Sinfônio, O Carimbador
Os cabelos empastados de brilhantina, a barba por fazer, as próteses dentárias irregulares e as lentes garrafais de oito graus para miopia, tornam Sinfônio uma figura meio que alegórica.
O pouco mais do que um metro e meio de altura e o peso pena completam o personagem engraçado.
Trabalha há vinte e cinco anos na repartição carimbando documentos.
Já perdeu a conta das carimbadas.
Às vezes tenta juntar os números, a burocracia impede.
Atualmente para receber um simples requerimento coloca oito carimbos, fora os “xis” dos mais de cem quadradinhos dos formulários.
Quanto se trata de pedidos de alvarás, exatos doze carimbos, mais as centenas de “xis”.
Ao todo Sinfônio tem ä disposição para uso diário vinte e seis carimbos.
Reclama sem parar, virou até bordão.
- Inventaram o computador, mais está para nascer quem vai inventar o carimbador automático.
Carimba tanto que quando não está em serviço pegou o cacoete – sobe e desce o braço direito como se estivesse na repartição carimbando.
As tais carimbadas mais de uma vez o afastaram do trabalho por tendinite.
Foi aprovado no concurso para carimbar, não sabe fazer outra função.
Portanto, a doença só se agrava.
O sobe e desce do braço cada vez aumenta mais.
Os carimbos multiplicam-se a burocracia emperra e a fila não anda.
Agora ainda pior, o médico prescreveu uma tipóia a fim de melhorar a tendinite.
Um Deus nos acuda.
É um tal de colocar e tirar a tipóia, é carimbo para todo lado e a fila que não anda.
Inventaram o computador mais ainda não inventaram o carimbador automático - repete Sinfônio quando percebe o povo se esbaforindo na fila.
Aliás, ontem foi o dia “D” do carimbador oficial.
Foi acordado antes das sete pelos funcionários do serviço de água e esgoto -vazamento na calçada, barulho infernal das britadeiras quebrando concreto.
Saiu de casa atrasado para o trabalho reclamando consigo mesmo.
- Não inventaram ainda o carimbador automático, poderiam inventar um quebrador silencioso...
Irritadíssimo por ter sido acordado com o barulho infernal, saiu super apressado. Ao entrar na padaria para o habitual café da manhã tropeçou no cágado que e fica de mascote na porta.
Não deu outra, caiu de cara no o chão.
Os óculos se espatifaram em dezenas de pedaços.
Os fregueses o ajudaram a levantar.
Ensandecido de raiva, com os óculos quebrados e o sobe e desce do braço direito, perguntou meio atordoado para o dono da padaria.
- Me fala uma coisa qual o nome deste infeliz?
Referindo-se ao pobre cágado.
- Ah este cágado?
Vai me dizer que o senhor se esqueceu?
Falou o homem do balcão, mostrando um risinho no canto dos lábios.
Mais seu Sinfônio, o bichinho tá aqui desde o tempo que o senhor era carimbador.
- Era não, sou! Esbravejou Sinfônio.
- Mais seu Sinfônio se acalme.
- O bichinho não sabe o que faz, senão teria desviado do senhor.
Seu Sinfônio, quantos anos faz que o senhor é carimbador mesmo?
- O que interessa isso agora?
É pra eu me lembrar quantos anos o Tequila – este era o nome do cágado, está aqui.
- São vinte e cinco com muita honra - porque? Em seguida disse pela milésima vez - inventaram o computador mais ainda não o carimbador automático.
Ainda trôpego pediu o café da manhã – Uma média e o pão com manteiga de sempre.
Sem os óculos de pesadas lentes mal via o copo. Orientou-se pelo calor.
Ao pegar o pão errou o alvo acabou mordendo a caixinha que armazenava os saquinhos de adoçante.
Pudera era amarela igual ao pãozinho francês mal assado.
Saiu xingando o cágado e o pão.
Estava atrasado. Foi para o ponto de ônibus.
Sem os óculos precisou de ajuda para embarcar.
Falou com um rapazote de seus dezesseis anos.
- Moço, por favor, quando chegar o ônibus que vai para o Jardim Confluência você me avisa?
- Sabe - continuou é que acabei de tropeçar no Tequila da padaria.
