COLECIONADORES 2007
COLECIONADORES I (2007)
Havia um homem que juntava unhas:
começou moço: desde tenra infância
queria guardá-las, porém sua ganância
era frustrada por sua mãe, que as cunhas
lançava ao fogo. "Para que propunhas
guardar tais porcarias? Por que ânsia
pretendias conservá-las?" Nessa instância,
começou a escondê-las. "Onde as punhas?"
-- perguntou-lhe um amigo. "Ah, escondia!"
E foi juntando, até encher três jarras
de unhas mortas. Já velho, abriu-as um dia
e, numa nuvem, ergueram-se as aparas:
cravaram-se em seu rosto, como garras,
qual se de acne conservasse escaras!...
COLECIONADORES II
Havia um homem que colecionava vagalumes:
guardava as luzes dentro de sua boca,
pois tinha os olhos cegos e a voz rouca
e iluminava as vistas, quando esfumes
lhe saíam das narinas. Não queria perfumes,
só a louca sorte de seu pisca-piscar,
estranho código de insumo milenar,
amante das pastagens, evitador dos cumes.
Às vezes, distraído, as luzes mastigava
e como um fluorescente, reluziam
esôfago e estômago. Porém os intestinos
recusavam a luz. E neles se apagava
até mesmo a emanação que transmitiam,
muito embora seus rins tangessem sinos.
COLECIONADORES III
Havia um outro que juntava trilobitas,
oriundos do passado. Ele os caçava,
entrando em zen. Sua mente projetava
e ao retornar, os trazia em cinco fitas,
atados, um a um... Eram benditas
as velhas criaturas. Uma até o ajudava
nas tarefas domésticas. Outra sonhava
virar programadora. Infinitas
seriam de suas patas numerosas
as possibilidades. Andavam pela casa
e bebiam-lhe a poeira e os insetos,
limpavam as paredes, mesmo os tetos
deixavam cintilantes. Porém rasa
de quaisquer flores, pois comiam rosas.
COLECIONADORES IV
Um outro havia a coletar ladrões,
que guardava em gaiolas de cabelos,
como se fossem grilos. Com desvelos,
os nutria de moedas e cifrões.
Em vez de água, lhes dava óleo de ouro
e prata por vestidos. Engordavam
com cédulas aos fardos. E cantavam
melhor que rouxinóis. Ao matadouro
levava todos, mais cedo ou então mais tarde
e tomava seus ossos descascados
para furar em flautas. Carne assada
distribuía aos mendigos, sem alarde,
ou mandava de presente aos assaltados,
como se fosse churrasco de invernada!...
COLECIONADORES V
Ainda havia um homem que reunia caracóis:
com a casca deles fez um grande paneleiro;
o maior deles virou seu cozinheiro
e empregou outros na lavagem dos lençóis.
Para dormir, recobria os arrebóis
com cortina de cascas. A gosma usou primeiro
para encerar o assoalho do lar hospitaleiro,
e até passou na escada. Plantava girassóis
em sua horta, que as lesmas partilhassem
e, ao devorarem as sementes agridoces
elas se acetinaram, quais pérolas brilhantes.
Plantou-as com cuidado, que flores se tornassem...
Foram rosas amarelas e hortelãs tão doces
como essa madressilva que suga-se em instantes.
COLECIONADORES VI
Um homem coletava sepulturas de sonhos.
em formato de lares, igrejas e hospitais,
guardados em jarrões, os quais jamais
tornava a destapar. Eram bisonhos
ou agridoces, amargos ou ferozes,
mas todos mortos e todos delirantes,
na febre rediviva das bacantes,
despedaçando poetas como algozes;
com raios-X olhava os interiores,
de pesadelos brandos e ilusões,
fazia acupuntura em corações,
eletroencéfalos nas trevas exteriores;
fez-se obstetra e assim reimplantava
em ventres novos os sonhos que roubava.
COLECIONADORES VII
E havia aquele que reunia rodapés
e construiu um túnel sobre a terra:
revia as notas que a memória encerra
e levantava pontes através
dos socalcos luminosos de cavernas.
O mar guardou na boca de loucuras,
o céu passou no pão, com mil ternuras,
foi enteado de Deus e cem lucernas
em torres erigiu. Faróis de neve
escavou como poços artesianos
e gastou chuva coletada por mil anos.
Por ser capaz de fazer o que se atreve
quem nada a perder tem, só a coleção
de rodapés de artérias em botão.
COLECIONADORES VIII
Havia um homem que amava jacarés,
ao molho pardo... Mas apenas coletava
garças e jaburus, que banqueteava
aos crocodilos. E se arrojava aos pés
de mulheres esquecidas, nos relés
de mensagens perdidas... Marchetava
de cacos de garrafa a selva brava,
pelas areias remava de través...
