Quiproquo

José da Silveira, ou Silveirinha como era conhecido pelos amigos, era um típico professor de literatura brasileira. Amava José de Alencar, tinha fascínio por Eça de Queirós, andava sempre com um exemplar de Grandes Sertões Veredas, criticava Paulo Coelho e, acima de tudo, defendia a superioridade de Machado de Assis sobre Fernando Pessoa. E agora, poderia realizar seu maior sonho, lecionar no principal Instituto de literatura do Rio de Janeiro. Para tanto, bastava ter uma nota regular na redação da prova de Língua Portuguesa exigida pelo Instituto. Ele foi o primeiro na prova de Gramática realizada uma semana antes e era, certamente, o que mais títulos de pós-graduação possuía. Estava certo de ter saído bem na entrevista com o diretor do instituto e agora restava apenas essa redação.

Silveirinha estava sentado numa sala com cerca de dez outros concorrentes, todos menos preparados do que ele, esperando o tema da redação. Duas mulheres aguardavam o relógio marcar nove horas para distribuir a prova, enquanto isso, um homem ficava de olho para que não houvesse alguma irregularidade entre os candidatos. As nove em ponto ele recebeu a prova. O homem, um sujeito barbudo e de olhar sério, pedia aos candidatos que mantivessem a prova virada para baixo, enquanto lia as instruções:

- Primeiramente leiam todas as instruções da prova, em segundo não deverão escrever seus nomes, o candidato que se identificar será desqualificado. Terceiro, a duração da prova será de três horas e o tempo mínimo de entrega será uma hora. Quarta, a redação deverá ser entregue à caneta...

Enquanto o homem sisudo lia as instruções, Silveirinha, ao contrário dos outros candidatos, estava calmo, tinha a certeza que terminaria a redação bem antes do tempo mínimo exigido para a entrega. Ele era inteligente, estava preparado e a frente de qualquer um dos concorrentes. Depois de uma das mulheres perguntar se alguém tinha alguma dúvida e todos se manterem em silêncio, o homem autoriza o início do teste. Silveirinha vira a prova, na capa havia novamente as instruções que o homem acabara de ler, e alguns outros detalhes que Silveirinha julgou desnecessário. Ele, então, vira a página e lê o tema:

“ Quiproquó na Justiça: dezenas de homens e mulheres são presos por engano no Brasil anualmente”

Ao olhar o tema um frio lhe bateu na barriga. Não pela definição da incomum palavra que ali aparecera, pelo contexto já tinha conseguido entender seu significado, quiproquó deveria significar algo como engano, erro ou confusão. Mas era a pronúncia da palavra que o incomodava. Silveirinha nunca tinha ouvido aquela palavra antes e, agora, com a reforma ortográfica, sem um dicionário para ajudá-la como iria saber como deveria ser o som daquela palavra? Seria Kiproküó ou seria Küiproküó? Bom, pensou ele consigo mesmo, isso não é importante, afinal para que saber a pronúncia se vou apenas escrever. Pegou a caneta, fitou a prova com os olhos e então começou a escrever sua redação. Começou a primeira frase de sua redação, falou sobre o conceito de Justiça na antiquidade, na segunda frase enfatizou a influência do direito romano nas leis brasileiras, mas antes de conseguir completar a terceira sua mente já estava de novo fixada na pronúncia da estranha palavra.

Maldita reforma ortográfica, sussurrou Silveirinha. Se fosse há um ano eu saberia pelo simples fato da palavra ter trema ou não. Mas agora vou ficar aqui, em dúvida, como posso escrever uma palavra que não como se pronuncia? Em que esses professores estavam pensando quando resolveram tirar esse sinal ortográfico? O que vou fazer agora com aqueles dois pontinhos em cima do seis no meu teclado? – resmungava.

O que estava acontecendo é que Silveirinha tinha verdadeira fixação por regras. Era um homem metódico, acordava sempre no mesmo horário, sentava-se preferencialmente na mesma cadeira, contava os passos e, não raro, se se perdia na conta voltava do início. Detestava mudanças, não conseguia se habituar a novidades, ainda mais no que se referia a sua tão amada Língua Portuguesa. Ele detestava a forma como se escrevia na internet, respondia aos e-mails corrigindo-os, transformava simples bilhetes em verdadeiros poemas. Porém, sua maior decepção era a Reforma Ortográfica. Claro que ele já conhecia todas as novas regras, mas não as aceitava. Em casa, em seu escritório e até na internet usava a regra antiga. Mas agora, em concurso como ele iria fazer? Silveirinha continuava a resmungar consigo mesmo.

Minutos depois, uma das mulheres fez sinal com o indicador para que se calasse, Silveirinha pediu desculpas e voltou a se concentrar na prova. Escreveu o primeiro parágrafo, iniciou o segundo e de novo a questão da pronúncia da palavra lhe voltava à cabeça. Deve ser Kiproküó, é mais bonito falada assim, pensou. Mas Küiproküó é bem mais característico da nossa língua, bem, por convenção vou pensar como se fosse Küiproküó, assim que eu chegar em casa eu vejo no dicionário a forma correta. Vou ficar tranquilo e continuar a redação, disse para si mesmo.

