BICHANOS / TARUGOS ÚMIDOS
BICHANOS I (2008)
Dizem que os gatos, quando vão ao gatotório,
não morrem totalmente, porém deixam
dez por cento da alma aos que mereçam
a felina proteção como envoltório...
Bem do outro lado, fica o canitório,
mas os caninos não passam, quando tentam
cruzar essa barreira, ainda que intentam
só brincadeiras, em seu brando pulgatório...
(Pois certamente as pulgas têm seu céu!...)
Mas esses dez por cento, aqui na Terra,
o lar protegem daqueles que os amaram.
Seus pêlos constituindo um forte véu,
não caçam pássaros, só a ratos fazem guerra
recompensando àqueles que os criaram...
BICHANOS II (4 mai 11)
Não há dúvida que os gatos são estranhos:
têm sete vidas, segundo a nossa crença.
Mas para os nórdicos, existe diferença:
têm nove almas para seus assanhos...
Quando gatinhos pretendem mais acanhos
e manifestam a teu colo indiferença,
é justamente quando sua gatença
deseja mais carinho e mais amanhos...
Na verdade, da casa são senhores
e fazem o que querem ou se negam.
Não se julgam na menor obrigação,
mas aos humanos concedem só favores.
E mesmo quando as pernas nos esfregam,
pêlos nos deixam como em grande doação!...
BICHANOS III
Contudo, muitas vezes se arrepiam,
olhando em torno ou talvez pelas janelas;
o lombo arqueiam, mostram as costelas
e, de forma inquietante, logo miam...
Existem muitos que até deles se fiam:
coisas que veem, nós não podemos vê-las;
tem percepções que não podemos tê-las
são malignas presenças que assim viam...
E que, com seus chiados, proteção
concedem a quem mora no seu lar,
franca defesa contra elementais...
Porém esses avisos que assim dão,
que a tanta gente costumam assustar,
podem ter causas bem mais naturais...
BICHANOS IV
É certo que não veem as mesmas cores,
segundo os testes laboratoriais,
porém enxergam comprimentos mais
e bem melhor distinguem os odores...
Do senso de equilíbrio são senhores,
seus bigodes são radares naturais;
suas pupilas minúsculos sinais
conseguem captar dos roedores...
Ou dos insetos que invadem nossa casa;
amplos limites possui sua audição:
dos sons dominam bem maior alcance.
Assim, aquilo que a nós mesmos vaza
é captado por sua fina percepção,
que identifica sua caça num relance...
BICHANOS V
E embora isso refute tal crendice
de que possam outros seres contemplar,
tampouco pode inteiramente deslindar
essas estranhas sensações de fantasmice
que as pessoas isoladas, assim diz-se,
perpassam, quando escutam seu miar,
em sons horripilantes, de arrepiar
os cabelos e que a espinha lhes atice...
Afinal, se eles possuem tantas vidas,
sejam sete, sejam nove, tanto faz...
Alguma delas será mais fantasmal,
atenta às emboscadas e investidas
de criaturas errantes e sem paz,
que veem em nós sua presa natural...
BICHANOS VI
Por isso, trate bem o seu gatinho
e sua condescendência lhe conquiste,
que a proteção de tua morada assiste
contra a chegada indesejada de um vizinho...
Especialmente, quando estiver velhinho
ou a impressão te der de que anda triste,
ou no alto dos telhados não se aviste,
mas prefira encolher-se num cantinho...
Assim, quando partir ao gatotório,
deixa contigo alguma de suas almas,
para servir de teu lar como envoltório,
que não verás, mas teu instinto diz,
sua presença transmitindo estranhas calmas,
a cada vez que comichar o teu nariz!...
TARUGOS ÚMIDOS I (4 mai 11) (Pequenos cilindros de madeira)
Quando eu morrer, será longe da noite,
sem que as estrelas brilhem ou que a Lua
se dispa de seus véus e toda nua
afaste da tristeza todo o açoite...
Quando eu morrer, não acharei acoite
nos tecidos escuros, em que estua...
Será do Sol a perfurar-me a pua,
será o azul do céu em seu afoite.
Será a mortalha cruel desse mormaço,
será a umidade plena de opressão,
a atmosfera que esmague meu pulmão.
Não morrerei à luz de teu abraço,
ó noite amiga, companheira de infortúnio,
quando o sangue se enegrece ao plenilúnio...
TARUGOS ÚMIDOS II
Quando eu morrer, já estarei ausente
do descantar brilhante das estrelas.
Mas sob o Sol, percorrendo as tarantelas
desse zodíaco de que eu mesmo não sou crente.
Esse caminho do sol indiferente,
durante o dia, em que as estrelas belas
ele mesmo obscurece e que nem vê-las
consegue, em seu passeio refulgente...
Foram antigos que copiaram seu caminho.
Sobre as constelações, devagarinho,
superpuseram os do Astro-Rei,
em marchas oscilantes, sem carinho
pelos destinos dessa humana grei,
que muito amo, mas em que nunca confiarei.
TARUGOS ÚMIDOS III
De que maneira os astrólogos sumérios
sobre as estrelas engastaram sol?
Em longos couros do melhor escol,
na proteção de seus eremitérios,
foram traçando, com cuidados sérios,
as estrelas agrupadas em seu rol
como constelações e, em seu farol,
acolheram seus arcanos despautérios.
Porém viram que o Sol muitos sendeiros
seguia ao transcorrer de cada ano
e assim, por um esforço sobre-humano,
calcularam suas passagens, de janeiro
a dezembro, em tais agrupamentos
de estrelas, por vetustos julgamentos.
TARUGOS ÚMIDOS IV
Mas esse couro, mesmo bem curado,
tendia a enrugar-se e a desvirtuar
esses caminhos que tentavam retraçar.
E assim, o prenderam, lado a lado,
com tarugos de madeira, que esticado
conservaram esse seu mapa estelar,
por que melhor pudessem calcular
esse destino por deuses revelado.
E os caminhos do Sol foram traçados
em longos tentos, depois sendo aplicados,
diariamente, pelos tais verdugos
que obrigaram o Sol, sob tortura
a revelar constância bem mais pura,
e cujas pontas prendiam com tarugos!...
TARUGOS ÚMIDOS V
Mas por que a Lua deixaram assim de lado?
Quais as mulheres, ela era inconstante...
E quantas vezes comparada essa brilhante
deusa tem sido ao feminino agrado!...
Pois se o caminho da Lua era indicado
muito mais claramente, em elegante
arco noturno de prata cintilante,
melhor zodíaco teriam então traçado!
Melhor horóscopo criaram os ciganos,
das práticas hindus rememorado:
é a Lua que percorre o firmamento
e nos revela assim seus treze arcanos...
Mas os sumérios um sistema haviam criado
que sobre o doze tinha fundamento!...
TARUGOS ÚMIDOS VI
Por isso foi a Lua rejeitada
como fiel da balança do destino...
Umedeceram seus tarugos para o fino
filtrar dessa luz amarelada...
Cada arúspice em disciplina airada,
cada áugure em seu próprio desatino
e o fulgurátor, de um raio pequenino,
previa o futuro a partir da madrugada...
Mas eu sempre preferi a luz da Lua,
por inconstante que seja e que me esconda,
a cada quarta semana o seu carinho...
E assim, quando morrer, será na pua
cruel e adunca, que carne e alma sonda,
do Sol de estio, que resseca meu caminho...