Seus calçados de sangue entretecidos
pelos miasmas de velhos amores:
às tartarugas servia as namoradas
que nunca mais achara; e amortecidos,
os corpos das amantes a aligatores,
por conta das tristezas coletadas.
COLECIONADORES IX
Havia uma mulher, que seus gemidos
guardava em potes de barro destampados:
com feitiços os prendia, enregelados,
gemidos secos de pavor, contidos
mais de indolência que temor, perdidos
da boca que os tivera pronunciados:
tinham preguiça de serem libertados,
melhor lhes fora ficar adormecidos,
nessas panelas negrejantes de fuligem,
rachadas, sem conserto, lastimosas,
decoradas com botões murchos de rosas,
sem estertores, mofados, com impingem,
sarnosos mesmo, uivos percutidos
nesses tambores de argila entretecidos.
COLECIONADORES X
Existe um homem que coleciona poeira,
(mas não de estrelas) e a guarda em mil caixinhas
revestidas com sua pele. São coisinhas
minúsculas, porque a imensa polvadeira
que recolheu dos campos, comprimida
numa caixinha de clipes, guarda os anos,
as léguas e as runas. Desenganos
marchetados de alegria empardecida.
Guarda poeiras pedestres, de sua mesa,
dos armários, dos livros coletada.
Só quer guardar o pó, pois para nada
lhe servirá sua tão vasta coleção
e é por isso que a comprime, com certeza,
como rapé aspirado ao seu pulmão.
COLECIONADORES XI
Havia uma mulher que colecionava dores,
e as punha dentro de seus frascos de esmalte;
mas arranjou uma pipa, que espaço não lhe falte
para guardar as penas de tantos doadores.
Ali ela amontoava as penas, sem cuidado,
e sua barrica encheu bem mais do que a metade;
um dia, num momento de impulsividade,
o tonel destampou e descobriu mofado,
em parte, o conteúdo de sua coleção;
teve de jogar fora as dores pelo mundo:
elas andam por aí, à espreita e à tocaia...
Hoje ela tem um armário e mostra com paixão
as dores às visitas, em seu prazer profundo...
E as outras por aí? Só esperam que alguém saia!
COLECIONADORES XII
Havia um homem que comia espantos.
Com acácia, alfazema e gergelim.
Temperava os espantos com seus prantos,
que plantava nos canteiros do jardim.
Ele cruzava espanto-rosa com jasmim,
espanto-amargo com touceiras de agapantos.
Tinha prazer em proceder assim,
pois o espanto da criança, em acalantos,
se decompunha. Essas múmias coletava
entre o escândalo mudo das canções
ou nos ares de ilusões emurchecidos...
em que sua própria vida avizinhava.
E os espantos se espalhavam em botões
de tédios novos, por nada surpreendidos.
COLECIONADORES XIII
Um outro homem colecionava saltos
de opalas alcalinas, gota a gota,
em pingos de alabastro seus ressaltos
se desfaziam em rabecas, nota a nota.
E os arcos saltitavam sobre as cordas,
em gotas novas de esplendor funesto.
As mariposas, nas pintalgadas bordas
em saltos copulavam seu incesto...
Eram pequenos pulos, marchetados,
que brotavam de um berço, em formação:
saltos de luz, concretos, cristalinos,
cem gostos feitos carne, assimilados,
pulos de pétalas ao fim da floração
dos saltos inocentes de meninos...
COLECIONADORES XIV
E havia um que sombras preferia,
sombra de vento e sombra de neblina,
sombra de sol, em jarra pequenina,
sombra de chuva recolher sabia...
Descobriu a Internet e, de alegria,
coletou sombra mais elétrica e mais fina,
sombra de emails, de blogues ou de bina,
sombra dos trotes até que recebia...
Sombra desses torpedos passageiros,
sombra de arquivos de quaisquer assuntos,
sombra do mel que pinga da mentira...
Sombra de falsos pedidos lisonjeiros,
a sombra, enfim, dos sonhos já defuntos,
que se projeta enquanto a Terra gira...
COLECIONADORES XV
Outra, modesta, penumbras preferia,
penumbras de alfajor e de lembranças,
penumbras de temores e de danças,
penumbras de saudades e isquemias.
ou penumbras de memórias que não cansas
de recordar, de alevins, de fantasia,
penumbras de miosótis, que podia
em echarpes tricotar nas noites mansas...
Penumbras de desejos, reprimidas,
penumbras de não ser o que não foi,
penumbras da equimose da paixão,
penumbras de saliva, ressequidas,
penumbras do aguilhão de cada boi
que no passado lhe deu a nutrição...