A SAGA DE KOKÔ I-XII
A SAGA DE KOKÔ I (5 abr 11)
O jovem Kokô balançava pelo esgoto,
a lamentar sua sorte de exilado.
De um intestino morno, após criado,
fora lançado em tal lugar remoto...
Outros cocôs balançavam, descuidados,
e com o lugar nem pareciam se importar...
Até dançavam, alegres, a flutuar,
batendo uns contra os outros, enturmados.
Mas havia toda a sorte de porqueiras
descendo aos poucos, pela correnteza...
Sacos de plástico, garrafas, com certeza,
papel higiênico e mil outras tranqueiras...
Kokô sentia-se só e abandonado,
sem simpatia por esses companheiros,
que das paredes escorriam, bem ligeiros,
pelos bueiros que se abriam a cada lado.
Kokô flutuava apenas, deprimido.
Não sabia o que podia acontecer...
A água descia, imunda, a escorrer
e da existência não percebia o sentido.
"Existirá uma vida após o esgoto?"
Pensava ele, com os seus botões,
(se tivesse botões)... "As multidões
se deixam arrastar para destino ignoto!..."
A SAGA DE KOKÔ II
E assim ele descia, meditando,
sem fazer amizade com ninguém.
Quando esbarrava, às vezes, em alguém,
de imediato se ia desviando...
Mas um dia, escutou uma vozinha,
bem a seu lado, com expressão simpática:
"Oi, eu sou a Kokoa!" -- disse, enfática.
"Tenho vontade de ser sua amiguinha..."
Pobre Kokô, que nunca compreendeu
a sensação que invadiu seu interior...
Não era dor, nem alegria, nem temor
essa estranha emoção que o acometeu...
"Oi!" -- respondeu. "O meu nome é Kokô..."
falando tímida e gaguejantemente.
Das entranhas da alma, de repente,
lhe saíra essa voz que então soou...
Pois nem sabia ter voz para falar!...
E aquela criaturinha, do seu lado,
lhe havia a habilidade demonstrado!...
E os dois seguiram, lado a lado, a conversar...
Kokô e Kokoa! Imaginou sonho de amor...
Quem sabe os dois poderiam encontrar
alguma borda e à corrente se escapar,
para viverem juntos, com calor!?...
A SAGA DE KOKÔ III
Mas a corrente descia muito forte...
Kokô, coitado, descobriu que não ter mão
dificultava tremendamente a operação
que os pudesse livrar da dura sorte...
Assim, desceram a corrente, conversando;
sua amizade crescendo, natural,
esquecidos de que o destino, no final,
os poderia para a morte estar levando...
Como tantos namorados, inconscientes
de todo o mal ou da inveja que os rodeava,
sentindo que o amor mútuo lhes bastava
e para todos os demais indiferentes...
Um dia, aproximou-se um marinheiro
que descia, junto deles, a torrente
e começou a trovar Kokoa, em displicente
indiferença a Kokô, seu companheiro...
E apesar das negativas, insistia
que Kokoa fosse sua namorada...
A situação tornou-se bem pesada
e feia briga Kokô ja pressentia...
"A garota está comigo," declarou.
"Que a incomode mais não vou deixar."
"Qual é a tua, mano? Vai encarar?"
Mostrando os músculos, o outro o enfrentou.
A SAGA DE KOKÔ IV
Kokoa nem sabia o que fazer,
nem o motivo por que se aproximara
aquela criatura que a repugnara
e só lhe despertara desprazer...
"Por favor, não vão brigar por minha causa!
Sejam adultos!... Isso é coisa de criança!
Kokô é meu amigo e esperança
eu não lhe dei!..." Ela insistia, sem pausa.
Porém o outro estava a fim de briga
e, com sua força, poderia castigar
ferozmente Kokô e até o desmanchar,
era robusto, é preciso que se diga!...
Mas quando a luta já ia começar,
Kokô pronto a defender-se bravamente,
muito embora soubesse, realmente,
que o adversário não podia superar,
uma voz forte ouviu-se a exclamar:
"Deixe a menina agora mesmo em paz!
E se pretende bater nesse rapaz,
a mim primeiro precisará enfrentar!..."
O fanfarrão olhou-o, com firmeza
e ao ver como o intruso era maior:
que numa briga levaria a pior,
soltou uma praga e desceu a correnteza!
