O RETORNO DOS BICHANOS / LA CHAUMIÈRE (A Cabana)

O RETORNO DOS BICHANOS III

Mas que fazer, quando é sobre os telhados

perfeitamente concretos, materiais,

que os dez por cento das almas animais

soltam lamentos tão desmesurados...?

Os sapatos assim mesmo são lançados,

mas não encontram seus alvos naturais:

almas felinas miam no jamais

e como podem ser fantasmas espantados?...

Assim ocorre que o sapato acerta

outro bichano qualquer, mais inocente,

que o equilíbrio perde e cai ao chão...

Morre o coitado assim, de boca aberta

e o resultado é mais que deprimente:

são dois agora a miar sem compaixão!...

O RETORNO DOS BICHANOS IV

Pior ainda é se o mau se arrepender,

para ser no paraíso recebido!...

É por seis almas de gato recebido,

de cada gato que levou a perecer!...

No éden, tem vontade de morrer,

só de escutar o coral assim nutrido!

Por uma orquestra de miados perseguido,

já nem consegue o meigo céu reconhecer!...

E quando o coro dos anjos vai cantar,

de forma mais maviosa, esse coitado,

traz os ouvidos tapados: nem escuta!...

Pensando até em se precipitar,

até o inferno, em que não há miado,

mas os berros dos danados em labuta!...

O RETORNO DOS BICHANOS V

Desse modo, seja bom com seus gatinhos,

ou terá deles bem feroz vingança!...

Talvez perdoem maldades de criança,

porém nunca de adultos mais mesquinhos...

E os miados lastimosos dos bichinhos

furarão seus ouvidos, como lança!...

O seu rancor qualquer lugar alcança,

em que procure se esconder de tais vizinhos...

O que eu não sei é se, no paraíso,

almas de gato fazem seu cocô,

multiplicando por seis seu mau odor...

Como não encontram terra nesse piso,

não podem enterrar o que restou

e os pés descalços pisoteiam seu pendor...

O RETORNO DOS BICHANOS VI

E se tens medo que comam teu canário

esses gatos que pulam tua janela,

melhor é instalar-lhe rija tela

ou os peixinhos caçarão do teu aquário!

Gatos já nascem com natural fadário

para caçar a mariposa bela;

mas depois que têm comida na costela,

deixam que os ratos devorem teu salário...

Não que pretenda de tua vida ser espelho,

mas é melhor não ter do que esperar amores:

nunca serão teus amigos dedicados...

E se desejas ainda o meu conselho,

cria em tua casa cachorros voadores,

que possam gatos perseguir pelos telhados!...

LA CHAUMIÈRE (Cabana) I (6 mai 11)

Entre as árvores de outono, uma cabana

se ergue tranquila, sem temor do fogo

mostrado pelas folhas, porque todas logo

ao solo tombarão, em meiga chama...

A luz do sol, aos poucos, já reclama

o seu espaço, sem pedido ou rogo

e o chão dessa floresta, num regougo

se afoga em cada raio que derrama...

Provavelmente, foi pavilhão de caça:

teto de ardósia, com águas-furtadas...

Não foi choupana para um camponês.

E a vidraça das janelas ainda passa

uma impressão de gentes abastadas,

que aqui só vinham em certos dias do mês...

LA CHAUMIÈRE II

Quando eu era menino e estudava,

bem diligentemente, o meu francês,

decorei versos de certa sencilhez,

em que uma outra choupana se cantava.

Passaram-se esses dias. Só aguardava

melhores notas, ao fim de cada mês,

sem pensar no futuro, que se fez

mais contra mim do que como esperava.

Mas a ninguém por isso irei culpar:

nem sequer me queixarei desse futuro

que hoje é passado e nunca foi presente.

Somente a mim ainda cabe conformar

o meu porvir de jeito mais seguro,

em alicerce que somente em mim se assente.

LA CHAUMIÈRE III

Contudo, alguém ergueu essa choupana,

de forma rústica só aparentemente.

Deve ter sido habitação frequente,

mas hoje, aos poucos, a solidão a clama.

Erguida assim, entre a vermelha flama

das árvores outonais, está presente

mais no passado tornado indiferente

do que ao futuro algum pendor reclama.

O teto azul-ardósia e as tábuas gris

permanecem resistentes e cuidados,

embora tábuas recubram duas janelas.

Não sei quem foi que descartá-la quis,

se por amores hoje abandonados,

se por jornada final para as estrelas...

LA CHAUMIÈRE IV

Ainda resiste, qual acusação

que permanece após um julgamento,

embora decidido a bom contento,

quando o povo não lhe dá absolvição.

Esses troncos de madeira que aqui estão,

assim deixados ao sabor do vento,

ainda sustentam algo de agourento,

contra as nossas esperanças ou ambição.

"Nada se perde, tudo se transforma."

"Vai-se a vaidade de braço com o orgulho..."

Somente as árvores repetem seu ritual,

que a primavera seu verde um dia retorna,

só para o outono, em novo e lento esbulho,

e então se despem na época hibernal.

LA CHAUMIÈRE V

Porém conosco, como é diferente!

É no inverno que mais roupas colocamos...

Inversamente dos bosques enfrentamos

o vento frio e a seguir o tempo quente...

Quando mais elas se vestem, vai a gente

se despir, pois o calor não suportamos...

E quando elas se despem, sem enganos,

indumentária usamos resistente...

E quando chega o dia, finalmente,

de nossa morte faminta receber,

agoniados de medo ou em pura fé,

nos divergimos da mata, novamente,

esticados no leito, a perecer,

enquanto cada árvore morre em pé!,..

LA CHAUMIÈRE VI

E essa cabana é mescla de nós dois.

Desabitada, irá morrendo aos poucos.

Em pé ela apodrece e os gritos roucos

ninguém escuta, em sua vasta solidão.

Desaba o teto um dia. E vem depois,

nesse protesto para ouvidos moucos,

o ruir das paredes... E os sonhos loucos

que ela abrigou, ninguém sabe aonde vão.

E ela morre de pé, mas depois cai...

Não há ninguém que lhe apreste sepultura:

talvez se queime no fulgor do outono...

E da memória humana já se esvai,

abandonada, sem traços de ternura,

ao ressonar de atribulado sono...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 08/05/2011
Código do texto: T2956727
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.