não lembro o nome dela, isso foi há mais de dez anos e eu nunca mais vi a moça desde aquele tempo. Acho que nem eles dois. Depois do que aconteceu naquele... ãh... passeio, se eu fosse ela também sumiria.

Bom, a Amiga estava com um problema conjugal muito sério, quase se separando do marido. Eles têm um filho que, naquele tempo, deveria ter uns quatro anos. Para tentar ajudar a moça a se distrair, arejar as ideias, meu cunhado resolveu convidá-la para o... p a s s e i o.

Os filhos da minha irmã também eram pequenos: a mais velha tinha uns dez, o segundo uns três e a mais nova, uns dois. A maior, para sorte dela, não tinha se comportado bem e ficou de castigo em casa. Ela não foi ao... passeio. Os dois mais novos foram.

Entramos no carro: eu, meu cunhado, minha irmã, meus dois sobrinhos e seguimos para a casa da Amiga, que já estava nos esperando com o filho. Eram cerca de duas horas da tarde.

Sete passageiros (ainda bem que não havia um oitavo) espremidos em uma Brasília, que não era amarela, seguem para o... aquilo o qual não se deve dizer o nome.

Trinta e cinco minutos depois chegamos em Rio Preto da Eva (RPE), um pequeno município dividido ao meio pela rodovia AM-10. A cidade fica a 75 km de Manaus.

(Uma parte de RPE)

(Balneário na cidade)

Paramos em um restaurante bem rústico para tomar um café regional. Acho que 99,99% das pessoas que vão a Rio Preto da Eva passam naquele restaurante.


(este restaurante é um dos locais preferidos para se tomar café da manhã em RPE)


(Tapioca com tucumã e queijo, uma das refeições mais procuradas pelos banhistas e turistas)


Eram umas quatro da tarde quando íamos pegar a estrada de volta, e meu cunhado diz:

- Vamos a Itacoatiara?

Ficamos meio sem certeza. Era tarde para rodar mais 230 quilômetros, principalmente sem avisar o pessoal de casa. Itacoatiara é o ponto final da AM-10. Depois dela, só o Rio Amazonas.

- Vamos.

Seguimos rumo ao infinito e além, curtindo o final da tarde na estrada, aquelas paisagens, os barrancos, o sol se pondo. De vez em quando víamos umas pessoas sentadas na beira da estrada: mulheres com crianças, homens... Minha irmã observou:

- O que será que essas pessoas estão fazendo sentadas na beira da estrada, aqui nesse lugar?

Quem sabe?

Chegamos em uma vila chamada Lindóia, não lembro se paramos. Lindóia fica cerca de mais de duas horas distante de Manaus e a uma hora de Itacoatiara.

(Lindóia é uma vila que faz parte do município de Itacoatiara, mas fica a mais de 100 quilômetros daquela cidade)

Chegamos em Itacoatiara às seis. É uma pequena e agradável cidade.



(Itacoatiara às margens do Rio Amazonas)

Foi aí que começou o... "aquilo o qual não se deve dizer o nome".

Logo na entrada um pneu furou. Procuramos uma borracharia, deixamos o carro lá e fomos ao restaurante mais famoso da cidade. Este da foto.



Umas oito da noite voltamos à borracharia, pegamos o carro e começamos a viagem de volta. No escuro, só com os faróis da Brasília, depois de mais ou menos uns trinta minutos, aconteceu de novo: o outro pneu colocado na borracharia furou. Quando meu cunhado foi fazer a troca, viu que o estepe também estava furado. Os caras da borracharia simplesmente haviam colocado um estepe velho no carro.

Ficamos rodando com o penu furado por uns bons e muitos minutos, até encontrarmos uma luz naquela escuridade. Alí TINHA que haver alguém que pudesse nos ajudar, ou pelo menos um pneu bom.

Meu cunhado arriscou a bater na porteira da casa, e a gente orando pra que desse certo.  Para nossa... ãh... sorte, apareceram uns caras. Eles estavam meio chapados, mas acho que deram um jeito não sei como, e seguimos viagem.

Não durou muito e pááááá... fffiiiiiiiuuuuuuu. Tá lá o pneu estourado. Desta vez não havia mais saída. Nem estepe, nem ninguém para ajudar. Só o breu da noite, o asfalto iluminado pelos faróis da Brasília e um pneu estourado que, depois de um tempo foi-se esfarelando, esfarelando, até sumir por completo. Ficamos literalmente no seco, rodando das dez à meia-noite com três pneus e um aro achatado. E achatando cada vez mais.

Estávamos naquela Brasília manca, no meião do mato, sem vestígio de civilização (ah, se eu pego o Restart). Não via a hora da gente virar Os Flintstones, todo mundo com os pezinhos pra fora embaixo do carro! YYYYYaaaba daba dooooooo!

Era um barulho estarrecedor de VRUUUUMMMMM, PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLA, VRUUUUMMMMM, PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLA, BLAAAMMMMM, PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLA, VRUUUUMMMMM, BLAAAMMMMM, PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLA, VRUUUUMMMMM, BLAAAMMMMM,PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLÁ-PLA. 

Aquilo virou uma tortura mental. Imagine rodar mais de duas horas com esse barulho? Ali, naquele lugar, e naquela hora? E com três crianças e uma amiga que havia ido ao... "passeio", para esquecer por um tempo os problemas com o marido. Bom, naquela situação, ou ela esqueceu mesmo, ou então deve ter pensado: "Onde foi que eu errei? Qual foi o meu pecado?".

Cansaço, fome, sede, medo e um aro barulhento que um dia foi um círculo. Se alguém duvida que existe roda quadrada, saiba que ela existe, nós a inventamos naquela noite.