A SAGA DE KOKÔ V
O defensor observou-o, firmemente,
até estar certo de que não iria voltar
ou, pelas costas, traiçoeira ação tentar.
Deu um suspiro e acalmou-se lentamente.
"Meus filhos, o meu nome é K. Leão.
De fato, é Karl Henrique, mas não uso...
Eu detesto assistir qualquer abuso
e vocês podem me chamar só de Leão..."
"Pois, realmente, portou-se como um!
Nem sei de que maneira agradecer..."
"Ah, nem precisa, só cumpri o meu dever:
sempre que vejo, não permito mal algum!"
"E o senhor mora há muito tempo por aqui?"
"Muito mais do que vocês, vim da outra ponta
da cidade... E flutuo há dias sem conta:
numerosas aventuras já vivi..."
"Não pensem que esta vida é um mar de rosas!
Vocês são jovens, claramente apaixonados
e nem veem os perigos esboçados
e as armadilhas pela frente, portentosas!"
"Quer dizer que o fanfarrão pode voltar?
Quem sabe irá trazer um companheiro...?"
"Não há perigo disso, o esgoto inteiro
corre com força, ninguém pode retornar...
A SAGA DE KOKÔ VI
"Vocês dois aproveitem seus momentos:
não deixarei ninguém interferir.
Vou protegê-los, sem nada lhes pedir,
salvo apreciar os seus belos sentimentos.
"Mas há coisas pela frente, perigosas...
Há as baratas, por exemplo, são famintas;
nos atacam em bandos, indistintas,
na escuridão destas ruas tenebrosas...
"Mas piores do que elas são os ratos:
eles nos pescam para seu jantar...
No fundo, não são maus, querem caçar
para comer, da Natureza isto são fatos...
"Mas não precisam de ter medo por agora,
porque a torrente aqui corre depressa.
Só mais abaixo é plano; e, quando cessa
e escorre lentamente, chega a hora...
"O importante é manter-se bem no meio:
as baratas só atacam pelas margens...
Quando chegarmos às finais paragens,
aí, sim, precisamos ter receio...
"Ratos de esgoto aproveitam bem a vez,
eles sabem nadar, causam pavor...
Pior ainda, porém, será o exaustor
e, depois dele, ainda resta o japonês...
A SAGA DE KOKÔ VII
"Bem no final do túnel, se derrama
a água toda do esgoto sobre o rio...
Por onde a água desce, de churrio,
há um exaustor que transforma tudo em lama!
"As pás que tem são muito resistentes
e despedaça o quanto passa ali,
em muitos fragmentos, assim ouvi,
e toda vida se acaba entre seus dentes!
"Depois, a água escorre lentamente
e aparece o japonês, trazendo rede.
Recolhe o quanto a correnteza cede,
que então peneira para um balde, calmamente.
"O plástico retém em sua peneira,
cacos de vidro ou pano, ou coisa assim...
Só com adubo se contenta, enfim,
o resto joga fora na ribeira...
"Esse é o destino final de todos nós...
Quem conseguir escapar do japonês,
descerá pelo rio, semana ou mês,
mas quase nunca irá chegar à foz...
"Porque os peixes abocanham quanto podem,
os caranguejos, enguias e siris...
É a ecologia, segundo a gente diz,
até que as águas bem mais limpas rodem...
A SAGA DE KOKÔ VIII
Kokô e Kokoa estremeceram de pavor...
O bom K. Leão nadou certa distância
e os deixou a sós, para que a infância
aproveitassem, no gozo desse amor...
Perto o bastante, porém, para cuidar.
Aos poucos, a torrente se amainou,
a correnteza bem mais lenta então ficou,
figuras negras começaram a acompanhar...
Entre os flutuantes começou um movimento,
em direção ao centro da corrente.
O medo era visível, bem patente
e então crescia mais cada momento...
E logo aqueles vultos fusiformes,
balançando as antenas, se lançaram.
Pegaram um infeliz e o devoraram
e outro e outro, em mil bocas informes.
K. Leão postou-se bem junto do casal.
Os outros se empurravam e gritavam,
nesse terror que então experimentavam,
perante o assalto de tais hordas do mal...
Mas logo sobre a água elas nadavam,
arrastando um a um para a beirada,
que recobriam muitas, de enxurrada,
enquanto vivos ainda os devoravam...
