O SORRISO DO DEFUNTO
O S O R R I S O D O D E F U N T O
Dia normal; como outro qualquer. Céu azul profundo, promessa de muito sol e de calor que chegava. O sol mostrava a todos que o dia seria dele, de conluio com o calor.
Olhei a minha frente. Ele ali, parado, imóvel, deitado, com cara de descansado, fresco como recém nascido, como que me quisesse dizer que estava em melhor situação que eu. E devia estar mesmo, porque enquanto ele estava ali, descansando, sozinho, eu estava sentado numa cadeira dura; só tendo ele próprio; como companhia. O defunto acabara de chegar e só tinha a mim até aquele momento para lhe velar.
Eu estava sem dormir a noite toda, uma vez que havia corrido atrás de todos os detalhes do velório. Portanto o sono era imenso, infernal. No meio de tanto sono; despertei com as pessoas que chegavam, pois como é comum, a qualquer lugar, faziam muito barulho. Chegaram, passaram pelo defunto como quem passa por imagens de santos em igreja. Benziam-se e se voltavam umas para as outras para conversarem e se informarem das novidades. Com o passar do tempo, o número de pessoas aumentou e as conversas também. O defunto? Esse continuava ali, parado, estático, sem se mover nem dizer coisa alguma, até parecia que estava gostando de tudo. Eu tinha a nítida impressão de que ele sorria.
Até o meio do dia, a conversa rolou solta. Em velório é assim mesmo, a gente vê gente que nunca viu, até mesmo os famosos e os tão falados “parentes distantes”, que em comum com a gente só tem mesmo à distância. Uma tia; não sei de quem chegou de não sei onde, só para ver o defunto, despedir-se dele. Mas do defunto mesmo nem chegou perto, afinal, “morto dá azar, não prestava ficar olhando”. Parou ali mesmo na entrada e conversou com cada um que encontrava pelo caminho para trocas de comentários e novidades.
Eu fiquei ali penalizado olhando para o defunto. Afinal, era ele o personagem principal. Aquele era o “seu” velório. Enquanto o olhava e pensava no quanto ele deveria estar irritado com aquilo tudo, visto não ter tido muita paciência em vida, observei que uma mulher fez questão de sentar-se ao meu lado. A mulher era daquelas que adoram falar. E começou! Logo nos primeiros três minutos ao seu lado, vi que o leve sorriso do defunto, se ampliou; como se estivesse radiante com aquela minha situação por demais desagradável. Eu realmente travava uma luta desumana com o sono que sentia. A voz dela ecoava nos meus ouvidos; tirava-me o sentido. Invejei o morto, afinal morto não ouve nada. E o morto sabia que eu o invejava naquele momento, daí aquele semblante alegre, de sorriso sorrateiro, com ares de travessura.
De repente tudo começou a rodar. O defunto que descansava tranqüilo parecia girar a minha frente. Até que aquela mulher, com um simples “tchau”; despertou-me trazendo-me de volta dos meus pensamentos em devaneios. Aquele tchau foi a coisa mais linda, mais sonora, mais maravilhosa que eu ouvi até aquele momento, no velório.
E eu fiquei. Continuamos ali, o defunto e eu. O sorriso continuava estampado no rosto do morto.
Hora de almoço, todo mundo almoça. Naquele dia não seria diferente.
Restou-me por companhia o defunto que ali descansava, dormia, devia até estar tendo lindos sonhos, afinal quem sabe o que se passa pela mente de um defunto? Sei que eu já estava quase pedindo “carona” naquela caixa de flores onde ele parecia tão bem repousar, quando as pessoas começaram a retornar. E foram chegando, afinal, ainda havia assuntos a serem concluídos e pelo visto, ninguém sairia dali com assunto nenhum pendente. Não sejamos cruéis, havia também o enterro, afinal o defunto ainda estava ali, embora bem esquecido de todos.
Antes do enterro, o padre veio para “encomendar a alma”. Não, aquele não era um padre e sim um diácono. Não sei ao certo como acontece de fato essa tal encomenda. Naquele caso específico até um violão apareceu e a cantoria rolou solta. Olhei novamente para o defunto que em vida nem radinho de pilha tinha, visto não que suportava ruídos e nem música. Dessa vez quem riu fui eu.
– “Está vendo só? Agora agüente o barulho todo que lhe estão dando como último presente”.
A tal “encomenda” estava demorando demais. Por que será que essas pessoas gostam tanto de falar em velório? Novamente me coloquei a devanear com o falatório que nunca terminava e o morto ali a me olhar. Meu sorriso durou pouco, agora era a vez dele. Quem sorria agora era ele novamente. Pelo menos ocupava uma posição mais confortável que eu.
Despedida!
Quase dei um berro, e me levantei. Que maravilha! Vai seguir o enterro. Isto mesmo pensei! Enterra logo esse morto que não para de rir na minha cara, fazendo pouco do meu sono. Aproximei-me do caixão. Falei-lhe umas palavras impróprias a serem escritas aqui. Vi o morto pela última vez. Trocamos sorrisos e posso até jurar que me lançou uma piscadela.
Terminado o enterro, voltei para casa e depois de um banho em água fria; bem relaxado deitei-me na cama, pronto para livrar do sono que tanto me atormentara durante todo o dia, mas peguei pensando no morto, já sentindo saudades daquele riso debochado, mas cativante.
(setembro/1983)