Finalmente chegamos na Vila de Lindóia. Minha irmã, toda feliz, pensava que já era em Rio Preto da Eva. Tremeu os "beiços" quando eu disse que ainda não era.

A vila encerrava tudo às 23 horas, e já era meia-noite. Nenhuma borracharia estava funcionando. Havia uma na beira da estrada. O jeito foi acordar o pessoal de lá para ver se eles tinham um aro e davam um jeito nos pneus. Enquanto os borracheiros tapavam tudo quanto é buraco, uns milhões, procuramos um lugar para descansar. Não havia um cantinho, um tamborete.

O jeito foi sentar na beira da estrada, à meia-noite. Eu, as mulheres e as crianças. Minha irmã disparou:

- Agora eu já sei o que algumas mulheres e crianças podem estar fazendo sentadas na beira da estrada.

Dei uma risada. Então resolvi ir lá com meu cunhado ver como estava o conserto dos pneus. De repente, levantei a cabeça e vi o nome da borracharia, nada mais apropriado: "Borracharia Fé em Deus". Eu e meu cunhado demos uma gargalhada.

Depois de muitos buracos consertados, seguimos por mais de uma hora de volta a RPE. Então aconteceu mais uma: ficamos sem gasolina. Eram umas duas da manhã e a cidade estava desativada, não havia um posto funcionando.

Alguém disse que passaria um ônibus para Manaus e a gente poderia ir nele. Minha irmã sentiu uma fagulha de esperança, mas, enquanto isso, precisávamos de um local para elas e as crianças descansarem.

O único local foi uma estância na beira da estrada (eu já tô de saco cheio dessa beira). Só havia um quarto com uma rede e uma cama. As mulheres e crianças ficaram lá, enquanto os homens ficaram esperando o dito ônibus passar.

Ele passou, e passou rápido. Eu já ia subindo chamar a trupe quando o ônibus parou, meu cunhado foi falar com o motorista e o dito cujo disse que aquele ônibus não levava passageiros, só o próximo, depois de mais duas horas.

Quando eu disse isso pra minha irmã, que já estava preparando as coisas das crianças, ela, que já é branca, virou talco. Teríamos que passar a noite ali, para desespero dela.

- Vamos passar a noite aqui?

Minha irmã se desencantou. A Amiga, quase nada dizia, mas elas e as crianças pelo menos não iam passar a noite ao relento. Elas ficaram no quarto e nós dois dormiríamos na Brasília, nos revezando para vigiar o carro.

Dormi primeiro, e por segundo também. Quando meu cunhado me acordou para ele dormir, só lembro que resmunguei alguma coisa que não tinha nada a ver com a situação, um BLOGH RTOPHJNNN  EMMMR e dormi de novo. Mal lembro da cara dele me dizendo "mas o que isso tem a ver?".

O dia amanheceu. Meu cunhado, pau da vida comigo, foi logo procurar um posto. Voltou com uma triste notícia: a cidade estava sem gasolina e só seria abastecida depois do meio-dia. Quase tivemos um motim. Mulheres e crianças primeiro.

EU QUERO IR PRA CAAAAASSSSAAAAAAAAAAA!

Meu cunhado foi à cata de gasolina e encontrou uma alma benfazeja que vendeu uma gasolina que tinha de reserva pra ele. Por garantia, ele também arranjou outro pneu, desta vez intacto.

Partimos para Manaus. Já não aguentávamos mais ver tanto mato e tanta estrada. Chegando em Manaus desabou uma chuva torrencial, nem dava para ver os carros ao lado do nosso. Meu cunhado dizia todo encolhido: não batam no meu carrinho! Não batam no meu carrinho!

Minha irmã olhou as crianças:

- Oh meus filhinhos, tudo sujo!

Meu cunhado olhou de rabo de olho:

- Parece que estavam enterrados.

Não contive a risada.

A gente ia a uns 40 por hora por causa da estrada lisa e os pneus  cacarequentos. Deixamos primeiro a Amiga em casa. Meu cunhado disse:

- Na quinta-feira a gente vem te visitar.

????

- À noite, né? Disse ela.

- AHAHAHAH. É. À noite. Aí tu já sabe que horas a gente vem e pode sair antes da gente chegar.

KKKKKKKKKKKKKKKKKKkk. Tá bom.

Amiga e filho a salvo em casa, seguimos para a nossa. Ao chegarmos, minha mãe já estava na porta, aliviada por ver todo mundo inteiro. Sujos, mas inteiros. Quando entramos na casa, minha irmã entrou literalmente beijando e abraçando as paredes:

- minha casa, minha casa, minha casa!

Minha outra irmã foi dizendo:

- O que acont... COMO VOCÊS ESTÃO FEDENDO!

Não queríamos saber de nada. Só queríamos um banho e CAMA. Liguei pro meu trabalho explicando que naquele dia eu não ia aparecer. Minha irmã foi logo dando banho nas crianças. A mais velha, que ficou em casa, dando risinhos:

- RSRSRSRS. Que bom que fiquei de castigo.

Depois de um pouco descansado, fui direto pro chuveiro. Quando abri a torneira e senti aquela delícia de água escorrendo por meu corpo enlameado e fedorento, fechei os olhos e... VI AQUELE MONTE DE MATO E ESTRADA PASSANDO, PASSANDO, PASSANDO. Ninguém merece.

Não acredito que esse... p a s s e i o  ("aquilo que não se deve dizer o nome") foi um castigo, mas, depois de tudo calmo, todos descançados, meu cunhado, lembrando do... "aquilo..." falou:

A gente experimentou bem o que é "o crente lugar errado".