Nesse momento outra palavra começou a lhe incomodar. Ele jamais ficaria tranquilo sem trema, isso era impossível. Tranquilidade exigia trema, seu corpo nunca poderia se relaxar ou acalmar pensando na palavra escrita daquela forma. Era um absurdo, uma ofensa a língua de Camões, isso ele não aceitaria, trocou então a palavra tranquilo por calmo. Respirou, e disse novamente para si, Silveirinha fique calmo. Pronto, estava resolvido.

Nesse instante, o homem olha para o relógio e anuncia:

- Já se passaram uma hora e faltam duas horas para o término da prova.

Já havia se passado uma hora. Nada demais, ainda faltavam duas horas e isso seria mais que suficiente para ele. Pegou a caneta e voltou a escrever, “... Com isso, a idéia de Justiça passa a ser entendia como...”, outro problema para Silveirinha. Segundo o novo acordo ortográfico, paroxítonas com os ditongos aberto devem ser escritas sem acento. Novamente Silveirinha disse para si, me nego a ter uma idéia sem o acento agudo. Alguém deveria salvar o ditongo aberto, pensou. É melhor eu perder pontos a cometer um erro desses. Não, esses pontos podem valer muito no final, corrigia-se. Mas talvez, ninguém perceba, tão acostumados com a antiga grafia das palavras, quem iria observar um detalhe como esse? Mas e se percebessem? Não, é melhor eu substituir a palavra. Ao invés de idéia vou colocar conceito. Pronto, quando eu passar do rascunho para o original troco idéia por conceito.

Escreveu mais duas frases e usou mais duas vezes o termo conceito. Terminou o segundo parágrafo e iniciou o terceiro. Logo na primeira frase viu a necessidade de escrever a palavra idéia novamente. Já tinha escrito três vezes conceito em menos de quatro frases, não poderia repetir. Teria de escrever idéia. Mas se fizer isso, estarei concordando com essa nova grafia, imposta por esses malditos intelectuais que não tem problemas maiores a resolver, pensava em voz alta. Deve haver outra palavra que possa substituir idéia. Opinião, pensou, mas ao ler a frase a palavra não se encaixava. Talvez, juízo, não, também mudaria o sentido. Silveirinha ficou ali por mais alguns minutos pensando em outra palavra, várias lhe vieram à cabeça, mas nenhuma se encaixava. Por fim, riscou o parágrafo todo, iria começar de outra forma.

Dois candidatos entregaram a prova e saíram. Silverinha percebeu que outros já haviam saído, só restavam ele e outros cinco. Nesse momento, o homem sisudo diz que resta apenas uma hora. A ansiedade toma conta de Silveirinha, ele respira novamente e diz para si, fique tranquilo, ou melhor, calmo. Resta uma hora ainda, basta eu esquecer o rascunho e escrever diretamente no original, com isso ganho tempo. Ele passou os dois primeiros parágrafos para o original e dali para frente abandonou o rascunho.

Escreveu rapidamente o terceiro e o quarto parágrafo. Nesse tempo ainda viu outros dois alunos entregarem sua provas e saírem. Sabia que deveria escrever um quinto parágrafo antes da conclusão, mas o tempo era curto demais, por isso o suprimiu. Concluiu mostrando-se indignado com a posição da Justiça frente a esses casos de engano, optou por uma linguagem direta, fez uma citação do Padre Vieira e quando pensou na grande frase final, “O auto-retrato da justiça é ainda o da deusa Themis, cega para não ser imparcial, mas...” novamente uma palavra o incomodava, auto-retrato havia mudado para autorretrato, com dois erres, que irônico, pensou Silveirinha, porta-retrato ainda mantém o hífen.

Mas dessa vez não tinha como corrigir, ele estava escrevendo direto na prova. Deixou da forma que estava. Levantou-se, percebeu que apenas um outro aluno ainda estava na sala e entregou a redação. Muito aquém do que eu poderia ter escrito, pensou. O fiscal pediu a ele que assinasse outro gabarito, ele assim o fez e saiu. Enquanto saía a mulher lhe chama:

- O senhor se esqueceu de sinalizar aqui a sua opção - disse apontando para dois pequenos quadrados acima do texto da redação.

- Opção para quê? – perguntou Silveirinha.

- De acordo com a lei, o candidato poderá escolher até dezembro de 2012, qual a regra ortográfica que ele quer utilizar em concursos e vestibulares e o senhor precisa optar por uma das duas.

Silveirinha olhou o original da redação, lá embaixo, no quadrado pedindo a opção desejada uma frase lhe chamou a atenção: “Candidato, caso opte pela antiga forma ortográfica deverá escrever a frese título do tema como Qüiproquó, fazendo o uso do trema, de acordo com a antiga grafia”.

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 01/02/2011
Código do texto: T2765856