Quem te viu, quem TV

QUEM TE VIU, QUEM TV

Neide já não desgrudava mais da televisão nova que o marido havia comprado. Quando ele saía pela manhã, ela já estava na sala com a TV ligada e o controle remoto nas mãos procurando insistentemente por algum programa que não fosse repetido. O ritual era sempre o mesmo, ele saía para trabalhar, ela sentava-se na frente do televisor, anotava a receita de algum dos milhares de programas de culinária matutino e com essa receita fazia o almoço. À tarde, depois de lavar rapidamente as louças, voltava para frente do aparelho, procurava por algum programa de fofoca, escandalizava-se com a separação de algum galã de novela, ou com o casamento precipitado daquela apresentadora sessentona com um rapaz vinte anos mais novo.

A noite então era sagrada. O horário das novelas não podia ser interrompido por nada. Neide travava sempre um enorme diálogo em monólogos com a TV: Maldita Maria Clara, como pôde roubar o namorado da mãe? Outro dia a queixa era com o galã: homem é tudo safado, a esposa em casa trabalhando e ele saindo com essa piranha que só quer o dinheiro dele. E se houvesse um suspense, então sobraria até para a mocinha: como você pode ser tão burra Luciene Cecília?! O assassino está aí atrás da porta, não é possível que você não o esteja vendo.

E assim se deu por vários dias, até que o marido, sentindo falta dos compromissos matrimoniais da esposa, resolveu cobrá-la:

- Neide, agora não dá mais. Você não faz mais nada em casa, eu já estou sentido tua falta. Você fica o dia todo em frente à TV, precisa arrumar outra coisa para passar o tempo.

- Não é verdade. Eu passeio todas as manhãs e leio bastante também.

- Sim, você vai à Banca de Revistas, compra um jornal para poder ver o resumo das novelas, uma revista de fofocas sobre celebridades e o guia da TV a Cabo.

- E o que tem demais nisso?

- Ora Neide, nós nem temos TV a Cabo!

- Você se apega muito a detalhes, Joaquim.

- Detalhe ou não, de agora em diante acabou. Quando eu chegar do trabalho, quero toda a tua atenção. Eu chego sempre cansado e não quero dividir minha esposa com o José Mayer ou o Antônio Fagundes. A partir de hoje a televisão ficará trancada na despensa e as chaves ficarão comigo.

Sem solução Neide teve que obedecer ao marido. As primeiras noites sem a televisão foram uma verdadeira crise de abstinência. Ela tentou de tudo para se livrar do vício, chupava balas, comia palitos de cenoura, comprou dezenas de calmantes para ajudar na ansiedade e até adesivos de nicotina espalhou sobre toda a pele, mesmo não sendo fumante. Mas nada parecia resolver. A única coisa que lhe dava um pouco de tranqüilidade era ver, mesmo de longe, o brilho azulado das TVs dos outros apartamentos ligadas. Algumas vezes chegava a ir à área de serviço para ouvir a televisão do casal de idosos que morava do lado e que sempre ouviam a TV com o volume um pouco mais alto. Quando conseguia ouvir a vinheta de abertura da novela, sentia-se com se tivesse tido uma epifania.

Mas como toda crise de abstinência, algum tempo depois Neide foi libertando-se do seu vício. Primeiro deixou de ir à área de serviço, depois parou de expiar os televisores alheios, as cenouras já sobravam para as saladas, os calmantes já perdiam o prazo de validade, somente o adesivo de nicotina continuava a lhe fazer companhia; mesmo assim, mais por receio de uma recaída do que por uma real necessidade.

Ela já era outra mulher também em relação ao marido, sem a criatividade dos programas de culinária, o almoço deles passou a ser sempre arroz, feijão, bife e batata frita. Longe das fofocas das celebridades, era a vida conjugal deles que era comentada por Neide com as amigas. Mas o pior era que sem a TV, a esposa travava seus intermináveis diálogos com ele. Chegava a ouvir três vezes a mesma história. Mas o cúmulo foi quando a esposa lhe fez sair correndo do banho apenas para lhe contar que a Bete havia pegado o marido em flagra vendo sites pornográficos. Fato que ela já lhe havia contado dois dias antes.

Desesperado, resolveu que só tinha um jeito, viciar a esposa em TV novamente. No primeiro dia, logo pela manhã, deixou cair as chaves do depósito. Saiu para trabalhar e quando voltou, as encontrou no mesmo lugar. Pensou então em deixar um estímulo mais forte, entrou no depósito, pegou o controle remoto e o colocou embaixo do travesseiro da esposa. Fingiu ir ao banheiro escovar os dentes e ficou de soslaio, apenas observando o reencontro da esposa com falo da TV. Assim que Neide encontrou o controle, ela o pegou como se carregasse no colo um bebê delicado, o cheirou, chegou a apertar alguns botões apontando para o espelho e se admirando naquela posição, mas depois de certo tempo, percebeu o retorno do antigo vício e lançou o objeto pela janela.

O plano de Joaquim tinha dado errado. Já podia imaginar o que viria em seguida, uma intensa noite de amor que o levaria a exaustão, em seguida tentaria dormir, mas Neide não o permitiria, pois ficaria ainda horas no telefone, contando a alguma amiga o desempenho sexual do marido e antes de dormir viria contar-lhe um monte de fofocas novas e se não as tivesse, teria de ouvir mais uma vez a história do marido safado da Bete.

Sem solução, Joaquim desceu à área de lazer do prédio, por sorte o controle estava apenas com alguns arranhões, pegou alguns salgados e trancou-se na despensa. No outro dia não foi trabalhar, fez um almoço surpresa para Neide, arroz a grega acompanhado de salmão ao molho especial de damasco e vinho branco. À tarde, escandalizou-se com o jogador de futebol que não queria assumir a paternidade do filho de onze anos. Quando anoiteceu, descobriu que o assassino em série da novela era a inocente Josecléia. Quem poderia suspeitar de Josecléia? – disse Joaquim à TV. À uma hora da manhã, Joaquim ainda estava com os olhos abertos fixos na TV e a única coisa que aparecia na tela eram faixas coloridas com a inscrição: EM MANUTENÇÃO.

Rangel Luiz
Enviado por Rangel Luiz em 31/01/2011
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