O moço logo imaginou que Sinfônio tinha tomado umas.
No entanto, os fatos se esclareceram em seguida.
Tequila você não conhece ?
O cágado que fica na porta da padaria.
Então seu moço tropecei nele, quebrei os óculos.
Avise-me quando chegar o ônibus.
Poucos minutos depois estacionou o coletivo para o Jardim Influência.
O rapaz havia entendido mal.
Lá foi Sinfônio no ônibus errado.
Que dia de azar!
A falta dos óculos impediam-no de identificar o percurso.
Coletivo lotado - as pessoas viajavam espremidas como sardinhas em lata.
O percurso normal levaria vinte e cinco minutos.
Passados vinte minutos pediu ajuda para um passageiro.
- To reconhecendo o senhor – disse o rapaz que ia ao lado de SInfônio.
O senhor, continuou não é o carimbador da repartição?
- Sim sou com muito orgulho.
- O senhor não trabalha hoje?
- Como não? Retrucou, estou indo para a repartição.
Mais aqui nesta linha? – Falou o passageiro.
Como não entendi – disse prevendo o pior.
- Esta linha é a do Jardim Influência.
Para ir repartição o senhor deveria embarcar naquela que faz o Jardim Confluência.
Estamos do outro lado da cidade, emendou o passageiro.
Para seu desespero em razão dos incidentes desde as primeira horas do dia, ou seja, acordou com barulho de britadeira duas horas antes do habitual, tropeçou no Tequila, mordeu a caixinha de adoçante, mais um problema.
E o dia ainda não tinha chegado na metade.
Estava no coletivo errado.
Se fosse somente isso.
Não tinha dinheiro nem vale transporte para pegar outro coletivo.
Passava das nove da manhã.
Deveria estar na repartição as oito.
De novo, não deu outra.
Sem crédito no celular, sem o dinheiro para o transporte restou seguir à pé para o trabalho.
Puto da vida quando chegou na repartição passava das onze horas.
Cansado e sem o indispensável par de óculos e ainda por cima os pés doendo, (não só em razão do tropeção, mais pelo grande percurso feito na sola).
Ao adentrar no recinto ouviu um coro uníssono – até que enfim!
Mais de cincoenta pessoas com as senhas já amarrotadas o aguardavam no saguão.
Estava tão nervoso que o sobre e desce do braço acelerou.
Precisava iniciar o trabalho, mais que jeito!
Vendedor de salgadinhos, café, chocolates, livros de receitas, perfumes, rifas, lanches e marmitex diariamente comercializavam seus produtos no recinto. Transito livre.
Quando abriu a gaveta para apanhar com dificuldade os vinte e seis carimbos esta, já meia rota caiu sobre o pé direito - o mesmo que havia tropeçado no Tequila.
Correria, enfermaria e fila parada.
Meia hora depois voltou com os movimentos acelerados do braço, a falta dos óculos , as próteses dentárias doloridas depois de mastigar o porta- adoçante e o pé enfaixado.
Pacientemente recolheu os vinte e seis carimbos espalhados pelo chão.
Um guarda – mirim que sonhava prestar concurso para carimbador, ajudou a separá-los para o atendimento do público.
- Inventaram o computador, mais nada de inventar o carimbador automático – repete Sinfônio.
Bem, dado aos transtornos ficou sem almoço.
No final do dia sem chance de voltar para casa devido a súbita enchente.
Do ponto de ônibus retornou para a repartição, teria que dormir por lá mesmo.
No celular um recado para comparecer no setor de proteção aos animais a fim de prestar esclarecimentos - Tequila, o cágado não resistiu ao tropeção. A marca do sapato de SInfônio ficara no casco do bicho.
Na caixa do correio três avisos intimidatórios – seu nome seria lançado no rol dos maus pagadores.
Não teria explicações para dar em casa sobre o pagamento do cartão de credito, que cobrava a inadimplência relativa ao pagamento de visitas em um clube noturno.
Não precisaria das explicações - no celular a outra mensagem, era de Lurdinha, sua patroa há vinte e três anos.
A voz meio que expressando desaforo, deixou a lacônica mensagem:
-Foi bom enquanto durou.
Ainda não inventaram o carimbador automático. (Ana Stoppa)
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