A SAGA DE KOKÔ IX
Foram ficando para trás, depois,
satisfeitas com a horrível refeição...
Permaneceu flutuando K. Leão,
que protegera do casal os dois...
"Elas cansaram?" -- indagou Kokô,
no meio da coluna dizimada,
que parecia estar mais aliviada,
depois que tal perigo assim passou.
"Sinto muito lhe contar," disse K. Leão.
"Elas pararam porque sentem medo...
Os inimigos desse bicharedo
já nos aguardam, em grande multidão..."
E logo ouviram o guincho suprimido
de um dos flutuantes, que se aproximara
descuidado da beirada e se deixara
capturar por um monstro bem nutrido.
Logo chegou um outro; e outro, seus compridos
rabos finos apontando para o ar,
ansiosos para tudo devorar,
mas temerosos de também serem mordidos...
Chegaram às centenas e os flutuantes
foram sendo devorados, um a um...
Já no final, parecia que nenhum
poderia se escapar dos assaltantes...
A SAGA DE KOKÔ X
Já bem longe uma luz se divisava
e pareciam ter sumido as ratazanas,
já satisfeitas suas famintas ganas;
em seu alívio, Kokô já suspirava...
Mas, de repente, um dos ratos atacou:
sobre Kokoa lançou certeiro bote!
Os dentes finos e a poderosa glote...
De puro medo, Kokoa então gritou!...
Mas antes que Kokô sequer pudesse
interpor-se entre os dois, vem K. Leão,
contra o focinho se lançou de sopetão,
como se a morte até buscar quisesse...
E a fera se afastou, dentes cerrados...
"Adeus!" -- gritou K. Leão, ainda esperneando.
"Quando o exaustor estiver quase parando,
se joguem entre as pás, bem apressados!"
Depois, silêncio. Estavam quase sós:
um que outro sobrevivente ainda flutuava,
meio mordidos, um pedaço lhes faltava.
Falou Kokoa: "Ele morreu por nós..."
O sacrifício Kokô reconheceu...
À frente a luz contra o escuro já brilhava.
Ameaçador o exaustor rodava,
seu vulto vago pouco a pouco apareceu...
A SAGA DE KOKÔ XI
A correnteza era lenta, mas puxava...
As pás giravam com velocidade.
Tudo cortavam com facilidade.
Até o plástico se despedaçava!...
Mas por sorte, uma garrafa se encalhou
e Kokô e Kokoa, ainda abraçados,
permaneceram, no gargalo ainda apoiados,
enquanto tudo o mais se desmanchou...
E, de repente, cessou o movimento!...
"Vamos agora!" -- exclamou Kokô.
Por entre as pás ileso ele passou,
mas Kokoa hesitou por um momento...
Logo as pás recomeçaram a girar!
Kokô, que dentro ao rio já mergulhava,
nesse momento em que mal sobrenadava,
mal teve tempo de seu grito imaginar...
E assim Kokoa foi feita em fragmentos,
que escorreram lentamente para o rio...
Kokô sentiu um poderoso calafrio,
seu coração parado por momentos...
E nessa hesitação, nada mais fez,
também querendo morrer, em sua paixão.
Não se evadiu das grades da prisão
e na rede caiu do japonês!...
A SAGA DE KOKÔ XII
Sobre a peneira foi então largado,
sem qualquer tentativa de defesa,
completamente envolto na tristeza,
ao ver o corpo de Kokoa triturado.
Reconheceu a seu lado os fragmentos,
dispersos, desmanchados e sem vida
e quando viu sua forma comprimida,
não resistiu o mais breve dos momentos...
Assim Kokô também foi desmanchado
e seus pedaços passaram pelo arame
e desceram para o balde, nessa infame
mistura, a ser adubo destinado...
Passou o tempo. Derramado no canteiro,
por raízes lentamente absorvido,
sem ter noção do que lhe havia acontecido,
nesse instante esmagador e derradeiro...
Mas então, sem mais nem menos, despertou
e uma voz na própria mente ouviu:
"Kokô, que bom! Você já conseguiu!...
E foi bem perto de mim que despertou..."
Abriu os olhos e viu a perfumosa
flor amarela que a seu lado balançava.
Era Kokoa! E sua consciência despertava,
ao perceber que se tornara noutra rosa...